RELATÓRIO DE AUTÓPSIA (HOMENAGEM AOS AMIGOS DO DESAFIO DE TERROR)

“Já faz parte do meu viver

Eu preciso aprender

A viver sem você anjo!”

Salário Mínimo

Vocês sabem que o Aureus não estava bem da cabeça, como ele mesmo contou durante o DTRL 20. Então vou apenas encaixar umas coisas nos devidos lugares: por ironia do destino (bem clichê de novela mesmo!) eu, Sidney Muniz, Jorge Aguiar, Rafael Solberg e aquele tal de Folheto Nanquim, acabamos nos encontrando em Itaguaí, no Rio de Janeiro.

Sabe aquele negócio de papo vai: de onde você é?, papo vem: o que você gosta de fazer? e nisso outro que está perto ouve, se interessa e entra na conversa? Estávamos cada qual tomando a sua cerveja naquele inferno de cinquenta graus e acabamos nos juntando, aí o Aureus se juntou a nós porque ouviu nomes que lhe soaram familiares.

Advinha qual era o assunto? DTRL? Não! Na segunda garrafa de cerveja os homens falam de outras coisas! Era dia trinta de janeiro, sexta feira, lembro bem disso, e o Aureus nos convidou para ficar na sua casa naquela noite, já que sua esposa havia viajado, então fomos e o resto todos já sabem...

Cumprido o compromisso que me levou àquela cidade, voltei para São Paulo na noite de sábado.

Escritor tem imaginação diferenciada e o Aureus contou só uma pequena parte do que saiu das nossas naquela noite. O assunto da autópsia num anjo não saia da minha cabeça, e quando isso acontece... foi assim quando aprendi a tocar baixo elétrico; as músicas não tinham mais guitarra, bateria, voz ou outra coisa, só o baixo, é assim durante o DTRL; parece que o mundo está dentro do tema que escolhi para o meu conto; foi assim com a ideia da autópsia num anjo! Só que a preocupação com o estado de paranoia do Aureus insistia em entrar com estrondo na doce fantasia dessa autópsia!

Aproveitei que eu estava de férias e convidei o Aureus para passar uns dias aqui em São Paulo, para respirar outros ares, quem sabe até passar o Carnaval por aqui e o cara veio mesmo!

Foi aí que tudo começou...

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Antes do dia combinado ele chegou! Antes da hora combinada ele chegou! Dia seis de fevereiro, sexta-feira, seis da manhã! Seis da manhã! Eu teria xingado ele se não fosse seu estado de agitação, olhando para os lados, como um criminoso de primeira viagem, descabelado, barbudo, suado, amarrotado, com olheiras escuras! Nem abri direito o portão e ele entrou correndo, derrubou dois vasos de plantas da vó Luíza, fez o Neguinho, o vira-latas da vizinha, arrepiar o cangote e latir até nove da manhã, falava sem parar... Fiz ele comer alguma coisa para ver se ficava mais calmo; não ficou e comeu quase tudo que tinha para o café da manhã!

O cara não parava de falar que via eles, que eles o viam, que estavam me vendo, que estava ouvindo seus sussurros... Sério, véio! Àquela hora da madrugada... tava enchendo o saco! Ensinei o mantra budista Nã-Myorrorengue-Kyo e ele ficou mais calmo. Até conseguiu dormir; eu devia ter tirado uma foto!

Olha só a situação do cara: ele tirou um pé do tênis e ficou com ele numa mão e com a outra afofava uma almofada no sofá, aí foi deitando, bem devagar e pronto: dormiu! Dormiu abraçado com o pé do tênis e acordou abraçado com o mesmo pé do tênis, lá pelas oito da noite. Oito da noite! E nem sabia onde estava!

Nesse meio tempo, escondi todos os espelhos, fui ao mercado abastecer armários e geladeira, levei a vó Luíza para a casa da minha tia, arrumei um lugar descente para o Aureus dormir, caso ele conseguisse, e ainda deu tempo de cochilar um pouco. O cara acordou com uma larica! Pelo menos, com a boca cheia de comida parou de falar que via aquelas coisas...

Ele devia estar sem tomar banho desde aquela sexta-feira lá em Itaguái! Tive que bater várias vezes na porta para pedir que saísse do banho antes que secasse de vez a Cantareira. Depois de quinze minutos ele resolveu sair e ainda queria fazer a barba! Puta merda! Fazer a barba! Só se fosse sem se olhar no espelho...

Consegui convencê-lo de que aonde íamos, as meninas gostavam de caras com barba, então fomos lá para a parte divertida da Rua Augusta e, guardados os devidos respeitos para com a esposa, o Aureus se divertiu bastante. Sério mesmo! Ele nem quis ficar nos puteiros e acabamos entrando em umas quatro ou cinco rodas de intelectuais de boteco que gostaram demais do sotaque carioca, da conversa e da companhia do Aureus.

Fiquei perdido nessas conversas e aproveitei para viajar na ideia da autópsia num anjo. Voltamos para casa lá pelas cinco da manhã e o cara ainda tava falando, falando, falando... falando dos novos amigos que fez! Pelo menos não era mais sobre as coisas que via, que viam ele, que me viam...

No dia seguinte, no almoço ele comeu um boi! Precisava comer mesmo; desde quando o vi pela última vez, lá em Itaguaí, ele devia ter emagrecido uns sei lá quantos quilos. Se tudo desse certo, devolveria meu amigo para a esposa com cara de gente e saudável. Depois desse almoço de rei, mostrei para ele a Galeria do Rock.

Ele disse que fazia melhor juízo da famosa Galeria do Rock; já foi bem mais rock mesmo! Lá encontramos as meninas da banda Nervosa que, muito atenciosas com os fãs, pararam para conversar um pouco com a gente. Enquanto eu me esparramava para os lados da Fernanda, a baixista que toca thrash metal sem palheta, o Aureus se derretia todo para Prika, a guitarrista de beleza vampiresca. Pediram desculpas que tinham compromisso e nós compreendemos, afinal a vida de artista...

Mostrei para ele as melhores lojas para comprar cada tipo de coisa de rock, encostamos no boteco do primeiro andar e fizemos uma extravagância: tomamos duas cervejas do Iron Maiden, que custam quase os olhos da cara! E que valem cada centavo! Saímos de lá pisando em ovos, falando alto, rindo e ocupando muito espaço na calçada e no Metrô. O Aureus não falava mais daquelas coisas e dava para perceber seu esforço em se concentrar na realidade. Dormiu como criança aquela noite e eu como um bêbado, jogado no sofá.

No domingo ele acordou primeiro, ainda de madrugada, onze da manhã, e queria saber se podíamos ir à praia! Lá pelas duas da tarde, porque não consegui acordar na hora que ele me acordou, fomos até o Parque do Ibirapuera. Ele queria sair de calção de banho e consegui convencê-lo que aqui em São Paulo as pessoas são um tanto recatadas.

Na terceira vez que perguntou onde estava o mar, levei-o para uma parte do parque não tão movimentada e mostrei as meninas de biquíni tomando sol: “Aqui é a praia!” Ele achou meio sem graça, as meninas muito brancas e fomos andar. Tinha que cansar o cara, senão eu é que começaria a ver aquelas coisas. Gostou de caminhar e estava cheio de energia para isso. Depois de uma hora caminhando, deixei-o continuar, deitei na grama, numa sombra, e... acabei dormindo!

A estratégia de deixa-lo cansado estava dando certo. Todo dia era um passeio longo e cansativo: segunda de manhã fomos na Rua Santa Efigênia, paraíso dos eletrônicos, e na Vinte Cinco de Março, paraíso das bugigangas, e de tarde no Mercado Municipal, paraíso das guloseimas, terça andamos a Avenida Paulista inteira, ida e volta, e fomos na Casa das Rosas, quarta na Pinacoteca e Centro Cultural Banco do Brasil, na quinta ele quis ver para crer a situação da represa da Canteira, todo dia à noite íamos para a Rua Augusta conversar com os intelectuais de boteco amigos do Aureus, na sexta...

Não houve passeio na sexta-feira de Carnaval!

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Quase amanhecia a sexta-feira quando chegamos em casa. Enquanto eu tentava achar a chave do portão, o Aureus atravessou a rua e foi xeretar numa caçamba de entulho, fui atrás ainda tentando achar a chave. Foi quando vi umas plumas brancas saindo do entulho...

Esqueci da chave, pulei dentro da caçamba e comecei a cavar com as mãos. “É o meu anjo!” O Aureus começou a cavar também e falei para ele: “É o nosso anjo!” Conforme íamos cavando, mais eu acreditava que era um anjo mesmo e que estava vivo! Uma mão saiu do entulho enquanto eu tirava uma pedra do rosto do anjo. Ele estava bem machucado! Peguei-o no colo e levei-o para dentro. A chave estava com o Aureus o tempo todo e ele estava ágil como um ninja, como a situação exigia.

Fomos direto para o porão, acomodei o anjo na bancada, indiquei ao Aureus onde estava o estojo de primeiros socorros, dei uma olhada geral no estado da criatura e tive certeza que era mesmo um anjo. Estava bem machucado, sangue coagulado e sujo nas asas, faltando penas em vários lugares, como se fossem arrancadas de uma vez, os olhos inchados e roxos, o rosto esfolado, vários cortes na pele.

Tive um sobressalto quando ouvi uma voz macia perto do meu ouvido sussurrar: “Obrigado...” O anjo estava de boca fechada, o Aureus ainda estava procurando o estojo de primeiros socorros, não havia mais ninguém no porão! O anjo encostou a mão na minha e senti um leve choque quase elétrico e ouvi outra vez o mesmo sussurro. O Aureus chegou com o estojo de primeiros socorros e voltei à realidade.

— Esse anjo tá mal mesmo!

— Lava bem aquela bacia e enche de água. Calma, a gente vai cuidar de você.

“Obrigado...”

— Falou comigo, Carlos?

— Não fui eu; foi ele.

“Obrigado...”

— O anjo fala sem abrir a boca?

— Me ajuda a lavar os machucados. Deixa a água escorrer de leve. Tá doendo né?

“Um pouco...”

— O anjo fala dentro a da cabeça da gente!

— É telepatia, Aureus. Telepatia.

— Então cuidado com o que pensa...

— Como você foi parar naquela caçamba?

— Acho que ele não quer falar sobre isso.

— Vamos lavar bem com água e sabão os seus machucados.

“Obrigado...”

— Se doer muito você avisa...

— Anjo, qual o seu nome?

“O que você mais gostar...”

— Que nome a gente dá pra esse anjo, Carlos?

— Depois a gente vê isso, agora me ajuda a virar ele de lado.

— Puta corte grande aí nas costas!

— Ainda bem que é raso!

— Será que ele fica bom?

— Acho que sim. Só não sei o que fazer com ele depois!

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Tenho que confessar: aquela fantasia de fazer autópsia num anjo nem me passou pela cabeça, vendo aquela criatura toda machucada e ainda assim doce. Não senti nada mais que desejo de ajudar.

Não podíamos leva-lo para cima; e se alguém o visse? Então arrumamos tudo no porão para o melhor conforto do anjo. Ele olhava para nós, naquela correria para limpar o chão, montar uma cama, trazer lá de cima lençóis limpos, cobertor, até roupas e ele sussurrava seu “Obrigado...” com uma maciez cada vez mais... mais... acho que exausta.

O Aureus, na sua preocupação, queria dar alguma coisa para ele comer e veio a dúvida: do que os anjos se alimentam? Falei para ele procurar no Google enquanto eu acabava de arrumar o porão. Em menos de três minutos ele volta correndo:

— A gente tem que tirar ele daqui! Os anjos precisam de lugares arejados e claros! A gente tem que levar ele lá pra cima, Carlos! Aqui não dá!

— Do que você tá falando? Meu porão tem ar condicionado e lâmpadas boas! Dá pra morar aqui se o anjo quiser!

— Anjo, do que você precisa? Do que você se alimenta?

“Eu me alimento de bondade...”

E o anjo sorriu, virou para o outro lado, ajeitou a asa e dormiu...

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Dormiu nada! O anjo morreu! E só descobrimos isso lá pelas três da tarde...

Ele estava descoberto, a cabeça inclinada meio de mau jeito no travesseiro, a asa quase caída para fora da cama. Encostei a mão no seu ombro e estava frio, o Aureus achou estranho um anjo dormir daquele jeito e foi ajeitá-lo, com todo cuidado e ficou mais intrigado porque ele estava muito mole.

— Vai ver anjo dorme assim mesmo, ainda mais esse que tá precisando dormir!

— Tem alguma coisa errada, Carlos! Ele nem se mexeu, nem suspirou...

O Aureus chamou o anjo e ele nem se mexeu. Chamou um pouco mais alto e nada, aí resolveu sacudir de leve o braço do anjo e nada, sacudiu mais forte... mais forte ainda... chamou alto... sacudiu muito mais forte...

Sabe aquela reação de não ter reação? Foi assim que fiquei!

O Aureus cobriu o anjo com o lençol, me levou para cima, me deu uma cerveja e bebemos calados.

Depois da terceira cerveja, perguntei:

— E agora?

— Deixa que eu resolvo isso, fica tranquilo.

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Enquanto bebia a cerveja, ainda sem reação, a imagem do anjo vinha à minha mente: as penas saindo do entulho da caçamba, sua mão surgindo, o rosto debaixo da pedra, os machucados, o olho roxo, o rosto que não dava para saber se era anjo ou anja, a voz macia que falava dentro da minha cabeça e não revelada seu gênero, a pele quase dourada e lisa, toda esfolada, o corpo saudável e delicado que não revelava nada e eu constrangido em olhar as partes íntimas. Cabelo curto, desarrumado, de fios finos como de criança, ora castanho escuro, ora castanho claro, ora preto. O anjo parecia ser bem jovem e tinha uma presença tranquila, uma “vibe” boa, com movimentos calmos, fácil de cuidar. Se alimentava de bondade... Comecei a chorar... “Obrigado...” ainda ouvia o sussurro do anjo na minha cabeça.

Já era tarde da noite e eu ainda estava sentado na poltrona, na mesma posição, olhando para o nada e pensando no anjo. O Aureus trouxe um pratão de macarrão e me mandou comer:

— Come aí que só anjo se alimenta de bondade. Vai logo! Tá esfriando! O anjo não ia querer que você morresse de fome por causa dele...

Acabei comendo, mastigando e engolindo, sem sentir o gosto, como se fosse uma coisa automática e o Aureus falava sem parar, acho que alguma coisa tipo que tinha guardado o anjo no freezer do porão, que tinha convidado o pessoal do DTRL para virem assistir a autópsia, que todos confirmaram a presença... Não entendi nada do que ele disse; só sei que acordei com uma puta dor nas costas num sábado de Carnaval lindo e quente pra cacete! Tinha a sensação de ter sonhado com um anjo que morreu ou alguma coisa assim.

O Aureus deixou um bilhete na mesa da cozinha dizendo que deu uma saída para ir ao mercado e já voltava. Aproveitei para dar uma arrumada na casa; tinha lata de cerveja até no banheiro, que aliás... sem comentários! De repente o cara chega, de taxi, tirando do porta-malas um monte de compras, um monte de cerveja...

— Que porra é essa? Pra quê tanta coisa?

— Você terá trinta pessoas na sua casa. Precisa de comida e bebida pra essa gente toda!

— Tá maluco? Vai dá um baile de Carnaval na minha casa?

— É o pessoal do DTRL que vem para a autópsia do anjo.

— Fudeu! O cara pirou de vez!

— Vai mermão! Ajuda aí...

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Lá pelas duas da tarde a campainha toca...

— Deixa que eu atendo!

— É vai lá! Devem ser seus convidados para o baile de Carnaval!

Não parou de chegar gente o dia inteiro! Só consigo lembrar na ordem de chagada os três primeiros: JC Lemos, vizinho do Aureus, e meus vizinhos mais próximos, Eduardo Monteiro, daqui mesmo, e Douglas Moreira, de Mogi das Cruzes, depois me perdi. A campainha não parou de tocar!

Chegaram quase todos no sábado: Miguel Bernardi, Sommeil Avec Les Anges (até hoje não sei pronunciar), Rodrigo Forte, Gilson Raimundo, Lily Emy, Eliane Verica, Rako, Thiago X Leite (que encontrou com a Maria Santino no caminho para o aeroporto de Manaus; ela não sabia do caso, tinha voltando ontem de uma caçada a um acauã em forma de galináceo gigante com a cabeça em chamas e já estava indo caçar uma iara que foi vista no rio Amazonas), TT Albuquerque, OJackie, Grazzi, Pedro da Luz Teixeira, Hipólita, Walter Crick, Ana Carol Machado, Felipe TS, Travel, Jhon Ferreira, Virginia Ossovski e os velhos conhecidos daquela sexta-feira em Itaguaí: Sidney Muniz, Jorge Aguiar e Rafael Solberg. O tal do Folheto Nanquim, aquele cara sinistro é tão sinistro que o e-mail voltou com mensagem de endereço inválido e ele respondeu mesmo assim! Não poderia vir; estava tentando capturar criaturas que foram vistas dentro de um espelho.

— Muito bem! Você é um anfitrião e tanto! Agora arruma lugar pra tudo isso de gente!

— Peraí! Vai me deixar aqui sozinho?

— Pede ajuda pro pessoal do DTRL!

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Eu não conseguiria deixar esses amigos na mão; só saí desse jeito pra deixar o Aureus bolado! Ele fez uma cara muito engraçada, coçando atrás da cabeça! Na verdade fui pedir emprestado para os vizinhos colchonetes e roupas de cama. Me senti como numa campanha de emergência para desabrigados! Ninguém ficou sem um lugar para dormir.

Foi um deus nos acuda organizar esse povo todo, fazer escala para usar o banheiro, dar as melhores acomodações para as meninas, alimentação e... a autópsia do anjo que seria na segunda feira.

No domingo de manhã chegaram os convidados internacionais, direto de Portugal, Sergio Peixoto e Alexandre Lone Wolf. A mãe do Sergio mandou um pano de prato para a vó Luíza, que também é portuguesa, e só deixou o filho viajar porque ele disse que ficaria na casa dela. E o Alexandre me deu o último CD da banda portuguesa Moonspell, Extinct, autografado! Esse CD só chegará às lojas no dia quinze de março! Disse que encontrou os gajos da banda no aeroporto e pediu o CD para dar de presente a um amigo do Brasil; fácil assim! Em retribuição, dei para ele o meu CD autografado da banda Nervosa.

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Me dei conta que não sabia muito bem o que estava acontecendo e pedi uma reunião com o Aureus. Nos trancamos no porão e ele me falou da organização do pessoal e da programação.

— Caraca, Aureus! Cê tá maluco, véio!

Ele foi até o freezer, tirou o anjo e colocou na bancada.

— O anjo vai ficar descongelando até amanhã. Antes do horário eu venho aqui enxugar o chão e arrumar os instrumentos.

— Que instrumentos? Canivete? Chave de fenda? Garfo e faca?

— Calma, Carlos! Achei isso aqui... acho que vai dar!

Nem lembrava mais daqueles instrumentos cirúrgicos...

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Grupinhos já se formavam, mas eu estava com a cabeça em outro lugar. De repente me vi cercado por Lily Emy, Grazzi, Sergio Peixoto, Ana Carol, Rako, Jhon Ferreira e Douglas Moreira. Confesso que fiquei com medo! O Rako falou com aquele seu jeito telegráfico:

— Pergunta.

E a Ana Carol completou:

— É verdade que você fez um pedestal pra sua guitarra com os ossos de uma namorada?

E a Grazzi emendou:

— E é verdade que você ficou no hospital entre a vida e a morte porque namorou uma vampira?

Minha cabeça rodava, me senti num plenário do júri... Aí a Lily Emy deu a facada:

— Você tem alguma coisa a esconder da gente?

Comecei a gaguejar... e eles a rir!

— Do que vocês tão falando?

— Tá na internet...

— Em primeiro lugar, toco baixo e não guitarra, ainda em primeiro lugar, o pedestal é de alumínio, e ainda em primeiro lugar, não tenho namorada vampira coisa nenhuma! Tá bom, vai... tive uma que me cansava...

Depois dessa, preferi ter o menor contato possível com “meus” convidados. Aquela noite fiquei na casa da minha tia, no aconchego e proteção da vó Luíza, que ficou toda feliz com o presente da mãe do Sérgio. Só voltei uma hora antes da autópsia.

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Estavam todos na sala, debatendo sobre a liberdade de expressão dentro do DTRL. Sidney Muniz era o mediador. Antes que alguém me perguntasse alguma coisa, saí de fininho e fui para o porão verificar os últimos detalhes para a autópsia. Já havia me conformado que não dava mais para fugir.

Acendi as luzes, liguei o ar condicionado, coloquei pra tocar o CD do Moonspell, que o Alexandre me deu, e fui olhar o anjo que já estava descongelado e parecia dormir. O que teria acontecido com ele?

Enquanto arrumava os instrumentos, lembrei de quando o anjo me tocou e senti um choque quase elétrico, que fez um tipo de cócegas por dentro. Do que será que eles são feitos? O que nos aguarda após a primeira incisão do bisturi?

O Neguinho começou a latir, eles já estavam descendo. Ainda bem que a vizinha foi viajar! Estava na hora; não havia mais como fugir. Fugir do quê? Afinal não era meu sonho fazer essa autópsia? “Obrigado...” Lembrei da voz macia do anjo dentro da minha cabeça.

Enquanto o Aureus expunha o começo da história, desde encontrarmos o anjo na caçamba até descobrirmos que ele morreu, os olhares revezavam entre ele, eu e o anjo. Acho que no fundo todos duvidavam daquele papo de autópsia num anjo, mas como escritores não tinham dúvidas a respeito, por isso vieram. Um papo bem de subconsciente mesmo. Será que alguém escreverá sobre isso algum dia?

Respondemos algumas perguntas e começamos os trabalhos analisando as condições físicas do anjo: corpo tipo o nosso, com asas fazendo parte da estrutura óssea e muscular dos omoplatas e... o sexo... não havia sexo... Lembrei do anjo do filme Barbarella que dizia: “Um anjo não faz amor; um anjo é amor!” Lembrei também do nosso anjo dizendo: “Eu me alimento de bondade...”

Os convidados começaram a falar, comentar, levantar hipóteses e uma delas foi a possibilidade de ser um anjo caído. Os tipos de ferimentos eram consistentes com uma briga e não queda. Todos se debruçavam sobre o anjo morto, tocavam nele, as meninas gostaram de fazer carinho nas asas, discutiam sobre o material das penas, as membranas das asas, macias como barriga de cachorrinho novo, olhavam bem de perto os machucados, viravam ele de um decúbito para o outro. Não, não era um anjo caído!

Surgiram discussões paralelas sobre a cor quase dourada da pele, que ainda parecia bem hidratada e macia, os cabelos que pareciam mudar de cor, dependendo do ângulo que se olhava, a ausência de genitálias, a existência de sangue nos ferimentos, a falta de capacidade de se regenerar, a possibilidade de morrer... Foi uma discussão longa que trouxe mais literatura, muita poesia e frases bonitas, do que ciência. Idiotice a minha exigir ciência na autópsia de um anjo!

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Passamos para a segunda fase: abrir o anjo. Descobrir do que são feitos, que cheiro tem por dentro, quais órgãos vitais eles têm? O coração deve ser maior para dar conta de bater asas tão grandes!

“Eu me alimento de bondade...” Frase que soava como inacabada... “Obrigado...” Gratidão sem fim? Por isso o tom de frase inacabada?

Encostei o bisturi na pele do anjo e senti uma quase eletricidade percorrer meu braço, fazendo cócegas por dentro. Comecei a incisão em “y”, a partir do ombro esquerdo, descendo, passando pelo mamilo, depois subindo até o ombro direito. Após, iniciei a incisão mediana, desde a margem do corte anterior, contornando o umbigo, até o púbis. Como não sabia a anatomia do anjo, procurei apenas fazer as incisões na pele para depois aprofundá-la com calma a fim de não lesar nenhum órgão.

No momento da primeira incisão, senti um cheiro gostoso de baunilha, como eu havia imaginado antes. Ouvi os amigos do DTRL comentando sobre vários cheiros: desde perfume de rosa, até feijão cozinhando, passando por chocolate e carro novo. Não sei quem falou o quê e o curioso era cada qual sentir um cheiro agradável diferente do outro.

Mais curioso ainda foi olhar outra vez para o anjo e não ver nenhuma incisão!

Mais curioso ainda... Não! Curioso não! Mais maravilhoso ainda foi...

Não tive dúvidas se vi mesmo o que vi...

Outras pessoas viram a mesma coisa, com cores diferentes, mas a mesma coisa...

Não era uma luz nem uma fumaça nem um brilho nem um reflexo...

Tenho receio de não ser capaz de descrever o fenômeno pela minha falta de habilidade neste quesito, mesmo assim...

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Alguma coisa foi envolvendo o ambiente que, para mim, ficou azulado... para cada um ficou de uma cor diferente... nada ofuscante, apenas uma cor se derramando no ar, sem atrapalhar a visão.

Senti uma vontade incontrolável de sorrir... Imagino que fiquei com aquela cara de bobo apaixonado... Cada qual teve vontade de expressar um bem estar irreprimível... Disso saíram poesias, abraços, risadas de doer a barriga, danças, cantorias... e eu sorria, com certeza, de olhos brilhando, naquele ambiente azul, com aquelas pessoas azuladas, suas risadas e vozes azuladas...

O anjo foi se diluindo nesse azul, envolvendo todos numa “vibe” deliciosa, abraçando cada um com delicadeza, entrando na pele de cada um, com sua quase eletricidade, fazendo cócegas por dentro...

Não faço a menor ideia de quanto durou tudo isso...

Não sei quando foi que as cores voltaram ao normal...

Também não sei quando o anjo desapareceu...

Talvez quando se diluiu nas diversas cores particulares de cada um...

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Ninguém dormiu!

Estávamos com uma sensação deliciosa de bem estar, conversando, contando causos, relembrando o anjo, a autópsia colorida e cheirosa...

Não resisti e abri uma cerveja. Geladinha demais, deliciosa demais, o colarinho cremoso, as bolhinhas estourando no céu da boca. Sentei na escada que ia para o porão e fiquei olhando o horizonte de prédios acesos, um samba vinha de longe, o dia quase amanhecia... O Aureus sentou ao meu lado com a sua quase inseparável cerveja.

— E aí Carlos.

— E aí Aureus.

— Tava pensando...

— Tá bom, vai! Conta outra!

— Eu sei pensar, mermão! Num parece mas sei...

— Saúde! À sua capacidade de pensar!

Batemos as latinhas e demos uma boa golada.

— Então... Tava pensando... Como esse povo chegou aqui tão rápido no Carnaval?

— Vai ver os anjos da guarda ajudaram...

— Taí... num tinha pensado nisso!

— Um brinde à sua capacidade de pensar!

Batemos as latinhas outra vez.

— Tá vendo ali, entre aqueles prédios? Não, mais pra cá, um pouco. É aí.

— O que tem?

— Fica olhando que o sol nasce ali. “Há um instante do dia,/E só um,/Se perdido “no more”,/É a aurora/Num piscar de olhos/É dia./Entre prédios, o horizonte/Por vermelhos tingido/O espreguiçar do sol/A luz lambendo as trevas/Com a língua colorida/De mais um céu azul.”

— De contista de terror à poeta num amanhecer!

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Aproveitei que tava todo mundo reunido na sala e convidei-os para ficarem o quanto quisessem, que o Aureus teria um prazer enorme em mostrar a cidade para todos, já que eu voltaria a trabalhar na quarta-feira de tarde. Ninguém pôde ficar, afinal o ano começaria naquela semana...

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Limpar aquilo tudo até que não foi difícil.

Devolvi os colchonetes e roupas de cama emprestadas, fui buscar a vó Luíza e a vida voltou ao normal, com uma dose eficaz de bem estar.

Até hoje não voltei ao porão... Gostaria de fazer um relatório de autópsia, mas vou deixar para outra pessoa. Espero que um dos amigos faça.

Ainda ouço a voz o anjo na minha cabeça:

"Eu me alimento de bondade...”

“Obrigado...”

Dei o nome de Luíza ao anjo...

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Baseado no conto "Eles viram você", de Aureus Mortem, 10º colocado no DTRL 20. http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/5126854

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 04/03/2015
Reeditado em 04/03/2015
Código do texto: T5157379
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