O PALHAÇO - DTRL21

Tema: Palhaços

Jane estava sentada na beira da piscina daquele motel vagabundo de beira de estrada. Os pés descalços se agitavam submersos na água lodosa e cheia de ovas de insetos. A piscina fazia ondinhas que molhavam a barra do jeans surrado. No auge dos seus treze anos, ela esperava o pai terminar o check— in na recepção. Sua expressão não se modificou. Não até ela escutar os passos abafados vindos de algum canto sob aquela tarde cobreada... Passos emborrachados no piso de cimento. Foi o único momento que suas feições ficaram mais leves. Seu rosto carrancudo ganhou expressões infantis e Jane ficou realmente bonita. Os olhos azuis brilharam quando ele chegou.

Por um instante teve medo porque pensou que era seu pai, mas estava enganada. O pai ainda demoraria. Desde que a mãe morrera naquele acidente de carro ele costumava demorar. Sempre agindo vagarosamente como um cão desconfiado. Ficava quieto, silencioso por longas horas e muitas vezes Jane achara que estava morto. Mas todas essas coisas aconteciam há quatro anos. Jane já estava acostumada.

— Olá Jane, como vai? — a voz era doce, de um tom grave amistoso. Arrastado como é o sotaque sulista. Não era como a voz do pai: trêmula e sem confiança. Perdida como costuma ser a caixa vocal de um homem que bebe de mais e trabalha de menos.

— Olá senhor McQueen. Achei que não me veria mais.

O palhaço sentou ao seu lado. Assim como Jane ele colocou os pés descalços na água da piscina. Havia certa melancolia naquele gesto. A Georgia era fria naquela época do ano e ele apertou os braços contra o corpo protegido por um velho moletom. Tremeu os lábios vermelhos. Lábios rubros de palhaço.

— O senhor McQueen tem andando ocupado mocinha. Nessa época do ano muitas crianças andam tristes e precisam de um pouco de alegria no coração. — o palhaço sorriu e tocou a ponta do nariz da garota com o dedo indicador. Jane não sorriu de volta. — espero que você entenda.

— É. Eu entendo.

— Como vão as coisas?

Ela apenas encolheu os ombros.

— Ainda se mudando muito? Quero dizer, você e seu pai...

— Sim. Não paramos em lugar nenhum. Nos mudamos a cada três meses, mais ou menos.

— Os homens maus?

— Sim. Os homens maus.

— É um saco não é?

— É. Um saco.

Jane sorriu e o palhaço McQueen sorriu também. No instante seguinte os dois caíram na gargalhada. A garota gostava daqueles momentos. Eram instantes que não poderia ter com o pai. Ele estava sempre ocupado. Sempre quieto. Sempre triste e assustado.

— E os garotos, Jane? — Perguntou McQueen.

Jane sentiu o rosto corar.

— Garotos?

— Você é uma menina tão bonita... — O palhaço afastou os cabelos loiros dela da testa suada. — Não vai me dizer que não tem namoradinhos?

— Bom... Tem um garoto... Rick...

— E vocês se beijaram?

Jane engoliu em seco. Ficou chocada ao perceber que podia se ver refletida no rosto pálido do palhaço. A luz não era nada boa, mas era boa o suficiente para Jane ver a própria face naquela cara branca como mármore.

— Só uma vez. No fundo da casa daquela garota metida a...

— E seu pai sabe disso, Jane? — A voz de McQueen ainda era doce, mas um pouco mais severa agora. Jane teve medo. Ela não respondeu. Balançou a cabeça numa negativa e baixou os olhos para o moletom velho do senhor McQueen . O mesmo moletom da George Tech que o pai usava, as vezes. — Ele te tocou, Jane?

Jane sentiu o rosto arder. Nunca ficara tão corada antes. Ela tentou encarar os olhos de besouro do palhaço, mas era impossível. Se fosse o pai... ah, encarar o pai era mais fácil. Ele quase sempre estava bêbado ou drogado demais.

— Não, senhor McQueen. Ele não me tocou. Não desse jeito.

O que pretendia ser um sorriso se alargou como um rasgo monstruoso no rosto do palhaço fazendo os tufos de cabelos azuis se moverem. As mãos delicadas deslizaram através do pescoço magro da garota. Mas os dedos magros como aranhas não avançaram muito. McQueen as deixou quietas no limite das omoplatas de Jane, alguns centímetros de onde dois seios pequenos apontavam acusadores como velhas tagarelas na igreja.

— Você cresceu, querida. Está ficando cada vez mais bonita. Esse tal de... Como é mesmo o nome do rapaz?... Rick... É um garoto de sorte.

— Não é. — disse Jane sem muita emoção — Foi uma armação.

— Perdão?

— Rick queria beijar Tina. Disseram que Tina iria encontrá- lo no barracão. Mas me enganaram. Tina disse que era eu quem Rick queria beijar. Fui uma tola...

O palhaço continuou sorrindo.

— shhhh... — McQueen fez um gesto de zíper fechando nos próprios lábios e depois fez o mesmo nos lábios da garota. Jane sorriu e seus olhos brilharam. Eles encararam os olhos do palhaço pela primeira vez naquele fim de tarde. Eram os mesmos do pai. Iguais em forma e cor. Mas consideravelmente mais dóceis e amáveis.

— Onde está seu pai, Jane?

— Fazendo o Check— in. Você viu o cara do balcão? Aquele homem negro vestindo um jaquetão de hóquei? — perguntou Jane. O palhaço confirmou — Papai vai acabar discutindo com ele porque não gosta que os negros roubem os esportes dos brancos... Ele diz que a raça deles já tem o basquete...

— Então seu pai continua se metendo nestes tipos de confusões? Neste tipo também, Jane?

Jane meneou a cabeça.

— O tempo todo.

— Sinto por isso.

— Não precisa sentir.

O Palhaço a abraçou. Ela permitiu se envolver naquele abraço quente e demorado. Tentou controlar a respiração porque sabia que estava ofegando rápido demais. Vergonha e medo. Mas havia alguma coisa a mais, não havia? Excitação talvez. Jane gostava daquilo de uma forma esquisita. Mas talvez gostar não fosse a palavra certa. Existia uma palavra para definir prazer e dor na mesma sentença? Ela não sabia.

— Você é tão bonita Jane. Tem o cheiro da sua mãe...

"E você tem o cheiro do meu pai.", Jane pensou. Fechou os olhos e lágrimas peroladas escorreram quentes no seu rosto frio. Havia um turbilhão de sentimentos que preenchiam sua cabeça de uma maneira vaga e desconectada. Em algum lugar, o rouco pio de um mergulhão preencheu o ar cinza com seu canto.

O Palhaço cujo nome era McQueen disse alguma coisa, mas Jane não ouviu. Sua cabeça agora girava na direção de seu passado no interior rural do Alabama. Ela se lembrou de quando a filha do reverendo colocou a boca no pênis daquele garoto gordo que andava numa bicicleta vermelha e enferrujada. Todos riram dela, inclusive Jane. E escreveram "vadia" no banheiro; e a garota chorou tanto que se mudou para algum lugar onde ela poderia começar de novo; e Jane gostaria de começar de novo; e Jane não podia...

"há um quarto", o palhaço disse. E Jane disse "hum hum".... "Você é tão bonita." E as mãos frias dele — mãos de homem — procuravam os seios pequenos dela. E o palhaço sussurrou alguma coisa. Sons... Os sons arrastados daquele monstro chamado sexo se aproximando sorrateiro. O monstro indeterminado. Indefinido. Chamado de "aquela coisa" ou "aquilo"... "Ah como seria bom", Jane pensou. Como seria bom se aquelas garotas que xingaram a filha do reverendo soubessem o quanto poder tinha aquele monstro. O quanto ele podia ser poderoso e altamente destrutivo...

Uma lufada de ar invadiu seus pulmões quando o palhaço a beijou. Jane estava consciente da mancha de maquilagem vermelha que cortava seus próprios lábios agora como a marca acusadora de um crime brutal. Por alguma razão ela pensou no cheiro de madressilvas e agrotóxicos.

— há um quarto Jane. — repetiu o palhaço.

— Certo. — Disse Jane.

— Sinto muito por isso.

— Faça ser rápido.

— Eu prometo.

— Tenho medo.

— Não tenha medo, docinho.

O palhaço ainda abraçava a garota, mas se afastou quando o som de um par de botas acusaram a chegada de uma terceira figura na área da piscina. Jane elevou a cabeça e viu que era o recepcionista negro, ainda enfiado naquele jaquetão de hóquei.

— Está tudo bem aqui? — perguntou o recepcionista desconfiado. O crachá no peito dizia que seu nome era André.

— Está tudo ótimo. — respondeu o palhaço. Sua voz agora não era doce, tão pouco agradável, mas de uma rispidez cortante, quase agressiva. André sorriu amarelo.

— Não perguntei para você, amigo.

André agora encarava Jane, mas ela não respondeu. Havia alguma coisa errada. Alguma coisa muito errada. Com um toque delicado ela encostou a ponta dos dedos nos próprios lábios. Alguma coisa errada...

— Eu já disse que está tudo bem, 'brô'... — disse o palhaço — porque não volta para seu trabalho ou seja lá o que gente como você faz.

A voz do palhaço era distante agora. Se perdia como um coelho entrando cada vez mais fundo na sua toca. Jane ergueu os dedos diante dos olhos. Tão próximo que ela podia ver as linhas digitais dançando no seu campo de visão. Algo fez seu coração disparar como um choque ligeiramente áspero saltando da escuridão. Os dedos brancos estavam tão limpos quanto poderiam estar. Completamente imaculados.

— Porque não diz para o senhor adoro-cuidar-da-vida-dos—-outros que está tudo bem, querida?

Jane encarou o palhaço. Um aroma forte, penetrante, grosseiro deslizava debaixo das suas narinas. Um cheiro de bebida e tabaco. Então, um sentimento tão intenso de realidade tomou conta dela que era como se algum demônio acabasse de acordar no interior do seu ventre.

— Querida? — perguntou o palhaço. Só que agora não era mais o palhaço Mcqueen. A maquilagem branca escorria como leite e o batom vermelho pingava através do queixo, manchando o moletom do homem. Mas aquela tinta não estava ali estava?

— Garotinha? Chega disso, vou chamar a polícia. Agora!

Ligeiramente consciente de que o palhaço — ou meio palhaço — havia se levantando e cambaleado na direção do negro chamado André, Jane abriu a boca e balbuciou meia duzia de palavras:

— está tudo bem. — Jane respirou fundo — Ele é meu pai.

#####Nota do autor:#########

Aqui estou em meu terceiro desafio. Me afastei durante um tempo da atividade da escrita por motivos pessoais e sinto um grande prazer em dizer que estou de volta!

Os temas desta edição do DTRL foram difíceis, principalmente no que diz respeito a criar uma história original que fugisse dos clichês. Este foi meu objetivo. Criar um terror - como costumo chamar - sofisticado no sentido de ir além do sangue e jugulares rompidas. Explorar a natureza humana - ou pelo menos tentar - em sua complexidade, mesmo que isso signifique escrever sobre um sub-tema tão nefasto como a pedofilia e incesto.

Peço desculpas desde já por eventuais erros e problemas no texto. Estou a muitos meses sem escrever uma linha de ficção e creio estar bastante enferrujado e o que já era ruinzinho, deve estar ainda pior rsrs. Conto com os comentários para que eu possa melhorar!

Isaac Räja
Enviado por Isaac Räja em 15/03/2015
Reeditado em 15/03/2015
Código do texto: T5171042
Classificação de conteúdo: seguro
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