Mistério na Ponte do Rosário
Rogério caminhava a passos largos. Encontrava-se debaixo de um guarda-chuva pequeno, sob uma pesada chuva, saindo da praça do São Francisco – uma das principais praças da cidade de São João del Rei, onde uma igreja, supostamente erguida por Aleijadinho, se encontrava atrás de uma praça em formato de harpa, ordenada por palmeiras imperiais. Foi até a referida praça deixar Fernanda, sua namorada, no ponto de ônibus, onde a mesma pegou o seu ônibus rumo ao Matozinhos – o bairro onde se encontrava sua casa, do outro lado da cidade. Agora, Rogério precisava atravessar pouco mais de 100 ou 200 metros até chegar a sua casa, atrás da Igreja do Rosário – outra importante construção sanjoanense.
Era um caminho rápido e tranquilo. Mesmo de noite – uma noite sem lua, uma vez que o céu estava tomado por pesadas nuvens de chuva – e chovendo, o caminho que Rogério teria de percorrer era calmo e tranquilo.
Repentinamente, enquanto tentava avançar sob o forte vento que lhe empurrava para trás, eis que o seu celular toca no interior do seu bolso. Surpreendeu-se a princípio, entretanto, logo em seguida, com dificuldades, retirou o celular do bolso. Era uma mensagem. Postou a lê-la.
“Espero que não se molhe muito, amor”. Era sua namorada, preocupada com o fato de o rapaz se encontrar debaixo de uma chuva deveras forte.
“Eu também espero. Mas logo, logo estarei em casa”, respondeu o rapaz, enquanto tentava equilibrar o guarda-chuva.
Guardou o celular no bolso e postou-se a avançar pela Rua Padre José Maria Xavier – vulgarmente conhecida como Rua da Prata. As árvores do centro da rua, ampliadas pela escuridão daquela noite sem lua e pelos lampiões elétricos que serviam para iluminar a rua, deixava o local incrivelmente escuro – nem mesmo se conseguia enxergar com clareza as poças de água na calçada. Rogério avançou pela rua, sozinho – completamente sozinho, pois não havia nenhum carro ou nenhum transeunte no local. Continuou a avançar pela rua, enquanto seu celular tocou pela segunda vez. Era novamente Fernanda.
“Amor, precisarei que você faça um favor depois para mim.”
E Rogério postou-se a responder.
“Claro, amor. O que quer que eu faça?”
E Rogério continuou a avançar pela rua enquanto esperava a resposta de sua namorada. E ela veio exatamente no momento em que Rogério estava atravessando o encontro da Rua da Prata com o final da Avenida Tiradentes. Entretanto, Rogério não respondeu de imediato. Enquanto atravessava de um lado a outro a avenida – com extrema facilidade -, reparou que a mesma se encontrava completamente vazia. Nem mesmo os bares de esquina estavam com os comumente clientes, que lotavam os lugares nas noites de domingo. Até o Subway, à sua esquerda, estava fechado. Não havia nem mesmo algum carro, como normalmente ocorre. Estranhou o vazio repentino, pois aquela avenida se encontrava completamente lotada de carros e clientes quando Rogério levou Fernanda ao ponto de ônibus.
O rapaz sentiu um calafrio percorrer sua espinha e postou-se a apressar o passo. Lembrou-se do celular no bolso e o retirou do local. Fitou a mensagem de Fernanda.
“Teria como você vê um negócio em uma loja amanhã para mim, amor? Não sei se dará tempo para eu ver.”
“Claro, amor. É só pedir.”, respondeu Rogério, ainda andando pela Rua da Prata.
Aquele trecho da rua era mais escuro que o anterior e, pelo fato de o rapaz estar sozinho, tornava tudo mais assustador. Rogério postou-se a caminhar com mais velocidade, dando passos mais rápidos, mesmo que, para isso, ele tivesse que se molhar.
O rapaz atravessou o restante da Rua da Prata com extrema velocidade. Estava no seu final, frontalmente ao Memorial Tancredo Neves. Teria agora apenas atravessar a Ponte do Rosário – uma bonita construção colonial de pedra, datada do século XVIII – e a rua paralela ao Córrego do Lenheiro – principal córrego da cidade, que a atravessa praticamente de ponta a ponto - para chegar à sua rua.
Chegou ao final da Rua da Prata e fitou a rua que descia em direção à Praça da Biquinha. Não vinha nenhum carro. Nem ônibus ou bicicleta. Estranhou, pois sempre vinha algum carro, ônibus ou bicicleta. Nem mesmo do outro lado da Ponte. Estranhou aquele repentino esvaziamento da cidade.
Rogério atravessou a rua e chegou à entrada da Ponte do Rosário. Só se ouvia o barulho do Córrego do Lenheiro passando com força debaixo da ponte. O rapaz fitou o córrego, na parte esquerda da ponte, e o fitou bem cheio, tomando a mata ciliar adjacente e os vãos, em arco, da ponte – para os lados da Biquinha, onde o mesmo é mais baixo, já havia tomado grande parte da rua.
- Que chuva... – disse o rapaz
A ponte, por não ter nenhuma luz no seu interior, nem nas proximidades, estava completamente mergulhada na escuridão – só havia um pequeno filete de luz. Mas Rogério precisava atravessá-la de qualquer jeito. Era o caminho mais rápido para se chegar à sua casa.
Repentinamente, seu celular toca novamente.
“Que bom, amor. Fico agradecida. Você já chegou em casa?”
“Não, estou ainda na Ponte do Rosário.”, respondeu Rogério, colocando o guarda-chuva entre a cabeça e o ombro esquerdo e olhando com o pescoço completamente torto, para baixo, enquanto mexia no celular.
Guardou o aparelho no bolso, segurou o guarda-chuva com as mãos novamente e continuou sua caminhada dentro da Ponte do Rosário. Entretanto, naquele momento, tudo parou. Ele fitou, no interior da ponte, um estranho vulto, com silhueta humana – embora parecesse estar envolta em uma manta branca. Rogério sentiu sua espinha eriçar.
Fernanda estava no interior do ônibus, sentada em um banco perto da janela. Fitava a chuva que caía fortemente lá fora. Encontrava-se com o celular em mãos, pois estava conversando com Rogério. Acabara de respondê-lo, com uma mensagem assim escrita: “Espero que chegue logo em casa, amor.”, e esperava pela resposta de seu namorado. Entretanto, o tempo passou e esta não chegou.
“Amor?”, enviou Fernanda outra mensagem, após cinco minutos do envio da primeira. Achou estranho o fato. “Será que acabou a bateria?”, perguntou a si mesma.
E não houve novamente resposta. De fato, acreditou que a bateria do celular do namorado acabou. Já estava para guardar o celular quando a mensagem chegou.
Uma felicidade transpareceu no rosto de Fernanda, pois poderia continuar o seu trajeto até sua casa conversando com o seu namorado. Abriu a mensagem. A felicidade desapareceu do seu rosto e, em seu lugar, apareceu uma expressão de estranheza.
“Sob os céus, uma silhueta... sobre as águas, uma silhueta... sobre a terra, uma silhueta... sobre a terra, sob a água, uma morte...”, essa era a mensagem enviada por Rogério.
“Que mensagem é essa, Rogério?”, respondeu, em seguida, Fernanda. E, tão logo o celular enviou a mensagem, a garota batia o pé continuamente no ônibus. Estava afoita, tamanha a preocupação.
Não esperou muito para o seu celular tocar novamente. Pensou que aquela resposta retiraria a estranha dúvida que pairava no ar. Ledo engano. Aquela mensagem colocaria mais dúvida no ar já tomado por ela.
Assim estava escrita a mensagem: “Líquido vermelho corre unido ao líquido transparente”
“Amor, você está me assustando.”, enviou Fernanda. E realmente estava começando a ficar assustada. “Líquido vermelho, líquido transparente... do que está falando, Rogério?”, se perguntou Fernanda.
E, em questão de segundos, chegou uma terceira mensagem, tão assustadora quanto as anteriores. “A alma de um corpo esvaiu... agora, somente lembranças...”. Aquilo foi a gota d´água para Fernanda. Pegou o celular e ligou para Rogério. Chamou. O coração de Fernanda estava apreensivo no peito. Atendeu. O coração de Fernanda acalmou-se. Um sorriso apareceu no peito.
- Amor... – dizia Fernanda, entretanto, sua fala foi interrompida por uma fala oriunda do outro lado da linha
- Os gritos do inocente ecoaram pelo vazio interminável da escuridão nefasta... – assim disse a pessoa do outro lado da linha. Possuía voz grave, de baixo ou baixo-barítono, beirando ao gutural.
Ao escutar a voz – que evidentemente, pela reação de Fernanda, não era a de Rogério -, Fernanda gritou, largando o celular. O grito da garota ecoou por todo o ônibus, chamando a atenção de todos e, fazendo, inclusive, o motorista parar o automóvel.
Fernanda estava com a mão tremendo, tamanho o nervosismo.
- O que aconteceu, mocinha? – perguntou o cobrador – Está tudo bem?
- Namorado... – cochichou a garota.
- Oi? – perguntou o cobrador, sem ouvir o que a garota disse
- Meu namorado...
- O que tem ele?
- O telefone... – respondeu – Meu namorado...
- O que tem o seu namorado?
- Meu namorado... sumiu... e... havia... uma voz...
Todos no interior do ônibus se assustaram.
- Acalme-se. – disse uma senhora, sentada próxima a ela. Abraçou-a, envolvendo seus braços em sua cabeça. Começou a niná-la. – O que aconteceu?
- Meu namorado... sumiu... – repetiu a garota, entre soluços
- Onde ele sumiu?
- Na Ponte do Rosário... – respondeu Fernanda. Lágrimas de desespero começaram a verter de seus olhos
- Liga para a polícia. – disse o cobrador
- Eu vou... até lá. – ela disse, limpando o rosto. Precisava verificar por conta própria, ainda que a polícia estivesse junto. Pediu ao motorista para que descesse no próximo ponto, o que foi atendido pelo mesmo. Desceu as pressas do veículo e correu em direção ao outro lado da Avenida Leite de Castro - uma das principais vias da cidade, que liga o centro a dois grandes bairros de São João del Rei, o Matozinhos e a Colônia –, atravessando o canteirão central. Avistou um ônibus se aproximou e correu em direção ao ponto de ônibus, a tempo de não perder a condução. Embarcou no veículo rumo ao centro da cidade novamente.
O ônibus atravessou normalmente a cidade, passando pelas vias próprias para aquela locomotiva. Em poucos minutos, o motorista chegou ao final da Avenida Tiradentes, onde estava um grande contingente de carros e pessoas, que lotavam os bares da região, dificultando, assim, o progresso do ônibus. Este chegou à Rua da Prata e virou, em direção à Ponte do Rosário. Atravessou o restante da rua calçada com paralelepípedos.
O coração de Fernanda começou a apertar no peito. Estava afoita. O ônibus parou no final da Rua da Prata, frontalmente à Ponte do Rosário, onde avisou a todos ser impossível o progresso do itinerário, pois a Biquinha estava completamnete tomada pela água. Fernanda pouco se importou. Apenas desceu do ônibus tão logo as portas foram abertas e correu em direção à ponte, mergulhada sob a chuva. Percebeu não haver nada, nem ninguém. Chegou à ponte e postou-se a atravessá-la, a passos largos. Fitou algo, jogado no canto da ponte. Foi até o local. Era uma muda de roupa. Percebeu ser a muda de roupas que Rogério estava usando quando a levou no ponto – uma camisa branca e uma bermuda verde, além da cueca vermelha, com o cós preto -, cerca de vinte a trinta minutos atrás. Ao lado da muda de roupa, estava o guarda-chuva usado pelo rapaz, aberto, e o celular, enxergado por se encontrar sob a água da chuva.
Fernanda ajoelhou-se diante do local e chorou. Sabia que nunca mais veria o seu namorado, pelo menos não mais vivo.
Na manhã do dia seguinte, quando a água do Córrego do Lenheiro baixou, todos puderam avistar o corpo de Rogério enforcado com uma corda comum logo abaixo da Ponte do Rosário. Estava completamente sem roupas e em avançado estado de putrefação, supostamente por ter sido mergulhado na água.
O corpo foi para o IML fazer o auto de corpo de delito, enquanto dois policiais realizavam perícia no local. Entretanto, quando os policiais estranhamente foram jogados “por uma força superior” no interior do Córrego do Lenheiro, quando estavam sobre a Ponte do Rosário – morrendo ambos na queda - o inquérito foi encerrado, o corpo foi rapidamente enterrado e ninguém mais tocou no assunto... Só se sabe que ninguém mais atravessa a Ponte do Rosário estando sozinho e de noite...