Depois da meia-noite

Sempre ouvi relatos sobre os fantasmas do morro que assombravam a única passagem entre o meu ponto de ônibus e a minha casa, nunca acreditei que fossem verdadeiros. As aparições, supostamente, assustavam e deixavam qualquer um que passasse por ali de cabelos arrepiados.

Mas, eu nem mesmo tinha medo disso.

Sempre disse a mim mesma que eu era corajosa o suficiente para caminhar por um longo quilometro, até que eu estivesse totalmente segura em casa, o que se daria por volta de 1h00m, e... Para quem confunde o formato das horas, isso não é durante a tarde. É madrugada!

Depois de ter me deixado num ponto deserto, iluminado apenas pelo brilho dos muitos raios que cortavam no céu, o motorista deu partida e lá se foi pelo asfalto molhado, pela recente chuva que havia caído e que deixou apenas a neblina para trás. O frio da noite, sim, era o que arrepiava...

O barulho dos galhos se torcendo e a imagem das folhas das árvores era um convite perfeito para uma cena de filme de terror. Eu não enxergava nitidamente, não conseguia associar totalmente os locais onde eu pisava e o local para onde eu ia. Volte e meia pisava numa poça de lama e mordia a língua para não gritar uma palavra feia.

Só quando ouvi o barulho característico de nova mensagem no meu celular que me toquei sobre não ter colocado no silencioso. Praguejei mentalmente.

De que você tem medo? E ela acha que me assusta com esse joguinho. Amigos! Estão sempre tentando me assustar...

Você tem medo de fantasma? Até parece! Definitivamente ela não ia me assustar. Desliguei o meu telefone e continuei andando. Então, ouvi novamente o barulho. Mas, eu tinha desligado...

Estou olhando para você agora. Mas, eu não tenho olhos...

-Mas, que merda é essa?

Lembro-me daquele dia em que minha mãe disse que deveríamos ter medo apenas dos vivos, apenas eles podem nos fazer mal, pois, os mortos já estão mortos mesmo. Concordei com ela naquele momento, no entanto, já não tenho mais tanta certeza de sua razão.

Apressei o passo para sair logo dali, obviamente havia alguém brincando comigo. Uma fina garoa voltou a cair e a neblina parece um pouco mais densa, mesmo às escuras, retiro a bateria do meu celular e jogo na bolsa.

À direita... Cuidado, não pise na água.

Acho que estou louca, pareço estar ouvindo alguém falar comigo. Isso é macabro. Não ligo para a “dica” e acabo pisando na lama. Outro palavrão vem aos meus lábios, mas, desta vez não pronunciei. Percebi que estava prendendo a respiração.

Logo eu que não tenho medo.

Fale comigo! Venha comigo!

Minha mãe também me disse que eu, se eu estivesse sozinha e me chamassem, não respondesse e que também não olhasse para trás em hipótese nenhuma. Mas, isso estava falho, óbvio!

-Eu não quero falar. Vá embora, por favor!

Sua voz, fale de novo. Eu não disse nada, isso já era uma bizarrice. Com quem eu estava falando? Será que eu queria mesmo saber?

Acho que não.

E ela disse que não tinha olhos...

Agora estou em pânico.

Começo a correr, mas, meu condicionamento físico não é exatamente o que eu queria para uma hora dessas, então, me canso rápido. A voz sussurra que não preciso correr. Ela diz mais um par de coisas que não consigo decifrar. Diz mais uma vez que não tem olhos, que precisa de olhos.

Ela parece estar chorando. Não! Está rindo, literalmente gargalhando. E repete sem parar que precisa de olhos... Ela precisa de olhos castanhos!

Espera... Maldição! Maldição!

-Não vou te dar os meus olhos. Deixe-me em paz.

Como em um bom filme de terror, tropeço nos meus próprios pés e desabo. Minhas roupas estão impregnadas de lama e os meus olhos estão turvos por causa das lágrimas. Mesmo vendo tudo borrado, consigo distinguir uma figura que se aproxima à minha frente. Torço para que seja alguém que esteja vindo para me acordar de um sonho ruim, mas, não é.

Garras de metal reluzem sob a pouca luminosidade que atinge a criatura.

O que é isso?

Meus instintos de sobrevivência são fortes o bastante para fazer-me reerguer e correr no sentido contrário. Mas, não adianta nada... Vejo outra criatura...

Não, não é outra, ainda é aquela de poderosas garras de metal e que não para de sussurrar que precisa dos meus belos olhos...

Estamos frente a frente agora. Mal posso descrever o medo que habita minha mente e o frio que rodeia o meu corpo. Estou sozinha no meio do nada, não totalmente sozinha. Estou na presença de um ser, não sei qual, que acha os meus olhos lindos, principalmente se estiverem longe do meu rosto.

Finalmente consigo olhar diretamente para ela (a criatura).

Não estou mais assombrada porque acho que isso é impossível. As lágrimas picam atrás dos meus olhos e me lembro de que esta pode ser a última coisa que verei. A criatura é feia, ela é mais alta que eu, e está trajando uma burca totalmente negra que deixa a mostra apenas a área entre seu nariz e o começo dos cabelos. Sei que a pele é branca, mais que o necessário, vejo isso por causa da claridade da lua, que justamente agora resolveu aparecer. Poderia ser linda...

Poderia...

Se tivesse olhos...

No lugar onde ficavam os olhos, que eu suponho que fossem azuis, estavam dois buracos negros, cada um em um lado. Buracos escuros e que logo estariam sendo ocupados pelos meus olhos!

Ela voltou a mostrar as garras de prata e eu pensei ter ouvido um sussurro assustador. Talvez fosse apenas imaginação. Olhei para o céu, para as primeiras estrelas que eu via hoje e pedi novamente que aquilo fosse apenas um sonho... Não era... Um grito escapou de minha garganta, porque quando as garras cortaram minha pele eu sabia que aquela era minha última visão... Neste corpo...

Daniela Lopes
Enviado por Daniela Lopes em 22/03/2015
Reeditado em 23/03/2015
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