O Colecionador

Um serial killer é um predador, busca sua vítima em meio a tantos rostos na multidão. Seus olhos passeiam num exame minucioso por cada ser que ele vê andando na calçada, até julgar que aquele infeliz vai satisfazê-lo. O predador pode ser qualquer um, até o cara com a maior paciência do mundo, qualidade exigida num trabalho como o de um cuidador. E esse cara é Edgar Martins, porém ele não sabe disso, apesar de algumas anotações feitas em seu caderno escondido, seguramente ou não, embaixo do seu travesseiro.

Sinto-me cada vez mais cansado, parece que não durmo há semanas, porém tenho certeza de ter deitado na cama e fechado meus olhos. Não sei o que está acontecendo comigo. Vou no médico amanhã.

Uma outra nota dizia:

Está quase impossível me manter acordado durante o dia. Fui ao médico, fiz os exames e não deu nada. Estou saudável, mas mesmo assim me sinto cansado, com sono.

Coisas assim eram frequentes no diário dele. O gosto pela morte o impedia de dormir à noite, matar pode ser viciante. Edgar tinha muito dinheiro, herdado de seu pai. Podia passar a vida sem trabalhar, se quisesse. Seu velho queria que ele fosse médico, mas Edgar optou por ser cuidador, pois gostava do ofício e o fazia com excelência e dedicação. Acordava às sete da manhã pra oito e meia estar na casa de seu Carlos, um senhorzinho com mal de Alzheimer que repetia todo santo dia a história em que fugiu dos guardas da ditadura e Edgar o ouvia com uma paciência e atenção admiráveis. Seu Carlos adorava ele, assim como todos os outros empregados do grande apartamento no Jardins. O cuidador passava a tarde lendo para o velhinho, mesmo sabendo que em menos de cinco minutos ele já teria esquecido tudo o que ouvira. Por volta das sete da noite, Edgar dava o banho, os remédios e saía às oito horas, quando o cuidador que passava a noite chegava. Em casa o ritual era sempre o mesmo, tomava banho, jantava e dormia. Ou ao menos ele achava que dormia. Era nesse momento de fechar os olhos e embarcar nos sonhos que acontecia. Parecia uma chavinha sendo levantada para cima em sua mente e o outro assumia.

-Cuidador patético de uma rotina entediante. - Edgar disse para o quarto vazio ao se levantar da cama. - Eu devia matar aquele velho com a história tosca da ditadura. Será que ele nunca se cansa de repetí-la? Puta que o pariu eu já estou cansado de ouví-la.

Pegou o diário debaixo do travesseiro, tinha uma nova anotação:

Tenho medo do que acontece quando eu durmo, às vezes tenho a sensação de estar andando, mas não sou sonâmbulo, ou pelo menos nunca fui. Está ainda mais difícil me manter acordado de dia, o que é estranho, afinal venho dormindo cada vez mais cedo. Amanhã é minha folga e vou comprar uma filmadora pra descobrir o que acontece.

Ridículo. - quase gritou.

Colocou minuciosamente o diário de volta ao seu lugar. Tudo deu certo até agora graças à sua discrição. Trocou-se, calça jeans escura, camiseta preta justa mostrando os músculos e a jaqueta preta de couro. Ajeitou o cabelo, passou um perfume e estava aberta a temporada de caça. Saiu a pé e foi até um terreno abandonado em uma rua esquecida por Deus não tão longe dali. Entrou no carro e partiu para a periferia de São Paulo, um ambiente perfeito para encontrar sua vítima, afinal em lugar perigoso ninguém dá a mínima se alguém some, pois é comum.

Entrou em um desses inferninhos, onde o funk rolava solto, bebidas e drogas também. Deu uma boa olhada em cada um lá. Ele tinha um padrão, como todo serial killer. Uma moça lhe chamou a atenção, alta, cabelos longos e negros, pele alva, corpo definido, olhos castanhos, nariz e boca pequenos. Dançava agitando os braços e jogando a cabeça, alternando entre a direita e a esquerda. Aproximou e rasgou elogios para a moça. Ele não era de se jogar fora e ela já tinha passado do seu limite alcóolico, caiu nas graças dele.

Vamos sair daqui. - disse com os dois braços em volta do pescoço dele.

Ele sorriu, mostrando os dentes alvos. Saíram pelos fundos, entraram no carro dele, e foi a vez da seringa, retirada do porta luvas, tomar parte no negócio. Ele a espetou no braço dela e pela dose cavalar do sedativo misturada com o álcool não demorou que ela caísse num sono profundo.

Vamos nos divertir muito juntos. - disse sorrindo enquanto dirigia para o galpão que ficava para além da cidade no meio do mato.

O local era enorme, cabia uns trinta carros tranquilamente. Ele estacionou o uno mille 97 ao lado dos outros quinze veículos presentes no galpão, carregou a garota até a mesa de cirurgia, como ele mesmo chamava. Amarrou os braços e as pernas e preparou os instrumentos. Ela ainda estava viva quando ele cortou um Y em seu peito, igual uma autópsia. Graças ao sedativo ela não iria gritar. Começou pelo fígado, seu preferido. Lavou, cuidadosamente e colocou no vidro com formol, etiquetou com o nome dela, Lourdes Vieira. Encontrara um rg no bolso do jeans surrado e presumia ser este o nome dela. O próximo item de sua coleção macabra foi o pâncreas. Mesmo processo, lavou, guardou e etiquetou. E foi assim com todos os órgãos internos. Terminado o serviço, foi até a estante e retirou o livro Crime e Castigo do Dostoiévski e digitou 1866 no painel digital. Ouviu-se uma engrenagem funcionar e a estante se moveu pro lado direito revelando uma escada. Com os potes em uma caixa grande de papelão, ele desceu até o porão, onde várias estantes estavam dispostas, com tantos vidros semelhantes àqueles que ele trazia agora. Colocou na prateleira com a letra L em ordem alfabética dos potes que já estavam lá. E subiu. A estante se fechou, quando ele recolocou o livro em seu lugar. Puxou outro livro, Um brinde de cianureto de Agatha Christie e digitou no visor 1945. A estante se moveu para o lado esquerdo e revelou uma salinha, onde jazia uma banheira com um conteúdo borbulhante. Com todo o cuidado, colocou o corpo da menina e o ácido corroeu, faminto. Voltou, recolocou o livro na estante que novamente fechou a passagem. Limpou todo o local, guardando seu ferramental em um fundo falso no armário. A mesa da cirurgia era guardada embaixo da pia, onde cabia perfeitamente. Trocou de roupa, bagunçou o cabelo e pegou um outro carro que jazia no galpão, um ka. Fez todo o ritual da volta, colocou o carro no terreno abandonado e voltou a pé para o apartamento pequeno de Edgar, o cuidador. Colocou aquele pijama horroroso, eram 3h30 da manhã quando fechou os olhos e a chavinha desceu, permitindo que o bondoso cuidador tomasse conta por mais um dia.

***

No começo era uma vítima a cada três meses. Depois passou a uma vítima por mês. O gosto pela sua coleção foi aumentando e passou a uma por semana. No entanto isso ainda não o satisfazia e passou a matar todo dia. Queria aumentar sua coleção.

Amanda o observava tinha meses, aprendendo seus métodos e planejando seu ataque. Já tinha entrado no galpão, instalara uma microcâmera que lhe permitiu acesso aos livros e códigos que movem a estante.

***

Edgar acordou no seu dia de folga e assustou-se ao olhar o relógio marcando meio dia. Estava descansado, pensou por um momento que tudo não passava de sua imaginação. Sacudiu a cabeça, estava determinado a comprar a filmadora. E o fez. Instalou o equipamento na frente da sua cama, queria ver o que acontecia quando dormia. Aproveitou seu dia de folga para passear enquanto a diarista dava um jeito no apartamento. O dia passou rápido e à noite, após a janta leu mais algumas páginas de seu livro, ligou a filmadora e dormiu. A chavinha subiu e Edgar, o psicopata estava solto novamente.

Ele acha mesmo que vai saber o que ocorre? Tadinho. - sorriu para a filmadora, desligou e apagou o arquivo que ela mal filmara.

Riu e foi pra mais uma noite de diversão. Na volta, se preocupou apenas em trocar de roupa e dormir. A chavinha desceu e o cuidador voltou ao controle.

Ele acordou com o som do despertador e animado foi checar o que tinha sido gravado. Assustado, deparou-se com o aparelho desligado. Nada, não tinha um arquivo no cartão de memória. Pegou o caderno debaixo do travesseiro e fez algumas anotações:

Definitivamente alguma coisa acontece quando eu durmo, mas não sei o que, pois alguém ou alguma coisa desligou a filmadora, porém me deixou intacto. Alguém não queria ser filmado, mas quem?

Jogou o caderno de volta embaixo do travesseiro e experimentou amarrar a filmadora no teto, pensando ludibriar quem quer que fosse, mal sabia ele que o psicopata observava tudo e ria, praticamente gargalhava dentro dele, porém o cuidador não o percebia.

Podia ser feriado para as pessoas com empregos normais, um cuidador não tem feriados, tem folgas e vez ou outra. Se arrumou e foi para o apartamento de seu Carlos. Estava difícil se manter acordado, novamente sentia-se cansado e como se não tivesse dormido. A xícara de café era sua companheira no dia, não queria perder o emprego. Gostava de seu Carlos e de cuidar dele.

A noite chegou, Edgar ligou a filmadora e foi dormir. Novamente o psicopata apagou o arquivo e desligou o aparelho. Saiu, fez seu ritual e foi atrás de sua vítima. Enquanto retirava os órgãos, ouviu um barulho.

Quem está aí? - perguntou com uma faca na mão, caminhando em direção do barulho.

Não houve resposta. Ele caminhou cuidadosamente passando pelos carros em busca do invasor, ia adorar acrescentar mais órgãos para sua coleção. Não percebeu quando a invasora passou por trás dele e o acertou na cabeça. Caiu inconsciente.

Quando acordou se viu amarrado numa cadeira, um latão em chamas e uma garota de seus vinte e poucos anos parada, com uma arma na mão, na sua frente.

Ah finalmente você acordou.

Quem é você? Me solte, anda. Não vê que estou trabalhando?

Belo trabalho que você tem aqui hein? - ela debochou e mostrou a foto de uma moça um tanto mais velha que ela. - essa é minha irmã e você a matou. Não faz ideia do quanto desejei esse momento.

Então isso é sobre vingança? - ele riu. - Se você ama sua irmã significa que você não tem o lance que um psicopata tem para matar. Não vai conseguir.

Ela tinha uma arma apontada pra cabeça dele. Edgar se aproximou.

Atire! Vamos! Faça! - ele provocava como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Ela tremia, abaixou a arma.

Eu sabia. - gargalhou. - Olha acho que me lembro de sua irmã, a foto dela é familiar. Você não tem ideia do quão prazeroso foi matá-la. Retirar cada órgão. Ah, eu faria tudo de novo.

Cala a boca. - ela berrou.

Parou por um instante.

Eu vou te matar. - retomou. - mas antes vou te torturar. - ela sorriu maliciosa.

Amanda retirou o livro e digitou o código. A estante revelou a passagem, pela qual ela passou. Em instantes voltou trazendo vários vidros de prateleiras diferentes e atirou um a um no latão incendiado.

Não sua pirralha, minha coleção não. - ele berrava desesperado.

Desespero não fazia parte dele e sim do cuidador e instantaneamente a chavinha desceu. Ele sacudiu a cabeça.

O que está acontecendo? - Edgar franziu o cenho. - Moça? O que são esses vidros? Por que estou amarrado? Quem é você?

- Ah agora vai dar uma de louco comigo? - ela sorria.

Moça, eu não sei mesmo o que está acontecendo. Eu só sou um cuidador e eu devia estar dormindo. Como cheguei aqui? Que lugar é esse?

Por um instante ela sentiu ser genuína a confusão dele. Queria testar. Ela o tirou da cadeira e o colocou de frente pra estante.

Puxe o livro que abre a outra parte.

Eu não sei do que você tá falando. Que outra parte?

Ela colocou a arma na sua cabeça.

Agora, ou eu atiro.

Calma, moça. Ele puxou um livro de Oscar Wilde, mas não tinha nenhum painel pra senha atrás dele.

Ele não sabe mesmo o que está acontecendo, quem seria idiota de tentar uma gracinha com o cano de uma arma atrás da cabeça. Será que sofre de algum transtorno? Dupla personalidade sei lá?, pensou, em seguida abaixou a arma e assim que Edgar se viu a salvo, ainda que momentaneamente, o outro assumiu. Gargalhou.

Você acha mesmo que eu ia deixar na cabeça desse otário o livro e a senha da minha estante? Obrigado por me soltar, pois agora eu vou fazer picadinho de você. - Edgar passou a mão no machado encostado perto da estante.

É dupla personalidade. - ela disse atônita.

E ela descobriu! Palmas pra ela. Eu sou criação da raiva e do ódio oprimidos desse trouxa que nunca teve a coragem de peitar o pai. O estúpido do velho lhe fazia de gato e sapato e essa besta desse cuidador nunca revidou. Eu sou o lado divertido e sem escrúpulos dele. Agora chega de papo que tenho órgãos pra retirar. - ele se virou e já ia preparar o machado quando ela atirou.

O tiro perfurou um pulmão. Ele caiu, percebeu que a morte estava próxima e pela primeira vez sentiu algo. Não sabia o que era, pois desconhecia o medo. Ergueu o rosto e viu os olhos dela brilharem, nesse momento ouviu outro disparo, pra nunca mais ouvir nada, pois este o jogou nos braços da morte. Amanda colocou Edgar na banheira de ácido, destruiu toda a coleção dele. Por fim, ela incendiou o galpão, que logo iria pros ares, afinal não tardaria para os carros explodirem. As evidências não eram necessárias. Saiu feliz do lugar, entrou em seu carro e jogou a foto da desconhecida que chamara de irmã no banco. Interpretara bem o papel de garota frágil. No fim do dia era um serial killer a mais na sua coleção. A sola do seu pé ganharia mais um nome tatuado, Edgar Martins, afinal ela não curtia a concorrência.

Miliany Pellegrini
Enviado por Miliany Pellegrini em 21/02/2015
Reeditado em 22/02/2015
Código do texto: T5145195
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.