O Relato de Bernardo Muriack
 
O relato que aqui farei constitui um alerta ao mundo. Um mal de proporções inauditas ameaça a humanidade. Justamente por isso, tentarei ser breve. O tempo urge. Vamos aos fatos.
 
Desde o ano de 1916, a comunidade de Terra Santa vinha causando alvoroço por todo o país. Seu líder era o Monge Francisco João. Para seus acólitos, tratava-se de um homem santo; para o governo federal e a opinião pública, a encarnação do demônio.
 
Esse povoado abrigava todos os deserdados daquela terra sem lei, onde a miséria campeava. Os fazendeiros viam com preocupação sua mão de obra escassear, e há tempos cobravam uma solução rápida do governo. Acusavam Francisco de conspirar contra a jovem república, a exemplo de Canudos e Contestado.
 
Eu, Bernardo Muriack, homem de letras, a serviço da Gazeta Vespertina, diante das assombrosas notícias que ecoavam por todo o país, tive um estalo: resolvi viver entre os fanáticos, e contar o seu ponto de vista da história.
 
Imbuído desse intento, rumei à cidade de Aceguá, por trem. O arrojo da Terra Santa era tanto que havia arregimentadores na cidade, com os quais entrei em contato para enfim rumar a meu destino.
Em um dia de viagem, a cavalo, chegamos.
 
No final da estrada que conduzia à famigerada comunidade, notei uma circunstância macabra muito alardeada: jaziam nas pontas dos mourões que sustentavam as cercas caveiras humanas. É o que havia sobrado das expedições militares que vieram combater Terra Santa.
 
As caveiras eram como espectros a dizer aos infiéis: - Não prossigam, vão embora!
 
….
 
Ambientei-me com surpreendente facilidade às lides daquela gente rústica. Na verdade devo dizer que havia ali uma pujança que, ouso dizer, raras vezes deve ter sido vista em uma civilização humana. As roças eram cheias de viço, o gado abundante. As construções, de um capricho incomum. A imponente igreja era o centro.
 
Havia escolas bem equipadas, as crianças andavam bem-vestidas e calçadas.
Não se viam pessoas doentes. Dizia-se que as enfermidades eram curadas pelo mãos santas do monge.
 
Integrado à comunidade, eu participava de suas festas, dos jogos de carteado e bingos.
Foi então que conheci a bela Maria Rosa.
 
Nos festejos de São João, vi aquela moça de face trigueira, os olhos negros profundos e cheios de promessas.
 
Convidei-a para dançar. O seu sorriso iluminava todo o salão.
 
Apaixonei-me.
 
Fiz-lhe a corte e a pedi em namoro para os pais. Na data marcada para visitá-la, uma surpresa:  Paulo Abade, o líder da defesa de Terra Santa chamou-me para uma conversa.
Senti certo medo. Não escondi de ninguém o que tinha vindo fazer na comunidade. Mas não sabia o que poderia pensar aquela desconfiada gente egressa destes ferozes sertões.
 
Na varanda de sua casa, o bravo me recebeu. Foi assaz direto: queria que eu testemunhasse o embate entre a defesa da comunidade e as tropas federais que rumavam para Terra Santa. Eles chegariam em dois dias.
 
Aceitei de pronto o convite. Seria algo extraordinário e daria proporções mais épicas ao meu relato. Ademais, poderia constatar se havia alguma verdade nas estórias que se contavam sobre os “ defensores celestiais de Terra Santa”. Explico-me.
 
Os matutos acreditavam que as tropas federais eram debeladas por anjos, guerreiros invisíveis que trespassavam os inimigos com suas lanças, verdadeiros instrumentos da ira divina.
 
Com esses pensamentos, fui até a casa de minha amada, e tudo transcorreu muito bem. Creio ter passado boa impressão a ela e seus pais.
 
….
 
Dois dias depois, a comunidade estava em ebulição. Os beatos saíam a campo em procissões, invocando a ajuda dos anjos, para fazer frente ao iminente ataque das Forças Federais.
 
Na vanguarda, uma figura estranha. Trajado com uma longa camisa azul que lhe descia por todo o corpo, a barba longa e hirsuta, o olhar fulgurante e fixo, Francisco João pregava.
 
….
 
Algumas horas mais tarde, Paulo Abade conduzia seus liderados pela mata que margeava a estrada de acesso à Terra Santa. Os soldados do governo se aproximavam.
 
 
Uma grande apreensão tomou conta de mim. Não estávamos em grande número: éramos no máximo 200 homens. Por outro lado, as notícias sobre a expedição militar estimavam em quase 1.000 o número de combatentes, municiados com 15 milhões de cartuchos e setenta tiros de artilharia. Traziam metralhadoras Nordenfeldt e canhões Krupp.
 
Compartilhando com Paulo minhas preocupações, este apenas dizia:
 
_ Tenha fé homem, os anjos vão botar essa gente para correr.
 
Pouco tempo depois, pudemos ver as forças federais aproximando-se cada vez mais.
E, de súbito, as copas das árvores começaram a balançar, como se alguém estivesse se movendo entre elas.
 
Paulo voltou-se para mim e disse em meio a um sorriso:
 
_ São eles.
 
As cenas que vieram a seguir desafiam qualquer descrição. Repentinamente, os soldados começaram a cair, tais quais vítimas de um ataque invisível, aos montes. Seus corpos pareciam ser perfurados por lâminas afiadas.
 
Não se tratava de uma batalha. As tropas chefiadas pelo louco coronel Andrade Ferraz, o degolador, estavam sendo dizimadas.
 
Desnorteados e em desespero, os militares atiravam a esmo, atingindo seus próprios companheiros.
Os que buscavam fugir pelas matas eram alvejados pela defesa de Terra Santa. Outros, mais inteligentes, faziam o caminho de volta, correndo como quem escapava do próprio demônio, deixando para trás as peças de equipamentos, os cinturões, as espingardas, as peças de artilharia, de modo a facilitar a fuga.
 
Nesse momento pude ver uma cena que me gelou a alma. O comandante, atônito em seu cavalo, imprecando os desertores, de repente estacou. Notei então que um rombo havia sido aberto em seu tórax, do qual o sangue irrompia aos borbotões. No instante seguinte, seu corpo estava suspenso no ar, como que movido por uma força invisível.
 
O sangue revelava os contornos do que havia trespassado o coronel: era algo flexível e vivo, assemelhando-se mais a um tentáculo ou cauda do que a uma lança.
 
Aquela cena era emblemática: a expedição de Andrade Ferraz havia sido liquidada.
 

 
Os dias seguintes foram de muita festa. Em meio às danças e às rodas de chimarrão, assavam-se bois e ovelhas na brasa.
 
A brincadeira favorita das crianças era a guerra santa contra os impios homens do governo. Em suas correrias, fingiam ser anjos a combater as tropas federais.
 
Tudo parecia correr muito bem. Mas abaixo da superfície jazia algo aterrador. Essa foi a impressão que tive desde o massacre das tropas. Uma cena em particular não me saia da cabeça: o coronel suspenso no ar, cuspindo sangue. Passei a ter medonhos pesadelos em que era perseguido por grotescas criaturas, que se assemelhavam a répteis. Era como imaginava os seres invisíveis que haviam dizimado os soldados.
 
A nova derrota do governo ecoava por todo o país. Novos moradores eram recebidos todos os dias, em grandes multidões. Fugiam das condições desumanas das fazendas.
 
Ouvi de muitos deles histórias pavorosas sobre como peões haviam sido torturados até a morte por suspeita de associação com a comunidade do Monge Francisco. Os requintes de crueldade chegavam ao ponto de obrigar as vítimas a cavar suas próprias covas! Eram atos inomináveis de covardia.
 
Diante desse quadro, era compreensível que tantos debandassem para a Terra Santa. Havia boatos macabros sobre fatos ocorridos no povoado, mas as condições de vida não podiam sequer ser comparadas ao que era visto nos campos.
 
Entretanto, as histórias que eu ouvia com frequência causavam calafrios. Existiam em Terra Santa os Círculos de Oração _ grupos de confiança do monge Francisco. Beatos que, segundo os testemunhos de alguns moradores, guardavam segredos espantosos.
 
O que se dizia crianças eram entregues todos os meses às tropas celestiais, que eram lideradas pelo próprio Arcanjo Gabriel. Além delas, outras pessoas da comunidade, em sua maior parte moças, eram arrebatadas. Algumas retornavam, outras nunca mais eram vistas. As mulheres voltavam grávidas. Eram os seus bebês que eram levados pelos anjos.
 
O Monge Francisco dizia que se tratava de obra do Espirito Santo. Os numerosos círculos de oração, de cujas famílias saiam a maior parte dos abduzidos, acatavam suas palavras com uma fé cega e implacável.
 
Esses pormenores eram conhecidos por mim porque Maria era filha de Manoel Ferreira, um integrante dos Círculos. Passamos a nos encontrar às escondidas. Ela temia ser arrebatada, havia escutado conversas. Eu tentava, na medida do possível, tranquilizá-la. Disse que não deixaria que a levassem, que se fosse necessário fugiríamos.
 
Ao ouvir essas palavras, Maria forçou um sorriso e baixou os olhos tristonhos.
 

 
Ao longo das semanas que se sucederam à derrota do Governo Federal, foi anunciado que os anjos e a própria Virgem Maria haviam contatado o monge e fariam uma aparição, em dia e hora marcadas.
 
Na tão propalada data, uma gigantesca procissão liderada por Francisco João seguiu para o campo. Beatas desfiavam seus rosários. Homens carregavam grandes cruzes de madeira e imagens de santos. Havia também muitas bandeiras estampadas com símbolos cristãos.
 
A oração prosseguiu até o momento em que uma voz estridente bradou:
 
_ Vejam, no céu, as contas do rosário da virgem!
 
No instante seguinte, os outros fiéis, ao olharem para o céu, tiveram as mais diversas reações : alguns choraram de emoção, outros caíram de joelhos e se puseram a rezar de forma ainda mais fervorosa.
 
Maria, que estava ao meu lado, voltou-se para o alto e estremeceu. Ergui meus olhos e pude ver o motivo: o que os caboclos diziam ser contas de um rosário assemelhavam-se mais a veículos aéreos, que combinavam características de aviões e zepelims, numa formação que realmente se assemelhava a um colar.
 
Maria, gaguejando, disse:
 
_ Bernardo, são essas as coisas que levam os bebês! São eles.
 
E desatou a chorar. Abracei-a e tentei confortá-la
….
 
Em uma das noites que se seguiram, Maria disse que ia me mostrar algo ainda mais espantoso do que os fatos que havia presenciado até então. Ela, sendo filha de um integrante dos Círculos, tinha acesso a algumas de suas reuniões secretas, as quais observava escondida em um casarão vizinho à área restrita onde tais encontros ocorriam.
 
Fui convidado a espionar com ela os rituais daquele grupo. No dia marcado, seguimos por uma trilha que conduzia àquela área. A lua cheia iluminava nosso caminho.
Adentramos o casarão, e aguardamos.
 
Logo pudemos ver, pelas frestas da janela, o Monge Francisco e seu séquito aproximando-se. Em meio a palavras em latim e rezas, ouvíamos o choro de uma criança.
 
Um berço era trazido pelos beatos.
 
Após mais algumas orações, e de um sermão no qual Francisco João exaltava as virtudes de Terra Santa e dos anjos protetores, um forte zumbido pode ser ouvido. Subitamente, todos olharam para o céu. Uma luz intensa projetou-se sobre eles.
 
O Monge calmamente tomou o bebê em seus braços, erguendo-o em um oferecimento:
 
_ Bendito Arcanjo Gabriel, oferto-lhe mais um soldado para o sagrado exército celestial.
 
Os beatos responderam, em uníssono:
 
_Amém!
 
Acima deles flutuava o que parecia ser um dos objetos vistos no dia da aparição. A uma distância menor assemelhava-se ainda mais a um zepelim, com a diferença de que sua superfície era totalmente lisa. A forte luz, que agora parecia focalizar o monge e a criança, era projetada pelo estranho veículo.
 
Foi então que notei, aterrorizado, os olhos daquela criança: eram totalmente negros, como se recobertos por uma membrana. Sua cabeça também era mais volumosa do que a de bebês normais.
Seria aquilo uma doença? Ou a ação de maus espíritos?
 
Logo depois vimos, assombrados, um homem de elevada estatura, crânio avolumado, e olhos tão negros como os do bebê, trajado com um estranho macacão, flutuar de uma abertura do veículo até o solo, recebendo a criança dos braços do monge. Os dois elevaram-se, como que arrebatados pela luz, até a abertura, que em seguida se fechou. O veículo partiu veloz e sumiu em meio às estrelas.
 

 
Os dias seguintes foram de muita angústia. Tínhamos a impressão de ser vigiados durante todo o tempo. Maria falou sobre sua amiga Ana, que seria a mãe daquela criança. A moça havia sido arrebatada um ano antes, e desde seu retorno, grávida, vivia como um fantasma, a perambular pela casa, dizendo coisas sem nexo, o olhar vazio e perdido.
 
Minha amada voltara a ouvir conversas de que ela seria a próxima a ser abduzida, o que explicava seus nervos em frangalhos.
 
Não suportava mais vê-la sofrer. Acabei convencendo-a a fugir comigo. Não a deixaria cair nas garras daqueles fanáticos e seus mestres. Iriamos partir na noite da reunião seguinte do sinistro grupo, quando seria mais fácil escaparmos sem sermos vistos por ninguém. Depois de certa hora, os moradores não se atreviam a sair para a rua. Além disso, Maria conhecia um caminho seguro para nossa fuga, que não era vigiado pela defesa de Paulo Abade.
 
Assim, na data marcada, partimos, a cavalo. Levávamos alguns mantimentos e água. A saída da comunidade foi muito mais fácil do que esperávamos.
 
Maria conduzia-me pela trilha. Ouvíamos com atenção todos os sons, muito apreensivos. No céu enluarado, havia nuvens esparsas.
 
Atravessamos aquela lúgubre estrada onde se viam as caveiras dependuradas em postes. Maria teve um sobressalto ao se deparar mais uma vez com aquilo. Era como um mau presságio.
 

 
Uma hora depois, já havíamos tomado certa distância. Decidimos apear para descansar um pouco.
Ofereci água a Maria. Enquanto ela bebia avidamente do cantil, ouvimos o som que naquele momento soava como o prenúncio de grandes desgraças: era o zumbido emitido pelos estranhos veículos aéreos.
 
Percebemos rapidamente o que aquilo significava, e tentamos montar nos cavalos e fugir. Mas os animais relinchavam em desespero e não conseguíamos acalmá-los.
 
Logo o grande objeto surgiu, e projetou sua ofuscante luz sobre nós. Ficamos paralisados. Maria então foi arrebatada pela luz, tal qual o bebê naquela fatídica noite. Lágrimas de raiva e tristeza escorriam pelos meus olhos enquanto eu a via flutuar até aquela terrível abertura que remetia aos meus piores pesadelos.
 

 
Depois do rapto de Maria, fiquei um longo tempo atordoado, sem saber o que fazer. Fiquei a pensar se havia sido poupado, ou se um destino mais sinistro havia sido reservado para mim.
 
Após recobrar as forças, prossegui em minha jornada, carregando um imenso peso na alma. Eu não tinha conseguido salvar minha adorada Maria. Em meu íntimo sabia que carregaria essa culpa eternamente.
 
Alguns dias depois, encontrei uma cabana no meio de floresta. Tenho escutado sons nas copas das árvores, e estranhos sussurros. Acredito que as feras invisíveis estão em meu encalço.
 
Este relato será escondido aqui, neste casebre. Talvez meus empregadores da Gazeta Vespertina venham me buscar, e o encontrem. Creio que será tarde demais para me salvar. E não lamento. Depois de perder Maria, minha vida não tem mais sentido. Mas minha mensagem ao mundo estará a salvo.
 
Ouço no teto as malditas criaturas. Logo elas entrarão para assassinar-me. Portanto, não tenho mais tempo. Devo registrar aqui meu apelo: as autoridades de todo o mundo devem ficar alertas, pois a humanidade corre grande risco. Seres que só podem ter vindo de outra dimensão se passam por deuses, iludindo os incautos, e podem, com o poderio que demonstraram, dominar e escravizar todo o planeta. É a única conclusão a que pude chegar, diante de tudo que vi. Talvez seja inútil enfrentá-los, mas é a opção que resta ao nosso povo.
 
Rezo para que esses fatos não sejam esquecidos, como lágrimas em meio ao orvalho que evapora nas manhãs de sol, e que essa narrativa chegue às mãos das autoridades… Antes que seja tarde demais.

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 21/02/2015
Reeditado em 13/03/2015
Código do texto: T5145298
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