FECHE BEM AS PORTAS - PARTE 2
FECHE BEM AS PORTAS
POR M DAMER SIMAS
PARTE 2
NINGUÉM À SALVO
JERUSALÉM – 2 DE MARÇO DE 2020
Trancadas. As pesadas portas feitas com madeira nobre estavam trancadas por dentro. Nem bem havia caído à noite e os gritos já eram ouvidos por toda a cidade velha. Em torno de sessenta almas estavam sendo mutiladas a ferozes golpes de machado dentro de uma mesquita. Um homem de preto, postado em frente à porta principal olhava inerte, o movimento dos outros. Com a cabeça levemente inclinada para a esquerda e tendo seus braços cobertos por uma capa igualmente preta, ele vislumbrava tudo. Suas mãos estavam apoiadas sobre o cabo branco de um machado reluzente e ele sorria com o canto da boca a cada golpe desferido por um dos seus. Ninguém sairia de lá.
Na rua em frente à mesquita, policiais da cidade santa, gritavam ordens aos homens que estavam matando. – SAIAM COM AS MÃOS PARA O ALTO! ISSO É UMA ORDEM! É NOSSO ÚLTIMO AVISO! – Gritava assustadoramente Ahmad, o comissário chefe da polícia. Um homem forte, com um metro e noventa de altura e uma cerrada barba no rosto. Seus braços eram musculosos e suas firmes mãos empunhavam um megafone. Seu semblante era extremamente sério e a cada grito vindo da mesquita, ele abaixava a cabeça e coçava seu ralo cabelo. Olhava aos céus, como se pedisse a deus que intercedesse a seu favor. Os preciosos minutos que restavam, a seu ver, eram cruciais para impedir que mais gente sofresse. Ele teria que agir, então olhou para seu oficial mais experiente, suspirou profundamente e falou em baixo tom:
- Samir, vamos entrar. Eles não responderam a nenhuma de nossas reivindicações. Pessoas estão morrendo nesse lugar sagrado.
- Deve ser feito, comandante, entretanto isso não terá um final feliz. Mais gente vai morrer. Inclusive inocentes. Teremos que entrar já atirando, ou nós morreremos.
Irritadíssimo com a situação, Ahmad respondia, enquanto golpeava fortemente o capô da viatura com socos. Era possível ouvir o ranger de seus dentes enquanto praguejava.
- Eu sei! Eu sei Samir. Mas pessoas estão sofrendo! A imprensa está toda aqui! O mundo está vendo essa afronta. Temos que tomar alguma atitude.
Um urro de mulher ecoou na silenciosa rua. Ahmad e Samir viraram violentamente seus rostos em direção à mesquita e engoliram a seco uma amarga saliva. Os dois voltaram a cruzar olhares e apenas balançaram a cabeça. Não havia mais tempo a perder.
Na parte de dentro da mesquita o homem de capa resolveu andar. Enquanto quatro outros, vestindo igualmente preto, seguravam uma mulher pelos membros, ele lentamente arrastava seu machado pelo chão. A mulher, Seenira, debatia-se fortemente, tentando soltar suas mãos e suas pernas da prisão de seus captores. Eles apertavam fortemente seus punhos e seus tornozelos, tornando a branca pele da mulher quase roxa. Seu vestido preto estava marcado por sangue. Sua visão era aterrorizante. À esquerda, corpos e sangue. À direita, corpos e sangue também. No antes belo altar, um homem agonizava, engolindo o próprio sangue e sem movimento algum no corpo. Um dos homens de preto, igualmente alto aos outros, ceifou sua vida. Postou-se na frente do moribundo e balançou a cabeça lentamente para os dois lados. Sacudiu o machado com a lâmina voltada para baixo três vezes e o ergueu de uma vez só. Violentamente o baixou em direção à garganta do homem e separou a cabeça do corpo. Sua roupa, preta, foi tingida de vermelho. Seenira, então começou a chorar compulsivamente e desistiu de tentar soltar-se. Como em um ato de aceitação ela apenas fechou os olhos e esperou. O homem de capa, o único que possuía o machado com o cabo branco, parou em sua frente.
- Sabe que é culpada, Seenira? Sabe que toda a podridão do mundo escorre por entre seus dedos? Está lavada de podridão. Suas entranhas estão igualmente contaminadas com esse verme maldito que mata lentamente o mundo. A vergonha não deve ser maior que sua aceitação. Você deve morrer.
Ela, como em um último ato de bravura gritou com o homem. – SEU ANIMAL! SEU MONSTRO! VOCÊS MATARAM ESSAS PESSOAS QUE NADA FIZERAM. ESTÃO FAZENDO ISSO EM NOME DE QUE? QUEM SÃO VOCÊS? NEM SABE QUEM EU SOU. APENAS DOU AULA EM ESCOLAS. EU NEM SEI O QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO! ACABA LOGO COM ISSO! ACABA!
Ele apenas piscou e levou o dedo indicador em riste até a boca. O gesto exigia silêncio. – Apenas acabo com o mau do mundo. Você é o mau. – Disse o homem.
Ergueu o machado e atacou primeiramente a perna esquerda da mulher. Ela urrava. Cada golpe separava um membro. Pernas e depois braços. Por fim, a cabeça. Os membros foram soltos ao chão e a cabeça rolou lentamente para a esquerda.
Na rua, os polícias aguardavam em linha a ordem. Tremiam enquanto seguravam suas armas frente ao corpo. Alguns suavam compulsivamente e todos respiravam ofegantemente mesmo sem esforço algum. Ahmad estava à frente de seus homens. Ele seria o primeiro a entrar. A noite já tomara conta de Jerusalém e todos aguardavam a ação dos policiais. Um clima de insegurança debruçava-se sobre todas as pessoas. Dotados de um aríete, dois policiais batiam fortemente contra a pesada porta de madeira. Em vão. Nada parecia ser suficiente para derrubar o portal de entrada e a cada tentativa mal sucedida a frustação tornava-se visível no semblante dos homens. Mais duas pancadas e nada. Quando o desespero tomava conta de todos, algo inesperado aconteceu. A porta abriu-se. Sozinha. Macabramente. Todos arregalaram os olhos e tentavam ver o que estava se passando lá dentro. Nada. Nada foi visto. Aos policiais, a eles, era hora de agir independente de qualquer coisa. A espinha de todos arrepiava nessa hora. Ahmad foi o primeiro, seguido por Samir. Ele mantinha os olhos fixos e observava o cenário. Tudo estava escuro dentro da mesquita, pois no relógio já marcava vinte e uma horas. Ele ouvia os passos de Samir logo à sua retaguarda e respirava fundo a cada metro que andava. A falta de luz dificultava tudo e dentro do peito, seu coração insistia em querer saltar pela boca. Por várias vezes sentiu uma forte azia em sua garganta. Andou por mais alguns metros e logo o cheiro de sangue beijou seu nariz. Olhou em direção ao altar e viu o moribundo morto. Olhou para os lados e apenas cadáveres espreitavam as vistas em sua direção. Suas mãos tremiam, o suor escorria pelo seu rosto visivelmente e a branca camisa já estava transparente de tanto suor. Mais agoniante do que os corpos era não ver os culpados. Onde estariam aqueles que expurgaram tantas vidas? Isso o estava irritando. Lá fora, os policiais esperavam alguma ordem. Ela nunca chegaria.
Mais um passo e a porta foi fechada. O coração de Ahmad parou de bater por um instante. Ele piscou e sussurrou o nome do amigo. – Samir... Samir... O vento... Foi ele que fechou a porta, não foi? Não ouve resposta. Lentamente ele foi baixando a arma. Quase que como em uma premonição, ele sabia que algo havia acontecido com seu amigo. Mas como não ouvira nada. Deixou-se levar pelo medo e ficou distraído o tempo suficiente para que algo acontecesse com seu amigo. Não haveria perdão. Entre todas as coisas, o que ele nunca esperaria era o que estaria por acontecer. Virou-se lentamente, engolindo a contragosto um pouco de saliva. Os movimentos de seu pescoço eram perceptíveis e as veias de sua testa também. Ao completar o movimento, baixou os braços vagarosamente e deixou a arma cair ao chão. Uma triste expressão tomou conta de seu rosto e uma lágrima desceu de seu olho esquerdo. Um feroz golpe de machado em sua perna direita, o forçou a ajoelhar-se no frio piso. Agarrou o tendão de seu joelho e curvou-se bruscamente no chão, terminando em posição fetal. Com os olhos fechados grunhiu: - Porque Samir? Porque você? Minha perna... Meu deus do céu. O que eu fiz para você?
Samir apenas sorriu com o os lábios fechados. O homem do machado branco pôs a mão em seu ombro e o apertou suavemente. – À esquerda, Samir... À esquerda... A primeira perna a ser cortada sempre é à esquerda. Ahmad havia arrastado seu corpo alguns metros enquanto o homem do machado branco distribuía ordens à Samir e a outros de seus homens. O homem do machado branco, então pisou em sua perna cortada com um sapato de bico fino preto e brilhante. Ahmad gritou desesperadamente e então Samir aproximou-se mais uma vez com o machado repouso em seu ombro.
- Você é culpado Ahmad. Culpado de tudo de podre que há no mundo. Sabe que deve morrer por isso.
- Samir, meu irmão... Não faça isso. Deixe-me ir! Eu tenho filhos... Esposa...
- Não terá mais nada após essa noite. Todos morrerão nessa cidade pecadora. Apenas aceite.
Ahmad chorava. Olhava para todos os mortos no chão e vislumbrou o fim. Então, teve a perna direita atacada. Dois violentos golpes pintaram em vermelho escuro a roupa de Samir. Braço esquerdo e depois o direito. Cabeça. Ahmad estava morto. O homem com a capa andou lentamente até o corpo e segurou a cabeça do chefe da polícia pela barba. Caminhou até a porta e ordenou que fosse aberta. Uma forte luz ofuscou seus olhos. Ninguém atirou. Olhavam como estátua para o alto homem de preto. Ele jogou a cabeça de Ahmad aos pés de um policial e inclinou a cabeça para a esquerda, novamente.
- Todos vocês morrerão. Esta cidade está condenada. Amanhã, isso será um deserto.
- Solte esse machado – Bradou um único policial.
O Homem apenas gargalhou em tom muito alto. Lentamente, outros homens empunhando machados saiam pela porta. Entre eles Samir. Todos ficaram atônitos. Um tiro foi disparado e fez com que a ira do homem de machado branco explodisse. Ninguém de preto morreu e nenhum policial pode prever a chegada, na espreita de mais vinte homens de preto. Ao nascer do sol, todos estavam mortos. O homem do machado branco curvava seu joelho frente à um igualmente alto que segurava um machado de cabo vermelho.
- Está feito.
- Já era tempo.
- Samir aceitou seu destino.
- Já era tempo.
Ele virou-se violentamente e caminhou em direção ao breu. O homem do machado branco manteve-se curvado até que o outro sumisse. Uma cidade inteira foi subjugada. Todos estavam mortos.
WASHINGTON D. C. – 3 DE MARÇO DE 2020
O Presidente Aaron Carter empunhava uma xícara de café e deslizava os olhos sobre um jornal. Suspirava a cada linha e ao ler a ultima voltou os olhos para seu vice, James Natom.
- Por deus, você leu esse jornal hoje? Jerusalém foi dizimada por um grupo. Ninguém sabe como isso foi acontecer e não há pistas sobre que possa ter cometido tal atrocidade.
- Eu li. Estou preocupado, senhor presidente. O presidente de Israel fugiu do país em um jato e não ouve mais notícias. Não foi apenas Jerusalém. Todo o país está morto. Poucas pessoas foram deixadas de lado e não conseguem relatar nada. Estão em choque.
- Acho que... Devemos... Acionar o exército. Algo está acontecendo mundo afora. É a segunda cidade devastada em menos de dois dias.
- Senhor presidente. Declare estado de calamidade. Aconselhe as pessoas a não saírem de casa e... Mande trancar bem as portas. Algo ruim pode estar prestes a acontecer.