656-O CIRCO DO APOCALIPSE- Conto diabólico

A vila de Nossa Senhora dos Bons Desejos era um bairro populoso de importante cidade no Norte de Minas. Não distante da igreja ficava o Largo do Engenho, área antes ocupada por um engenho de cachaça, que não mais existia quando este fato ocorreu. Falava-se muito na transformação do largo em jardim. Mas os prefeitos não se preocupavam com um local tão remoto. Que, aliás, era propício para a montagem de circos e parques de diversões.

O Padre Baltazar já passava dos sessenta e quanto mais velho, mais irascível ficava e seus sermões sovam como passagens apocalípticas aos atemorizados fieis.

— Por que devemos estar preparados? Porque demônio não avisa quando chega! Vem sempre disfarçado. Muitas vezes em animais fantásticos. Outras vezes, surgem na forma de lindas mulheres tentadoras para os homens fracos de espírito. Para as mulheres que tentam na prevaricação, aparece sob a forma de lindo mancebo, com chifres na testa. E pés de cabra! Cuidado, todos vocês, irmãos e irmãs! O dia do acerto de contas está próximo! As bestas do Apocalipse estão soltas! Têm trombas, cornos retorcidos, cospem fogo pelas ventas e pela boca! Cuidado com as bestas do Apocalipse! Cuidado com o fim do mundo!

O tema dos Últimos Dias, com as piores imagens de oratória, era o assunto predileto de seus sermões. Sabia que mantinha o espírito dos fiéis atento para qualquer tipo de tentação.

Foi então que chegou um circo à cidade. Circo grande, com diversos veículos, caminhões cheios do material para erguer a imensa lona, jaulas com alguns animais e artistas que apresentavam espetáculo variado.

Na tarde ensolarada e quente os artistas desfilaram pelas as ruas da cidade, anunciando o espetáculo de abertura naquela noite. O homem da perna de pau, lá de cima de suas varas de quatro metros, abria o desfile, seguido pelo palhaço, pelo carro aberto com duas trapezistas em trajes resumidos. Uma jaula com o elefante, o homem que cuspia fogo, outro artista magro, vestido também de palhaço, acompanhado por uma grande cabra.

Enfim, toda a trouppe passeou pela cidade, atraindo a atenção do povo, convidando todo mundo para o espetáculo inaugural.

Na primeira noite o circo ficou cheio. O povo aplaudia a cada espetáculo. Dom Pepe, o diretor, anunciava os espetáculos:

— Agora, senhoras e senhores, as trapezistas americanas Helen e Shirley.

Após as moças encerrrem seu numero, gritou para a platéia:

— Em seguida, o guru Chiva com seu elefante amestrado.

Mais malabarismos com o elefante que sabia contar.

A seguir, de novo o diretor:

— Carlinhos Bode e sua cabra que fala! A Cabra Esmeralda!

E finalmente:

— Tocha Humana. O homem que cospe fogo.

O circo tinha um elenco de apresentações que deixou os assistentes abismados. Todos aplaudiam, gritavam, assobiavam. Um sucesso!

A notícia do circo chegou até o padre Baltazar, levado por não-se-sabe-quem, mas, com toda a certeza, um de seus fiéis mais apavorados, completamente doutrinado pelos sermões.

— Padre é o circo do fim do mundo! Tem um enorme bicho com tromba capaz de destruir uma casa com seu peso. Um homem que é o dragão do inferno, cuspindo fogo pela boca. E o próprio capeta aparece: um bode deste tamanho, e que fala! Conversa como se fosse gente. É o demo sem tirar nem pôr, com aqueles chifres retorcidos.

A maioria dos que foram ao circo era do centro da cidade ou de outros bairros, e não freqüentavam a igreja de Nossa Senhora dos Bons Desejos. Mas os fiéis ouvintes do padre Baltazar foram admoestados logo no sermão da próxima missa:

— É o circo do Apocalipse. Todas as bestas lá estão: bicho com trombas, dragão que cospe fogo, e até o capeta aparece como um bode falador. Quem for estará condenado por toda a eternidade!

O circo ficaria na cidade apenas uma semana, como era usual. Tempo suficiente para que as invectivas do pároco chegassem aos ouvidos do diretor do circo. Este era rigoroso com seus artistas e tirava deles o máximo sem, contudo, perder o bom humor. Ele mesmo contava “causos” engraçados e piadas, entre as apresentações do espetáculo que comandava.

Quando ficou sabendo da proibição do padre, tratou o caso com sua habitual maneira:

— Vamos distribuir entradas grátis para os freqüentadores daquela igreja. Vamos ver se os carolas resistem a um espetáculo sem pagar nada. E vai ser para o último espetáculo, no domingo de noite.

E mandou que dois artistas distribuíssem à saída da missa principal de domingo, de manhã, entradas aos que deixavam a igreja.

O diretor tinha razão. Um espetáculo de circo, de graça, era imperdível, mesmo que fosse coisa do diabo. Os paroquianos da igreja de Nossa Senhora dos Bons Desejos foram. Corriam o risco, mas... era sem pagar!

Sentaram-se juntos num setor, como se houvesse uma combinação entre eles. Foram chegando e se sentando nas arquibancadas (os ingressos grátis só valiam para as arquibancadas), bem próximo da entrada do circo.

Admiraram as trapezistas, o homem que caminhava num fio esticado a cinco metros de altura e o perna-de-pau que saia do palco e entrava pela seção de cadeiras numeradas.

Riram das palhaçadas e das piadas do diretor. Suportaram com temor, as apresentações do “gigantesco bicho de trombas” e do o dragão que cuspia fogo.

Mas quando o ventríloquo (que pouca gente sabia o que era) Carlinhos Bode apareceu e começou a conversar com o magnífico exemplar caprino, de longos chifres retorcidos, pintados de vermelho, o pânico aconteceu.

— É o capeta! — alguém gritou.

O povo fiel do Padre Baltazar não suportou a tensão. Começou a descer as arquibancadas, numa fuga atropeladora, uns caindo em cima dos outros, em direção à saída do circo.

Para os demais assistentes, foi uma nota a mais de graça no espetáculo de Carlinhos Bode conversando com sua Cabra Esmeralda.

Os tementes das feras do Apocalipse saíram em corrida desabalada, rumo à igreja. O Padre Baltazar, que dormia num puxado lateral da igreja, acordou com o tropel dos fieis. Quando ficou inteirado do que havia ocorrido, levantou o braço direito, abençoou os fiéis e lhes disse:

— Agora vocês sabem que entrada grátis para o circo do Diabo é uma nova arma do capeta. Dessa armadilha nem eu sabia.

E olhando na direção do Largo do Engenho, gritou:

— Vade Retro Satana!

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 14 de março de 2010

Conto # 656 da SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/02/2015
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