Sorrisos Borrados DTRL21
E os dias eram ruins, as noites terríveis. A face pintada de branco exibia um grande sorriso vermelho que o tempo desbotara. Os olhos eram profundos e bolsões pendiam abaixo deles. A felicidade que deveria estar cravada em seu rosto, era agora ruína. Dois tufos escarlates de cabelo despontavam crespos de lados opostos de sua cabeça, e um caminho careca os entremeava. Da roupa larga e colorida pendiam três botões brancos e fofos. Um aspecto sujo transformava o traje quase carnavalesco em uma mortalha sarcástica.
O palhaço andava pela rua. Aquele sorriso desbotado custeava-se da desculpa que dias melhores viriam. Mas sua aparência triste e que beirava ao macabro jamais mudava. Ele sentia uma bolha na garganta, queria chorar, desistir, findar a vida. Mas tinha que cumprir seu objetivo.
A rua se estendia silenciosa e vazia ao longe. O céu cinzento parecia chumbo, e explodia periodicamente em trovões que rugiam enquanto ecoavam pelos prédios. A selva de pedra estampava desolação, o preto e o branco se misturavam em uma inexistência de vida mordaz no turbilhão silencioso da angustiante calmaria. Não havia motivos para sorrir no cenário de concreto, tampouco na figura esguia do palhaço.
Ele passava pelo meio da rua com a cabeça baixa e as mãos enluvadas paradas e paralelas ao corpo. “O som solitário da solidão é solido e insólito”, a frase retumbava em sua mente. A frase dita por uma pessoa que ele nem ao menos lembrava. O vento gelado da idade lhe trouxera isso. O esquecimento do inesquecível, e sofrimentos jamais sofridos. O ofício de palhaço tinha um fardo... Distribuir a alegria mesmo quando se é completamente vazio dela.
Ele estabelecera uma meta que parecia quase impossível, fazer alguém sorrir novamente. Como na juventude, quando as cores ainda não haviam o deixado, quando sorriso era real e até a alegria lhe era verdade. Mas agora não passava de uma peça obsoleta no cenário caótico da depressão.
“Olá?” disse uma voz aguda.
O palhaço virou lentamente a cabeça, e viu, singela, uma criaturinha de cabelos castanhos e olhos meigos. Um menininho de olhar ansioso e gestos tímidos.
“Chamo-me Gabriel” falou o menininho.
O ser do sorriso borrado o fitava com admiração estúpida.
“E você? Quem é?”
O palhaço levou a mão lentamente até a face e apontou para os lábios pintados, com certo receio. Sem jamais tirar os olhos do pequenino.
“Ah! Um palhaço!” disse o garoto empolgado. “Eu já fui a um circo” Gabriel entortou a cabeça como uma ave curiosa. “Mas não te vi lá”.
Confuso e com a mão ainda apontada para a face ele enrijeceu os lábios, tentando um sorriso (que mais pareceu uma rosa murcha em meio a selva de arame farpado) . Se encararam por alguns segundos sem dizer uma palavra, até que o triste homem fez um movimento rápido com a mão e por debaixo da manga algumas flores sintéticas surgiram. Mas eram cinzentas e moles, não tinham qualquer aspecto de vivo. O menino arregalou os olhos, admirados. Mas sem jamais sorrir. Os olhos tenros dele encheram o palhaço de súbito afeto, e ele deu, pela primeira vez em anos, um sorriso real por detrás do falso. Algo incrivelmente imaculado em sua figura abarrotada. Levou a mão ao peito, e lá estava o coração. Whack-Whack dizia o órgão, Whack-Whack. Tudo muito triste, melancólico, derradeiro.
O menino repetiu o gesto, e com a mão no peito se aproximou do homem. Levantou-se na ponta dos pés e colocou sua mãozinha no coração quieto do seu mais novo amigo. Quase pode sentir a tristeza tamborilante que envenenava seu sangue.
O palhaço ainda o encarava, mas começou a se afastar lentamente e, ainda fitando-o, deu um salto no ar: bateu um pé no outro e fez uma queda forçada. Gabriel estava apreensivo, encarando-o, e, do chão, o outro teve certeza que falhou novamente. Mas logo um sorriso que brotara da alma se deu com alarde na face do menino.
Ele havia cumprido seu objetivo. Levantou-se lentamente e sorriu com amor para Gabriel, um sorriso de verdade para um garoto que cruzou sua realidade. E então ele abriu a boca para dizer algo... mas antes que qualquer palavra pudesse sair seus olhos se fecharam. Ele caiu ao chão.
O menino correu até ele e o encarou. Ele havia ganhado cor. A roupa estava mais brilhante do que nunca e o sorriso cintilava na face. Gabriel levou a mão ao coração do homem sem qualquer receio... mas nada de Whack-Whack,.
A vida havia o deixado. Liberado-o para sair da angústia de sua existência. Deixado-o correr livre para um lugar melhor que a hipocrisia de seus trajes de tenebrosa felicidade.
Lá se foi ele, sem jamais dizer uma palavra novamente. Mas o mundo voltara a sorrir, e as flores a florirem, também era agora o céu azul turquesa e tudo ganhara beleza.
E os dias já não eram mais ruins nem as noites terríveis.