Despertados

- Estou pronto! – as palavras mal saíram de sua boca e já continham um tom de arrependimento. O homem à sua frente choramingava, hesitava com a arma tremendo em mãos Poucos milésimos de medo tomaram conta de seu corpo e congelaram seu peito.

Poucos milésimos.

A explosão veio com o puxão do gatilho, liberando o projétil que o jogaria em direção aos braços da morte. A bala perfurou seu peito no lugar onde deveria; sentiu a pele e os músculos se abrindo, cedendo passagem para que o projétil alcançasse seu destino. Chegou num instante. O coração parou. Seu corpo caiu, com a mesma expressão de medo.

Uma eternidade se passou.

Grunhido. A mesma sala ainda estava lá. Um teto e uma lâmpada fluorescente que oscilava estavam ao alcance de seus olhos. Apoiou-se num braço e tentou se levantar, mas quase escorregou numa poça de sangue. As cores haviam sumido de sua visão; tudo estava preto e branco. Cambaleou até a porta, esbarrando em cadeiras e mesas viradas, e finalmente a empurrou.

A cabeça do homem latejava de tal forma que ele só conseguia gemer e grunhir de dor. Apoiou o cotovelo na parede e ficou lá, esperando a dor passar, o que se mostrou inútil. Alguns vestígios de sua antiga consciência indicavam que ele estava num hospital abandonado. Voltou a caminhar pelo corredor escuro apoiando-se na parede.

Ouviu um som. Vozes. Em seguida, cheiros, que o deixaram satisfeito. Havia vida naquele lugar, e aquilo lhe deu ânimo. Descobriu que estava faminto. Cambaleou mais rápido até a origem dessas manifestações, enquanto luzes tremeluziam acima dele ao atravessar o corredor.

Havia corpos estirados no chão em diversas posições e tamanhos, mas com o mesmo cheiro de morte. Uns estavam sem as cabeças, outros sem os braços ou uma das pernas. Um deles estava com um cutelo fincado no meio do crânio. Havia também revólveres, facas e espingardas jogadas por ali.

Todos dividiam a mesma banheira de sangue, que se estendia também pelas paredes.

Mas o homem passou vagarosamente por eles sem se importar.

Cambaleou até uma porta entreaberta, de onde saíam vozes que o homem não compreendia. O forte cheiro o atraiu, fazendo-o empurrar a porta.

Lá dentro, dois homens e uma mulher gritaram.

***

Steve se afastou com brusquidão e caiu na cama atrás dele:

- Oh meu Deus! Henry?

Anna se agarrou ao braço de Brandon e o afastou do zumbi. Ele pegou um taco de madeira e o colocou em riste. Uma estocada nas têmporas fez o monstro se afastar.

- Brandon, você… – berrava Anna, esganiçada.

- Eu o matei, atirei em seu peito, como assim? Vocês estavam lá, vocês viram!

- Deveria ter sido na cabeça, seu idiota!

Anna pegou uma cadeira e virou-a exibindo suas quatro pernas. Entre uma investida e outra ela tentava afastar o morto-vivo para desviar um pouco de sua atenção do Brandon.

- Perdão, Henry!

Steve arrebatou da cama com uma faca em mãos e a enfiou na garganta do amigo morto. A faca entrou, e a cada força a mais que fazia para enterrá-la, mais chorava.

O zumbi agarrou seu corpo e o mordeu na bochecha, arrancando pele e carne.

- NÃO! – gritaram em uníssono Anna e Brandon.

A mulher chorava, rouca e atônita, mas Brandon aproveitou o momento e acertou o taco no crânio de Henry com o máximo de força que conseguia. O zumbi grunhiu e caiu, e Brandon se desequilibrou com o esforço.

Steve sangrava, soluçava, lançava olhares ávidos aos dois amigos em busca de socorro.

Mas todos sabiam que era tarde.

Brandon fechou a mão no pulso de Anna e a puxou.

***

Muitas portas do hospital foram escancaradas, dentre elas laboratórios e cozinhas. Brandon e Anna reviraram tudo e em seguida corriam com uma série de objetos metálicos tilintando em seus bolsos como bisturis, facas, canivetes. Em mãos, tinham tacos, barras de ferro.

Mais grunhidos foram ouvidos no andar de baixo.

Os dois pararam no elevador, cujas luzes do mostrador davam curto circuito.

- Não há como fugir. O térreo está tomado – observou Brandon.

Um grito gutural disparou pelo corredor como a voz do demônio. Os pelos da nuca de Brandon se arrepiaram. Os dois iniciaram uma correria desenfreada.

Subiram um lance de escadas, mas quase no fim, Brandon escorregou atrás de Anna. Ela se virou, em pânico, enquanto a cabeça de Steve surgia lá embaixo, com seus dentes sedentos por carne surgindo através da bochecha em falta.

- Anna! – trovejou Brandon, desesperado.

Steve pulou sobre ele, e Brandon empurrou o rosto do morto para trás para não ser mordido.

- Anna! Ande logo! – insistiu Brandon, quase cedendo ao peso do zumbi.

A mulher havia voltado com um extintor, e no momento seguinte tudo foi resumido a fumaça branca. O zumbi gemeu assustado, e Brandon forçou seu corpo para longe do dele; empurrando, chutando, sentindo a presença do monstro sem vê-lo através das cortinas brancas. O monstro urrou após sentir uma pancada metálica em seu rosto desfigurado. Brandon se levantou e subiu junto com Anna.

***

Empurraram uma porta dupla da enfermaria e arrumaram um objeto longo e resistente para prender a porta.

- Vamos morrer! – desabafou Brandon, ofegante.

- Não fale assim… por favor! – Anna insistiu, segurando suas mãos.

Brandon lutava para formar palavras.

- Há centenas deles lá embaixo! Nunca passaremos! Estamos condenados… para sempre…

Anna o calou com um beijo na boca.

Quando ela afastou o rosto, os dois ainda estavam de olhos fechados, saboreando o que tinha acontecido. Havia um silêncio. Um longo e tranquilo silêncio. A tensão ficava em segundo plano, ao menos naquele momento.

- Aproveite o silêncio… pode ser o nosso último – sussurrou Anna, deitando-se na cama da enfermaria com ele.

Brandon e Anna se amaram.

***

O casal ficou abraçado por um tempo. Quando escutaram os urros crescendo do lado de fora, se empertigaram. Brandon foi colocar sua camisa quando o olhar de Anna se deteve numa ferida em seu antebraço. Uma abertura pequena e aparentemente inofensiva. O homem olhou assustado para Anna e em seguida para o próprio machucado, balançando a cabeça de forma sutil e negativa.

- Não, não…

- Você foi mordido… – aquilo foi mais um lamento do que uma constatação.

Naquele momento, sirenes foram ouvidas da janela.

Anna foi até lá, mas Brandon permaneceu sentado, o olhar desolado e sem vida. A mulher pôs cabeça para fora da janela e foi ofuscada por diversos feixes de luz.

- Não está infectada. Pule, senhora! – alguém gritou usando um megafone. Bombeiros, policiais e militares estavam lá embaixo. O hospital estava em quarentena e uma grande rede elástica havia sido improvisada para resgate.

Anna não evitou olhar de volta para Brandon, que a encarava de um jeito que a fez lacrimejar.

- Vá – ordenou Brandon.

- Não! – ela chorou, indo até ele. Brandon a afastou de perto de seu rosto.

- Não me beije, Anna. Estou infectado. Estou morto…

As batidas na porta da enfermaria começavam, enchendo o ar de grunhidos malditos.

- Vá logo! Por favor!

Anna correu até a janela, antes que se arrependesse. Ela passou uma perna, depois a outra, e olhou para trás. Disse “eu te amo”, mas a voz não saiu. Mesmo assim, Brandon consentiu.

Anna pulou, com a imagem dele ainda em sua retina.

***

Nove meses depois…

Havia sentido as contrações e gemido bastante até alguém levá-la ao hospital do outro lado da cidade. Anna rangia os dentes enquanto a maca a carregava até a sala de partos. Luzes piscavam na frente dela, vozes tentavam amainá-la, e as rodinhas faziam um barulho agudo e irritante nos corredores.

“Nosso filho está vindo, Brandon”, ela pensou. De certa forma, acreditava que uma parte de Brandon ficara nela, não apenas em seu coração, mas também em seu ventre. Aquele bebê a ajudaria a se lembrar daquele homem. Por outro lado, tudo aquilo a deixava com um gosto ácido na boca. A última vez que estivera num hospital…

Chegaram à sala e o doloroso procedimento se iniciava. Anna inspirava, expirava, inspirava, expirava, conforme as orientações da enfermeira e do médico aguardando o bebê sair do meio de suas pernas. Seu rosto estava bastante vermelho e suava.

- Muito grande este menino – comentou o médico.

- Respire, respire. Vamos lá – orientava a enfermeira ao seu lado.

- Vai ser difícil – constatou o médico novamente, dando orientações a uma das enfermeiras.

As vozes se misturavam até parecerem um enredo de sons ininteligíveis. A visão das enfermeiras, do médico e das luzes na frente de Anna se tornava embaçada e cedia à escuridão. Tudo se foi.

Quando acordou, não havia volume em sua barriga. Levantou o pescoço do travesseiro e viu o médico tendo uma conversa tensa com a enfermeira. Calaram-se ao notar que Anna estava acordada. O médico se aproximou; a enfermeira embalava o seu filho.

- Dê-me meu filho, o que ele tem? – perguntou a mãe, preocupada.

- Senhora Anna… – começou o médico.

- O que aconteceu? Quero vê-lo. Enfermeira!

A enfermeira se virou com um rosto desolado.

- Ele está morto.

***

Anna chorava. Pegou seu filho natimorto nos braços e o encarou através de um olhar devastado.

- Há necrose em muitos pontos de seu corpo. Parece-me que já estava morto antes mesmo do parto terminar, senhora Anna. O coração não batia. Não faço ideia de como isso foi acontecer, não há explicação… – confessou o médico, assustado.

As lágrimas da mãe salpicavam o pequeno corpo do bebê.

Um dedinho dele se mexeu.

Anna se arrepiou. Olhou assustada para o médico e depois para a enfermeira, que não perceberam. “Foi impressão minha”, disse Anna para si. “Não estou bem da cabeça. Meu bebê está morto…”.

Foi quando a lembrança de Brandon naquela noite a assaltou de repente. Eles na enfermaria do antigo hospital, se amando uma última vez nesta vida. E então o motivo pelo qual Brandon não havia se salvado junto com ela…

O bebê abriu os olhos.

FIM.

Gibran Lahud
Enviado por Gibran Lahud em 15/03/2015
Código do texto: T5171191
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