Refluxo
9º colocado no desafio do Entre Contos
Os finos braceletes de sangue escorriam na solidão do manto noturno. Pela fresta da janela, a luz entrava e incidia sobre o penitente. Agachado, segurando um chicote, a arma estalava de tempo em tempo. Os sussurros chorosos na noite morriam ali dentro, sendo endereçados a uma entidade que ouvia até mesmo o silêncio.

Estralava cada vez mais forte, mantendo a voz em um mesmo ritmo, nunca fraquejando. Havia paixão, dor e devoção naquelas palavras. Falavam sobre a descida do escolhido e a morte dos impuros.

– Eu pequei, Pai.

E o chicote chiou mais alto, criando um vergão maior na carne viva das costas. A cabeça raspada brilhava ao refletir a lua. Seus braços magros e sujos compeliam-se a continuar, açoitando sem parar, cada vez mais forte. As lágrimas contidas durante todo o processo começaram a surgir. Eram lágrimas de culpa, de fervor. Um choro arrependido, que era chorado noites e noites seguidas. Doloroso para o corpo, mas um alívio para a alma.

Pedia ao Criador que limpasse as impurezas, que removesse o mal de sua carne. Punia-se por não se forte o suficiente. Seus olhos castanhos e pequenos encaravam o escuro, enquanto seu corpo sustentava o castigo, quando sentiu o refluxo.

Uma dor lancinante cruzando o estômago e subindo como um gêiser. Largou o chicote na hora, levando os braços ao abdômen e apertando. Caiu para trás, com a carne se esfregando no chão poeirento de pedra, deixando marcas vermelhas por onde passava. Sentia dores constantemente, mas não se equiparavam a um terço do que sentia agora.

Algo se remexia. Algo sujo e doloroso que queria sair. Ainda deitado, começou a rolar e se contorcer. Rodopiou por todo o aposento, batendo nos poucos móveis que o ocupavam e criando certo alvoroço. Abriu a boca de forma sobrenatural e começou a emitir um som engasgado. A agonia que parecia não poder piorar, aumentou, e algo se remexeu. A onda disforme caminhou por sob a pele, subindo em direção à cabeça. O maxilar se arreganhou em um ângulo impossível, e uma gosma começou a escorrer pela boca. Massa negra deslizou para fora em um fluxo constante, caindo com um baque no chão e se aglomerando.

No meio da sujeira, surgiu uma criatura, pequena e redonda. Tinha olhos miúdos e brancos. A boca era todo seu corpo, que ela abria e fechava como se sentisse a necessidade de mastigar. A gula não se movia, ficava apenas ali. Observando o monge se retorcendo, andando de quatro pelo aposento, tentando fugir. A pasta viscosa ainda escorria de sua boca, criando um rastro por onde passava.

Ao lado da primeira criatura, uma segunda surgiu, na trilha do vômito. Esquelética, com a pele grudada aos ossos, ela brotou. Os olhos nervosos buscavam por todo o quarto. Correu em direção ao colchão e levantou a palha. Avareza tirou de lá algumas moedas gastas e correu para um canto mais afastado, admirando-as com idolatria.

O monge nada via, apenas continuava em sua penitência, engasgando vez ou outra, sentindo a falta de ar. O estômago pressionado começava a ceder à pressão. O esôfago se alargava com a força exercida sobre ele, quando o fluxo parou. O homem tossiu, cuspindo o gosto ruim da boca, e olhou para trás. Sentia-se debilitado e apenas sentou, fitando as cenas que se desenrolavam a sua frente.

Dessa vez as criaturas que surgiram eram belas. Duas mulheres, em miniatura, que se agarravam e se beijavam. Luxúria em sua forma mais pura. Seus movimentos sensuais incitaram certo calor no monge, que desviou os olhos e começou a orar.

Escutou um som forte, de esguichos e algo que se assemelhava a gritos. Olhou uma monstruosidade de olhos vermelhos e insanos, amassando as duas mulheres que se enroscavam, criando uma pasta sanguinolenta. Era pura e mais inconsciente ira. Enquanto ao lado, o outro ser que surgiu observava absorto. Tinha pernas curtas e desiguais, seus pés eram virados em ângulos indecifráveis e seus olhos continham a vontade avassaladora. Inveja desejava ser aquele que possuía a força, e a fome. Olhou para o canto escuro e desejou ter as moedas para si.

O homem rezava. Não sentia mais os ferimentos que agora se comprimiam contra a parede, sofrendo pela força que ele fazia para se afastar. O conclave de aberrações ainda estava ali, gerando mais membros. Dessa vez o monstrinho demorou mais tempo para se solidificar. A gosma se remexeu lentamente, esticando para um lado e para o outro, levando certo tempo para se solidificar. E da forma que veio ela permaneceu. Deitada sobre os braços enormes, olhando para o monge com os olhos sonolentos. Uma preguiça como nunca vista antes.

A ira desprendida contra as mulheres terminara, deslocando-se para o próximo, que mastigava sem parar. Enquanto isso uma última criatura surgiu, materializando-se rapidamente. Trazia consigo um pedaço de vidro, que refletia tudo aquilo que o tocava. E nada era mais belo do que sua própria vaidade.

A luz da lua tornou-se mais forte, atraindo a atenção dos monstros nascidos nas trevas. Olharam absortos para o clarão que entrava pela janela, e aos poucos desapareceram. Gritavam e berravam, amaldiçoando, invejando, sentindo a raiva...

A poeira se dissolveu no ar e desapareceu, deixando o som de moedas tilintando para trás. O monge engatinhou até a luz, e olhou para o céu. Sentiu a compreensão das coisas que haviam passado e das que estavam por vir. Os olhos que fitavam com tanto amor tornaram-se turvos, revirando-se diversas e diversas vezes.
Parou, e assim permaneceu.

Abaixou a cabeça, procurando o chicote e o encontrou. Arrastou-se até ele, tomou-o nas mãos, e segurou firme.

– Perdoe-me, Pai, pois eu pequei. Os pecados expurgados retornaram, pois não há homem capaz de viver na inocuidade.

Chicoteou as feridas mais uma vez, e assim continuou até o pio da coruja. Naquela noite tentou se livrar de suas fraquezas, mas isso não lhe foi permitido. Uma força maior lhe impôs essas vontades, e assim ele permaneceu. Pois um homem sem máculas não precisava de Deus.
 
Jefferson Lemos
Enviado por Jefferson Lemos em 24/02/2015
Reeditado em 20/04/2015
Código do texto: T5149146
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