O voo 0813
Acidentes aéreos são relativamente raros. Mais raros ainda se se analisar as estatísticas de voos diários e acidentes pontuais. Com exceção de um ou outro país mais avacalhado, onde a somatória de corte de custos mais manutenção mal feita, resulte em pelo menos três acidentes por ano. Na maioria dos lugares sérios, passam-se décadas sem se ter uma queda de avião.
Teoricamente, este é o problema. Cabalísticamente falando, é necessária uma cota de almas por ano para manter o ciclo de encarnação e reencarnação funcionando. E como cada vez tem menos gente morrendo por causa dos progressos da medicina, da sanitização e da qualidade de vida. E mais gente nascendo, por causa da sexualização precoce da população, e da total falta de descaramento, principalmente no carnaval, o sistema cármico de determinados países tem de dar um jeito:
O telefone tocou exatamente à meia-noite.
-Alô!
-Gostaria de falar com a senhorita Shirley!
-É ela...
-Parabéns! Você acaba de ganhar um pacote completo para o resort ilhas caribenhas! Com translado para o aeroporto, hotel, além de quinze dias de hospedagem com café da manhã, almoço e jantar!
-Isso lá é hora de passar trote, maluco?
-Não é trote senhorita. Amanhã chegará pelo correio todos os itens do pacote a que fez jus.
-E por que cargas dágua, se isso for verdade, eu ganhei?
-A senhora foi escolhida por simples acaso entre sete milhões de pessoas do seu país.
-Humpf. Duvido! - e desligou o telefone.
Na manhã do dia seguinte a campainha toca em som de sino. Era o correio, pontualmente, entregando um pacote. Quando Shirley abriu, a surpresa. Passagem aérea, check-in do resort mais famoso do Caribe, brindes, auxilio financeiro, e outros mimos.
Só então ela percebeu que era verdade e tinha tirado a sorte grande. Ligou para todas as amigas, para fazer inveja. Ligou para o ex-namorado, para esfregar na cara dele. Fez até uma festa no dia anterior.
Uma van veio buscá-la na porta de casa. Levou ela praticamente no colo até o aeroporto.
Lá estava ele, um Airbus A380 de três andares de altura! Dava medo só de olhar. Totalmente distinto das latas velhas que Shirley estava acostumada a esperar nos pontos de ônibus chulé, ao lado de casa.
E ao embarcar? Nada de gente suada esbarrando, reclamando, deitando na cadeira como se deitasse na cama de casa. Apenas gente fina. Cheirando Christian Dior e carregando bolsas Louis Vuitton...
Era tudo um sonho. Shirley estava onde queria. Ela nasceu para aquela vida.
E lá foi o jato...
O dia estava perfeito. Céu limpo e completamente azul.
Uma hora de viagem e ninguém viu a cara do piloto e nem a da tripulação.
Duas horas de viagem, e todos continuavam sem ver a cara da tripulação.
Um senhor, mais impaciente, levantou-se para ir tirar satisfações com o piloto na cabine do avião.
Passaram-se vinte minutos, trinta, quarenta, e nada do homem voltar.
Shirley tomou a iniciativa, era uma ótima maneira de se enturmar. Dirigiu-se até a cabine do avião. A porta entreaberta batia de leve. Um pé de sapatos parecia impedir a porta de se fechar.
Quando ela abriu, não podia acreditar no que estava vendo. Ela tentou desmaiar, mas não conseguia, tal o assombro!
O velho estava caído no chão, branco como uma folha de papel. Na cadeira do piloto, um esqueleto do que houvera sido um dos comandantes do último voo a se acidentar. O crânio dele girou na direção dela, fitou-a bem fundo nos olhos, e disse:
-Volte e aperte os cintos. Teremos um pequeno distúrbio no voo.
Nunca mais se ouviu falar dela.