O Misterioso Caso do Senhor Duarte
Nota: a história prestes a ser revelada é totalmente verídica e contemporânea. Publicação autorizada pelas partes diretamente envolvidas, desde que preservadas suas identidades e localidade dos acontecimentos. Especifico ainda que a obra a seguir não tem diálogos, o que pode torná-la maçante para certos leitores.
_________________________________________________ Femina
Geralmente é esperado que histórias fantásticas e aterrorizantes aconteçam em lugares isolados, com pessoas interioranas e pacatas; remonta o pensamento tradiconal a cabanas afastadas da sociedade, espantalhos em roças, famílias inteiras vivendo retiradas da sociedade e capazes de cometer as mais indizíveis barbáries, como nos - mal construídos, em sua maioria - filmes do Rob Zombie, que consegue ter uma banda ainda pior do que os roteiros, se me permitem o desabafo.
Mas os fatos que serão descritos fogem a esses estereótipos. Anselmo Duarte sempre viveu na Capital; nasceu e cresceu acostumado às evoluções da civilização, enfrentando diariamente na idade adulta o trânsito conturbado, o barulho das ruas e a vida corrida que é típica das cidades grandes.
Trabalhava em uma empresa de comuniações e markenting e tinha já por volta dos seus cinquenta anos quando as coisas começaram a acontecer.
Como a profissão requeria, Anselmo sempre foi um homem muito comunicativo, de fácil trato e benquisto por todos que o conheciam e conviviam com ele. Era geralmente bem humorado e dominava as tecnologias de hoje, não abrindo mão, por exemplo, de seus perfis nas redes sociais e de aplicativos em geral. Não era casado e não tinha filhos, vivia sozinho em um bairro próximo ao centro da cidade e lidava aparentemente muito bem com isso. Um namorico aqui, um flerte ali, nada além. Transparecia ser uma pessoa feliz.
Antes de prosseguir, gostaria de deixar claro que não é minha intenção fazer acreditar em esta ou aquela crença, superstição, seita ou mesmo vertentes do ocultismo e teorias da conspiração; apenas intenciono trazer ao público leitor amante do insólito tanto quanto eu coisas como a que ouso publicar, sem a menor pretensão de ser tendenciosa, até porque eu mesma ainda busco, para os fatos acontecidos, uma explicação clínica.
Um dos passatempos preferidos de Anselmo era revirar a internet em busca de sites curiosos e coisas virtuais que pudessem ser um campo propício à publicidade. Gostava de estar ciente das novidades da rede e ao mesmo tempo encontrava assim uma distração para as horas vagas em seu apartamento.
Foi em uma noite quente de janeiro último. Já eram quase dez da noite e Anselmo conversava com alguns amigos em uma famosa rede social, quando recebeu uma mensagem "inbox" de um de seus mais de mil amigos (um que ele não lembrava de conhecer) com um link e a seguinte mensagem:
"Para todos aqueles cuja a curiosidade é aguçada. Mensagem livre de vírus."
Logicamente que pensou ser vírus! Mas Anselmo era realmente curioso e tinha um anti-vírus pago bastante eficiente... Resolveu abrir; "nenhuma ameaça detectada".
Tratava-se do site da conhecidíssima estação de números UVB russa. Para quem não conhece, sugiro que, antes de continuarem com a leitura, façam uma breve pesquisa a respeito, porque é um tanto complexo de explicar. O que me cabe, para elucidar essa história fantástica especificamente, é dizer que tais estações de número são antiguíssimas e estão no ar até os dias atuais, embora não haja mais ninguém as operando (são como estações de rádio que funcionam em determinada frequência).
Ora, a existência daquela estação, com transmissão ao vivo pela internet, não era nenhuma novidade para Anselmo! Ficou até um tanto desapontado. Simplesmente minimizou a página do site e esqueceu, como se tivesse acostumado com o ruído constante semelhante a uma rádio fora do ar que a estação emitia. Lá pela uma da madrugada, ainda entretido com o bate-papo da rede social e entre um vídeo curioso e outro que seus amigos enviavam, foi surpreendido com uma transmissão da UVB-76. Era uma voz feminina transmitindo uma sequência numérica (como toda a estação de números). Anselmo ficou ouvindo, descompromissado em entender qualquer coisa, afinal de contas, ora eram números em inglês, ora - provavelmente - em russo. Mas o que lhe chamou a antenção é que a sequência estava muito longa, seguida por um bip entre cada sequência de quatro números. Foi quando percebeu algo incomum, que foi a seguinte mensagem:
"One, nine, six, four (bip) six, four, localization, brazil, a.d.".
Ué - pensou de cara - transmitiu palavras! Ele não tinha reparado bem no "a.d.", e como a transmissão do site não permitia "retroceder", ficou com as palavras "localization" e "brazil" na cabeça. Por um instante pensou que se tratasse de uma falsa transmissão ou algo assim. Até chegou a comentar o acontecido com alguns amigos na rede social, e inclusive foi por isso que se atribuiu os eventos subsequentes a esse estranho acontecimento.
Desde que ouviu aquela transmissão, nos dias que se seguiram, anselmo sempre acessava o site, mas não obteve nada de diferente do "normal" no que diz respeito às transmissões dessas estações de números. Uma semana depois, desistiu de ouvir. A vida seguia normal, até aquela manhã chuvuosa...
Anselmo estava trabalhando em seu escritório quando, por conta da chuva forte que caía, o prédio ficou sem luz. Sem o computador, seu principal meio de trabalho, e com o celular sem sinal, simplesmente levantou-se e foi olhar a chuva da janela. Como num passe de mágica lembrou exatamente dos dados daquela transmissão. Rapidamente, pegou um bloco de notas e anotou: "One, nine, six, four (bip) six, four, localization, brazil, a.d.". Ele simplesmente lembrou, provavelmente deve ter sido como se ele tivesse ouvido as palavras novamente. Em seguida, a luz voltou e Anselmo colocou no meio de uma agenda o papel com a anotação que havia feito.
Daquele dia em diante as coisas ficaram realmente estranhas. Uma de suas amigas virtuais mais chegadas estava preocupada, porque ele havia lhe dito que o tal papel com a anotação que fez e deixou no escritório dentro de uma agenda apareceu dois dias depois debaixo de seu travesseiro, e que tinha notado isso pela manhã, ao remexer-se na cama... O assunto acabou se espalhando e as pessoas já estavam preocupadas com Anselmo. Andava faltando ao trabalho, com má aparência e muito distante, completamente o oposto do que costumava ser.
A gota d'água no emprego foi uma briga com o chefe. Por uma discussão básica de coisas cotidianas dentro de uma empresa, Anselmo teve uma reação absurdamente exagerada, agarrando o velho homem do pescoço e, se não fosse a intervenção de colegas, teria o estrangulado. Na vida pessoal tudo estava descompassado também. Passava dias sem contatar ninguém, desligou-se completamente de sua vida virtual, e ficava horas trancado em casa fazendo sabe-se lá o quê.
Já faziam semanas que Anselmo não dava as caras sequer na porta do apartamento. Os vizinhos de andar resolveram, antes de qualquer coisa, contatar a família. Sabiam de uma tia que morava em uma cidadezinha próxima, descobriram seu endereço e telefone e avisaram da situação do sobrinho e toda vez que tocavam a campainha ele respondia "agora não posso!" com um tom de voz completamente bizarro.
A tia em questão era a irmã mais nova da falecida mãe de Anselmo, e não via o sobrinho há quase dois anos, mas era a única família mais próxima que ele possuía. A mulher sentiu-se na obrigação de fazer algo, e foi até o sobrinho. Quando não conseguiu fazer com que Anselmo lhe abrisse a porta, chamou as autoridades, que arrombaram o apartamento.
A cena que encontraram foi realmente triste. Anselmo estava sentado em uma cadeira de madeira, próximo a uma janela que dá para a rua em frente ao prédio, com as cortinas fechadas, todas as luzes apagadas, segurando próximo ao ouvido esquerdo um antigo rádio à pilha que ele usava como decoração da sala. O rádio estava desligado, e nem poderia ser diferente, já que não funcionava há anos, e tratava-se de uma relíquia de família, pois pertencera a seu tataravô paterno. Dos demais detalhes aterradores, posso citar que Anselmo estava só de cuecas, cheirava mal, tinha barba e cabelos descuidados há semanas, mas a casa estava intacta, como se tivesse estado vazia por algum tempo.
Daí em diante, as coisas ocorreram como o esperado para um caso do tipo. Anselmo foi internado no hospital devido ao seu estado de saúde bastante debilitado. O diagnóstico foi esquizofrenia, e os médicos aconselharam internação em hospital psiquiátrico para devido tratamento. Como ele possuía bom plano de saúde, essa parte não foi difícil para a tia. Nos dias subsequentes, ela permaneceu na cidade para acompanhar o quadro do sobrinho, e depois de cinco dias internado foi que ele realmente falou com ela de forma conexa, já que geralmente as coisas que dizia não passavam de palavras soltas.
"Eles estão me ativando. Preciso ficar atento às mensagens sobre a missão. Preciso de silêncio e do rádio. Preciso do rádio!"
Foi um escândalo, uma gritaria assustadora de Anselmo pedindo pelo tal do rádio velho. Sedaram-no. Após conversar com o médico responsável, foi dito a dona Iná - a tia - que o paciente não apresentava comportamento de violência, e que não havia problemas em trazer para ele algum objeto do qual ele gostasse. Assim, dona Iná levou-lhe o rádio.
Anselmo ficou muito contente com o objeto. Fuçava nos botões e punha o ouvido próximo, como se estivesse sintonizando numa estação; a tia ficava observando aquelas cenas abismada e triste. O médico perguntara se haviam outros registros de doenças mentais na família, não haviam. Que tristeza! Pobre do sobrinho! Logo ele, sempre tão sociável...
Dona Iná tentou conversar com ele. Perguntou se ele queria ouvir música, porque se fosse isso, ela poderia lhe trazer "um desses equipamentos modernos com fones de ouvido"... Mas Anselmo respondia coisas estranhas. Dizia que estava recebendo coordenadas para agir durante o sono; que na noite anterior esteve na Rússia; que foi convocado para uma missão na Nova Era... Enfim, a pobre da tia entendeu que não havia o que fazer e precisava retomar sua vida; voltou para sua cidade e sempre que pode vai à capital visitar Anselmo. Já fazem cinco anos e ele jamais melhorou. Está sempre agarrado àquele velho rádio que não funciona, de ouvidos colados, rabiscando números em papeis. Pelas paredes do quarto dele, haviam centenas, milhares de inscrições com as palavras "1-9-6-4/6-4/localization/brazil/a.d.". Espuculações a respeito identificaram um padrão: 1964 = ano de nascimento; 6 = mês de nascimento; 4 = dia de nascimento; localizado no Brasil; a = Anselmo; d = Duarte. Será?