ROLETA RUSSA
O Dr. Pedro entrou no elevador e cumprimentou a ascensorista com um movimento de cabeça e um arremedo de sorriso nos lábios. Ela respondeu com outro movimento de cabeça e um quase imperceptível sorriso, que só quem é muito bom na leitura da linguagem não verbal consegue perceber.
Todo dia ele fazia isso e todo dia ela respondia do mesmo modo. Era um ritual. No elevador havia cinco pessoas, e todas praticaram o mesmo rito e receberam a mesma resposta da ascensorista, salvo uma ou outra, mais conhecida, que ganhava um bom dia e uma abertura um pouquinho maior nos lábios da moça, na hora do sorriso.
JR não pode deixar de pensar que aquele elevador se assemelha à uma confraria onde as pessoas se reconhecem por palavras de passe e gestos rituais, como se fosse uma tácita sociedade de iniciados em uma seita de infelizes yuppies bem sucedidos economicamente e falidos na vida pessoal.
Ali todos se conhecem e se cumprimentam com acenos de cabeça e imperceptíveis sorrisos. Todos trabalham naquele prédio. Todos tomam o elevador no subsolo, onde fica a garagem. Todos usam ternos e gravatas muito sóbrios, se são homens e vestidos discretos, se são mulheres.
No primeiro andar a porta se abriu e entraram mais duas pessoas. Uma delas devia ser conhecida da ascensorista, pois ela recebeu o cumprimento ritual dela e respondeu com a senha da confraria: o aceno de cabeça e o imperceptível sorriso. A outra era um rapaz moreno, de aparência humilde, com uma pasta preta em baixo do braço.
Havia uma pequena plaqueta no lado de fora do elevador que dizia: elevador privativo. As pessoas que podem tomaram aquele do elevador usavam um crachá cor de laranja e a ascensorista usava um crachá azul. O homem que entrou também usava um crachá cor de laranja, e vestia terno e gravata, mas o rapaz moreno, de pasta preta em baixo do braço, usava um crachá verde e vestia jeans e camisa de manga curta.
A ascensorista estava folheando uma revista e mascando um chiclete.
─ Moço, este elevador é privativo. Pegue o do outro lado ─, disse ela displicentemente para o rapaz de pasta preta em baixo do braço.
─ Eu trabalho aqui─ respondeu o rapaz moreno, com a pasta preta em baixo do braço, mostrando o seu crachá.─ Eu sei que você trabalha aqui, mas não pode tomar este elevador.
─ Porque não? Eu trabalho aqui!
─ Porque este elevador é privativo─ insistiu a ascensorista, sem se exaltar.
─ Privativo de quem ?─ perguntou o rapaz humilde, com a pasta preta nas mãos.
─ É privativo ─ respondeu a ascensorista, sem deixar de mascar o chiclete, nem parar de folhear a revista.
─ De quem? insistiu o rapaz.
O Dr. Pedro respirava fundo e observava, ora a ascensorista, ora o rapaz moreno, com a pasta preta nas mãos. Ela agora não parecia nem amistosa nem ausente. E o rapaz não parecia tão humilde. Meia dúzia de pessoas usando gravatas, ternos de cor escura, rostos severos e crachás cor de laranja olhavam agora para os dois litigantes, com uma cara de condescendência aborrecida.
─ Privativo de quem? Atacou de novo o rapaz, já não tão humilde, com a pasta preta agora pendurada em uma das mãos, e com a outra segurando a porta do elevador.
─ De quem usa crachá cor de laranja, não está vendo? ─ Respondeu, com irritação, a ascensorista, agora já não folheando mais a revista e encarando decididamente o rapaz.
O Dr. Pedro olhava com interesse a estranha litigância. Essa explicação, dada pela ascensorista, representava, na opinião dele, um recuo dela em relação ao rapaz da pasta preta. Achou que ele também havia percebido isso e não perdera a ocasião de por o pé dele onde ela tirava o dela.
─ Porque só o pessoal de crachá cor de laranja pode usar este elevador? ─ perguntou, com certo ar de desafio, o rapaz agora não tão humilde, com a pasta preta pendurada em uma das mãos.
─ Porque eles estão na lista dos autorizados ─ respondeu a ascensorista.
─Autorizados por quem? ─ retrucou ele. O Dr. Pedro concluiu que ele havia ocupado mais um pedaço do espaço dela com aquele “autorizados”.
Ela não respondeu. Limitou-se a olhar para ele com uma cara de desprezo.
─ Quem dá essas autorizações? Insistiu o rapaz.
E desta vez ela não cedeu. ─ Aqui só autorizados─ respondeu, agora com firmeza, levantando-se do banquinho.
O rapaz não esperava a reação dela, e a resposta, que já tinha pronta, não serviu.
Demorou um pouco para devolver um “ Mas eu trabalho aqui”.
Mais duas pessoas com crachá laranja tinham entrado no elevador e agora todas olhavam para os dois litigantes. Seus olhares não eram mais de condescendência aborrecida, mas sim de mal disfarçada impaciência.
─ Hei! Vamos acabar com essa palhaçada. cuspiu o primeiro.
─ É. Depois vocês resolvem esse negócio ─ disse o segundo.
─ Já estamos atrasados ─ resmungou um terceiro.
─ Que troço mais ridículo ─ balbuciou um quarto, lançando um olhar carrancudo para os dois importunos litigantes.
─ Como é o seu nome? Perguntou a ascensorista.
─ Jorge..., respondeu ele, mostrando o crachá.
─ Você não pode tomar este elevador. Ele é privativo ─ insistiu a ascensorista. ─ Mas por hoje passa. Da próxima vez pegue o elevador do lado ─ disse ela, sem olhar para ninguém e sem deixar de mascar o chiclete.
O elevador fechou as portas e começou a subir. A ascensorista voltou a folhear a sua revista e o rapaz colocou de novo a pasta preta embaixo do braço. Seu olhar era distante e frio, como se não estivesse ali.
Dentro do elevador as sete pessoas de terno e gravatas, portando crachás cor de laranja olharam durante algum tempo com desprezo para o rapaz moreno, agora de novo com ar humilde, com a pasta preta em baixo do braço. Ele não estava nem ai. Parecia estar sozinho no elevador.
Quando os dez andares do prédio foram vencidos e os últimos passageiros saíram, o rapaz de aparência humilde, com sua pasta preta em baixo do braço saiu também. Não olhou para ninguém. Nem para a ascensorista. Ninguém viu que ele desceu oito andares pela escada. Nos seus olhos havia um brilho de vencedor.
O Dr. Pedro passou pela recepção e cumprimentou a secretária com o habitual bom-dia e o sorriso castiço de todos os dias. Abriu a porta do seu escritório e olhou para dentro dele como se o estivesse vendo pela primeira vez. Sentia um inexprimível desgosto a constranger-lhe o peito. Abriu a janela e o barulho intermitente da metrópole, invadiu, como uma horda bárbara e sem controle, o ambiente. Só então percebeu que sua cabeça estava doendo. Deu então a primeira ordem do dia para a secretária.
─ Sandra, dá para você me arrumar uma aspirina?
A secretária trouxe, quase imediatamente, uma pequena pastilha e um copo com água. Para ela aquilo também era um ritual. Todo dia era a mesma coisa.
O Dr. Pedro olhou inespressivamente para a aspirina. Parecia uma pequena e nojenta pastilha branca, insípida e inodora. Mas internamente, na tela do seu cérebro, ela assumiu a imagem de uma bala de revólver.Abriu a primeira gaveta da mesa e pegou o trinta e oito que guardava ali. Destravou o tambor da arma e retirou todas as cápsulas. Enfiou a aspirina dentro de uma das câmaras vazias do tambor e depois recolocou a cápsula por cima dela. Ajustou o tambor e deu três giros nele. Depois colocou o cano do revólver na boca e começou a brincar de roleta-russa.
O Dr. Pedro entrou no elevador e cumprimentou a ascensorista com um movimento de cabeça e um arremedo de sorriso nos lábios. Ela respondeu com outro movimento de cabeça e um quase imperceptível sorriso, que só quem é muito bom na leitura da linguagem não verbal consegue perceber.
Todo dia ele fazia isso e todo dia ela respondia do mesmo modo. Era um ritual. No elevador havia cinco pessoas, e todas praticaram o mesmo rito e receberam a mesma resposta da ascensorista, salvo uma ou outra, mais conhecida, que ganhava um bom dia e uma abertura um pouquinho maior nos lábios da moça, na hora do sorriso.
JR não pode deixar de pensar que aquele elevador se assemelha à uma confraria onde as pessoas se reconhecem por palavras de passe e gestos rituais, como se fosse uma tácita sociedade de iniciados em uma seita de infelizes yuppies bem sucedidos economicamente e falidos na vida pessoal.
Ali todos se conhecem e se cumprimentam com acenos de cabeça e imperceptíveis sorrisos. Todos trabalham naquele prédio. Todos tomam o elevador no subsolo, onde fica a garagem. Todos usam ternos e gravatas muito sóbrios, se são homens e vestidos discretos, se são mulheres.
No primeiro andar a porta se abriu e entraram mais duas pessoas. Uma delas devia ser conhecida da ascensorista, pois ela recebeu o cumprimento ritual dela e respondeu com a senha da confraria: o aceno de cabeça e o imperceptível sorriso. A outra era um rapaz moreno, de aparência humilde, com uma pasta preta em baixo do braço.
Havia uma pequena plaqueta no lado de fora do elevador que dizia: elevador privativo. As pessoas que podem tomaram aquele do elevador usavam um crachá cor de laranja e a ascensorista usava um crachá azul. O homem que entrou também usava um crachá cor de laranja, e vestia terno e gravata, mas o rapaz moreno, de pasta preta em baixo do braço, usava um crachá verde e vestia jeans e camisa de manga curta.
A ascensorista estava folheando uma revista e mascando um chiclete.
─ Moço, este elevador é privativo. Pegue o do outro lado ─, disse ela displicentemente para o rapaz de pasta preta em baixo do braço.
─ Eu trabalho aqui─ respondeu o rapaz moreno, com a pasta preta em baixo do braço, mostrando o seu crachá.─ Eu sei que você trabalha aqui, mas não pode tomar este elevador.
─ Porque não? Eu trabalho aqui!
─ Porque este elevador é privativo─ insistiu a ascensorista, sem se exaltar.
─ Privativo de quem ?─ perguntou o rapaz humilde, com a pasta preta nas mãos.
─ É privativo ─ respondeu a ascensorista, sem deixar de mascar o chiclete, nem parar de folhear a revista.
─ De quem? insistiu o rapaz.
O Dr. Pedro respirava fundo e observava, ora a ascensorista, ora o rapaz moreno, com a pasta preta nas mãos. Ela agora não parecia nem amistosa nem ausente. E o rapaz não parecia tão humilde. Meia dúzia de pessoas usando gravatas, ternos de cor escura, rostos severos e crachás cor de laranja olhavam agora para os dois litigantes, com uma cara de condescendência aborrecida.
─ Privativo de quem? Atacou de novo o rapaz, já não tão humilde, com a pasta preta agora pendurada em uma das mãos, e com a outra segurando a porta do elevador.
─ De quem usa crachá cor de laranja, não está vendo? ─ Respondeu, com irritação, a ascensorista, agora já não folheando mais a revista e encarando decididamente o rapaz.
O Dr. Pedro olhava com interesse a estranha litigância. Essa explicação, dada pela ascensorista, representava, na opinião dele, um recuo dela em relação ao rapaz da pasta preta. Achou que ele também havia percebido isso e não perdera a ocasião de por o pé dele onde ela tirava o dela.
─ Porque só o pessoal de crachá cor de laranja pode usar este elevador? ─ perguntou, com certo ar de desafio, o rapaz agora não tão humilde, com a pasta preta pendurada em uma das mãos.
─ Porque eles estão na lista dos autorizados ─ respondeu a ascensorista.
─Autorizados por quem? ─ retrucou ele. O Dr. Pedro concluiu que ele havia ocupado mais um pedaço do espaço dela com aquele “autorizados”.
Ela não respondeu. Limitou-se a olhar para ele com uma cara de desprezo.
─ Quem dá essas autorizações? Insistiu o rapaz.
E desta vez ela não cedeu. ─ Aqui só autorizados─ respondeu, agora com firmeza, levantando-se do banquinho.
O rapaz não esperava a reação dela, e a resposta, que já tinha pronta, não serviu.
Demorou um pouco para devolver um “ Mas eu trabalho aqui”.
Mais duas pessoas com crachá laranja tinham entrado no elevador e agora todas olhavam para os dois litigantes. Seus olhares não eram mais de condescendência aborrecida, mas sim de mal disfarçada impaciência.
─ Hei! Vamos acabar com essa palhaçada. cuspiu o primeiro.
─ É. Depois vocês resolvem esse negócio ─ disse o segundo.
─ Já estamos atrasados ─ resmungou um terceiro.
─ Que troço mais ridículo ─ balbuciou um quarto, lançando um olhar carrancudo para os dois importunos litigantes.
─ Como é o seu nome? Perguntou a ascensorista.
─ Jorge..., respondeu ele, mostrando o crachá.
─ Você não pode tomar este elevador. Ele é privativo ─ insistiu a ascensorista. ─ Mas por hoje passa. Da próxima vez pegue o elevador do lado ─ disse ela, sem olhar para ninguém e sem deixar de mascar o chiclete.
O elevador fechou as portas e começou a subir. A ascensorista voltou a folhear a sua revista e o rapaz colocou de novo a pasta preta embaixo do braço. Seu olhar era distante e frio, como se não estivesse ali.
Dentro do elevador as sete pessoas de terno e gravatas, portando crachás cor de laranja olharam durante algum tempo com desprezo para o rapaz moreno, agora de novo com ar humilde, com a pasta preta em baixo do braço. Ele não estava nem ai. Parecia estar sozinho no elevador.
Quando os dez andares do prédio foram vencidos e os últimos passageiros saíram, o rapaz de aparência humilde, com sua pasta preta em baixo do braço saiu também. Não olhou para ninguém. Nem para a ascensorista. Ninguém viu que ele desceu oito andares pela escada. Nos seus olhos havia um brilho de vencedor.
O Dr. Pedro passou pela recepção e cumprimentou a secretária com o habitual bom-dia e o sorriso castiço de todos os dias. Abriu a porta do seu escritório e olhou para dentro dele como se o estivesse vendo pela primeira vez. Sentia um inexprimível desgosto a constranger-lhe o peito. Abriu a janela e o barulho intermitente da metrópole, invadiu, como uma horda bárbara e sem controle, o ambiente. Só então percebeu que sua cabeça estava doendo. Deu então a primeira ordem do dia para a secretária.
─ Sandra, dá para você me arrumar uma aspirina?
A secretária trouxe, quase imediatamente, uma pequena pastilha e um copo com água. Para ela aquilo também era um ritual. Todo dia era a mesma coisa.
O Dr. Pedro olhou inespressivamente para a aspirina. Parecia uma pequena e nojenta pastilha branca, insípida e inodora. Mas internamente, na tela do seu cérebro, ela assumiu a imagem de uma bala de revólver.Abriu a primeira gaveta da mesa e pegou o trinta e oito que guardava ali. Destravou o tambor da arma e retirou todas as cápsulas. Enfiou a aspirina dentro de uma das câmaras vazias do tambor e depois recolocou a cápsula por cima dela. Ajustou o tambor e deu três giros nele. Depois colocou o cano do revólver na boca e começou a brincar de roleta-russa.