716-A SEMANA DOS MORTOS-VIVOS-

1ª. parte

A mudança do cemitério foi uma idéia que agradou a poucos moradores da pequena Itaturana. A rigor, somente os residentes ao redor do quarteirão cercado por taipas em cujo interior repousavam os falecidos da cidade é que gostaram.

O doutor Plácido Guerra, prefeito recém empossado, era um médico de idéias avançadas para ocasião (a história é real, data de 1905), mas nunca imaginara antes na mudança do cemitério, idéia que só lhe ocorreu quando verificou o lamentável estado das taipas que cercavam o campo santo, com trechos reconstruídos com adobes, além do esgotamento da capacidade do local em receber novos defuntos,

Com habilidade política, conseguiu a doação de um grande terreno distante cerca de um quilômetro da Praça da Matriz para a construção do novo cemitério. Até aí, a população aprovou.

Mas quando falou na mudança do cemitério, foi uma gritaria geral.

— Não podemos conservar o cemitério encravado praticamente dentro da cidade, Vamos transferir os mortos para o novo cemitério e construir no local uma bela praça.

O pessoal que morava ao redor do velho cemitério vibrou com a intenção do prefeito. Os mais entusiastas da idéia foram o padeiro Giuseppe Campana, o proprietário da Loja de Ferragens Vilar & Filhos; a viúva de Pedro Gonzales cuja loja de tecidos da esquina tinha até uma linda vitrina de frente para o cemitério; o dono da Farmácia Guerra, farmacêutico Argemiro Guerra (irmão do prefeito) e até o gerente da Empresa de Eletricidade, cujo imponente prédio de dois andares se situava defronte ao portão de ferro batido negro de ferrugem do cemitério.

Mas o resto da população foi contra.

— Não devemos mexer com os mortos, diziam uns.

— O terreno do cemitério é sagrado, não pode ser violado, dizia o vigário, que aconselhava: “em vez de transferir, faça-se novo muro, de alvenaria, e substitua-se o portão”.

Mas o doutor Plácido foi firme, apelando até para questão de saúde publica:

— O cemitério será sempre foco de ares impuros, de mosquitos da febre amarela, de bichos que comem cadáveres. Deve ficar longe da cidade.

Não foi fácil a tarefa. Os funcionários da prefeitura, da limpeza e capina de ruas, não quiseram trabalhar na remoção. Foi preciso contratar pessoas menos escrupulosas, e até um grupo de fortes negros, moradores num quilombo nos confins do Morro Vermelho vieram para ganhar um dinheirinho extra

Um planejamento incipiente foi elaborado. Havia 786 mortos enterrados no cemitério catalogados no livro de óbitos, mantido atualizado pelo coveiro Zé da Paz, que era também o responsável pelo cemitério. Foram feitas 800 sacolas de panos (sacos de farinha de trigo cortados e costurados ao meio) para as ossadas. As sacolas seriam amarradas com tirinhas de couro, juntamente com a plaquinha com o numero de cada cova. Levadas para o novo cemitério, elas ficariam no ossuário, uma construção em forma de capela, que tinha prateleiras de alvenaria construídas de encontro às paredes, próprias para conter todas as sacolas.

Mas nada foi tranqüilo nessa fúnebre empreitada. Na manhã do primeiro dia, um dos ex-escravos meteu a picareta no próprio pé, arrebentou o dedão, teve de ser enviado para a Santa Casa e não voltou ao trabalho.

O medo se espalhou entre os trabalhadores, mas a escavação das tumbas e covas rasas prosseguiu. Trabalharam até quando já não havia mais luz — era um tempo em que horários e leis de trabalhos não existiam.

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Segunda feira à noite, Dona Mariana estava na sala da frente, terminando o bordado de uma toalha para a filha, sob a luz do lampião de querosene, quando ouviu um barulho na porta. Vivia sozinha desde a morte do marido, já há quase dois anos, e não tinha medo de nada. Levantou-se e dirigiu-se à porta da frente, de onde vinha o barulho: um som como se alguma coisa se arrastasse pelo chão, e grunhidos.

— Deve ser algum cachorro vadio, pensou.

Mas antes que chegasse à porta, esta foi aberta e ela viu a coisa mais horrível dês sua vida: um vulto coberto de roupas rasgadas, velhas, imundas, enlameadas, Era – ou teria sido – um humano, uma pessoa. Mas a cabeça estava sem cabelos, o rosto descarnado, onde deveriam estar os olhos havia dois buracos negros, duas fendas no lugar do nariz, e a boca... Não tinha boca, mas os dentes apareciam descarnados. A caveira balançava-se sobre o esqueleto, completamente limpos de músculos ou entranhas.

Dona Mariana era uma mulher forte. Mesmo assim, titubeou, antes de invocar a proteção:

— Valei-me, minha Nossa Senhora da Abadia!

O descarnado só podia ser seu marido, pensou a mulher. Pela altura e pelos restos de roupas (um terno de casimira marrom, com que fora enterrado), só podia ser ele. Teve forças para gritar:

—Que é que você quer, Abelardo?

A figura permaneceu ali, no umbral da porta, sem se mexer. Sem movimentar as mandíbulas, “falou” num som cavo e soturno

— Não... desenterrem... mortos

Dona Mariana desfaleceu.

2ª. parte

Mulher religiosa, temente e crente, na manhã seguinte, foi se confessar. Padre Bertini ouviu sua narrativa, feita no confessionário, mas depois fez com que ela contasse tudo novamente, na sacristia. Assim, ele poderia conversar com o prefeito e avisá-lo do ocorrido.

Na prefeitura, o padre recrimina o prefeito:

— Eu disse ao senhor que fizesse novo muro e mudasse o portão. Não se mexe com quem está enterrado.

— Acredito no que o senhor disse, mas não acredito em fantasma nem em morto-vivo. — disse o médico-prefeito. — Aliás, o senhor também não deveria acreditar nessas coisas, padre.

O padre saiu pisando quente do gabinete do prefeito.

Os trabalhos prosseguiram durante o dia, sem incidentes, mas o medo entranhava-se entre os trabalhadores.

Na noite de terça feira o visitado foi o sapateiro Epaminondas, que acordou à noite com os ruídos vindos da janela do quarto. Munido de um grosso porrete, abriu a janela e deu de cara com um cadáver ambulante (conforme ele descreveu na tarde seguinte, numa roda de amigos, entre copos de fernete e cachaça).

— A coisa era pavorosa, fedia e falava. Disse palavras enroladas, parecia que dizia não desenterrar mortos.

Mas a sua assistência sabia de sua fraqueza pelas talagadas de cachaça e foi motivo de gozação.

— Cê tá vendo coisa, Nonda; Tá impressionado com o desmanche do cemitério?

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Na noite de quarta, a aparição deve ter sido muito assustadora. De manhã, seu Leocádio – chefe do correio, foi encontrado morto na sala de casa, que era contigua à sala do correio e telégrafo. Teria cinquenta e poucos anos, sofria de ataques de asma e tinha pressão alta.

Os olhos do morto estavam abertos, e a expressão de terror de sua face denunciava o pavor (fantasmagórico?) de sua ultima visão. Ninguém poderia associar sua morte com os aparecimentos de mortos-vivos a Dona Mariana (que só era conhecido de umas poucas pessoas ligadas ao Padre Bertini) ou Epaminondas (que foi tomado como fruto de seus devaneios etílicos).

E ninguém notou no chão defronte o guichê “Telegramas” uma nodoa ou poça de algo negro e fétido, de matéria em decomposição.

Quinta feira de manhã a notícia correu célere: o major Diogo e sua mulher haviam sido “visitados” por um morto-vivo, um cadáver em franca decomposição (o major era assertivo) de sua filha Constancia falecido há pouco mais de quatro meses.

— O vestido estava quase perfeito, apesar da sujeira. Fios de cabelos ainda pendiam de sua cabeça e restos de carnes apodrecidas dependuravam-se pelos ombros, ainda aderidos aos ossos visíveis. A caveira totalmente descarnada exibia a dentadura que era, sim, de sua querida filha. Já a esposa Dona Sofia não sabia de tantos detalhes, pois se escondera atrás do marido assim que vislumbrou a “coisa”, a morta-viva.

Mas ouviu, sim, o gorgolejo Deixem ... mortos enterrados

Major Diogo também era contra a mudança, desde o início. Homem de atitude, foi direto ao delegado de polícia “dar queixa” contra a mudança do cemitério.

O delegado Francisco Martins, calmo como todo homem magro e alto, de confiança do prefeito, foi direto ao cerne da questão:

— O prefeito está fazendo tudo dentro da lei. E não posso registrar ocorrência de aparições de mortos vivos. Convenhamos, major, que isto mais parece alucinação...

Tal qual o padre Bertini saíra do gabinete do prefeito, o major Diogo saiu da delegacia de polícia: pisando em brasas.

Os trabalhadores na escavação, se souberam das aparições, não deram mostras. Os negros tinham suas mandingas, que os protegiam, e precisavam daquele ganho extra.

Nas sexta feira, A visita do morto vivo foi para a Madre Maria de Deus, diretora do colégio das freiras.

FINAL

Acordou com o cheiro nauseabundo ao lado de sua cama, na clausura, isolada das demais irmãs. Acendeu a vela e deu de cara com um esqueleto ambulante, os ossos brancos totalmente despidos de vestígios de roupas ou carnes —a descrição da religiosa é precisa, conforme narrou ao Padre Bertini:

— Não sei por que, mas tenho certeza de que é (ou era) a Irmã Lúcia, que faleceu há oito anos e foi enterrada no fundo do cemitério. E ouvi bem o que disse, sem movimentar os maxilares: Não mexam com os mortos.

Padre Bertini foi aliando aparição com aparição e com a morte misteriosa do chefe do correio. Como já havia falado com o prefeito, sem resultados e sabia da denuncia frustrada do Major Diogo, chegou à conclusão:

Tenho de falar com o senhor bispo. Só ele poderá parar com essa insanidade que é mudar o cemitério.

Sábado após o almoço, acertou com o chofer de praça a ida à cidade de Macedina, sede do bispado. Recebido pelo bispo, narrou a sua versão dos eventos de Itaturana. O bispo, Dom Clemêncio, homem prudente e de saber, disse:

— Meu filho, essas aparições não são coisas da Igreja. Não podemos crer em aparições de mortos-vivos; quem morreu, morreu, via para o Céu, Inferno ou Purgatório, e por lá ficam.

—Mas, Excelência...

— Oficialmente, nada podemos fazer. O prefeito não está fazendo nada de ilegal, e mesmo se estivesse, isso é lá com as autoridades.

— Perdão, Excelência, porem...

— Só podemos orar, abençoar e pedir perdão, se algo errado está acontecendo.

Juntando as mãos em sentido de oração, e fechando os olhos, Dom Clemêncio disse:

— O que posso fazer é o seguinte: visitarei sua paróquia amanhã. Celebrarei a missa das nove e depois, farei a benção do local do novo cemitério. Ele não foi abençoado, foi?

—Ainda não, excelência.

—Pois então, será amanhã.

—E quanto ao velho cemitério?

—Visitarei também o velho cemitério. Será uma oportunidade para abençoar o que está sendo feito. Mais do que isso, só o Papa.

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A visita do padre Bertini ao bispo não evitou que o fazendeiro Leocádio fosse visitado pelo morto-vivo que poderia ter sido o de seu filho, falecido há uma dúzia de anos, morto por uma investida de um touro insano no curral junto à casa-sede. .

Ouvindo barulho no curral, Leocádio levantou-se e empunhou a espingarda que mantinha dependurada na parede, sobre sua cabeceira, ao lado do crucifixo.

— Abri a janela e vi um vulto que parecia um esqueleto, era só osso. Parecia fantasma ou assombração. Mas podia ser alguém, bandido, ladrão, sei lá... Pelo sim, pelo não, antes que ele fugisse, dei-lhe um tiro certeiro na cara que ria como uma caveira. Foi tiro e queda. O bandido ou ladrão ou alma doutro mundo desapareceu na hora.

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Domingo foi dia de festa em Itaturama, com a visita surpresa do Senhor Bispo Diocesano Dom Clemêncio. Cumpriu o que havia prometido ao padre Bertini: Celebrou missa solene às nove horas e ao meio dia abençoou o novo Cemitério (com grande discurso de agradecimento feito pelo Dr. Plácido Guerra.

Almoçou na casa paroquial, modestamente, com padre Bertini, madre Maria de Deus e algumas pessoas piedosas. o sacristão, a presidente da congregação do Sagrado Coração de Maria, o maestro da banda que tocava nas procissões, católico de fé absolta.

Às três da tarde, manifestou desejo de visitar as obras do cemitério velho. Foi acompanhado pelo padre Bertini e mais meia dúzia de pessoas que se reuniram ao cortejo que seguiu a pé.

Andando entre os buracos e os túmulos ainda não remexidos, parou ao pé do velho cruzeiro de madeira, cujos braços ameaçavam cair a qualquer instante. Ali, em silêncio, orou por alguns minutos e em seguida abençoou, com largos gestos, os trabalhos, em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Entrou no carro que já o esperava e partiu.

Aquietados pela benção episcopal, os mortos-vivos nunca mais apareceram.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 24 de fevereiro de 2012

Conto # 716 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Especial para A Revista INMEMORIAM

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 17/03/2015
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