O Hospital Abandonado

Era final de tarde, dona Carmen vinha da missa. Caminhava apressada tentando escapar da tempestade que se anunciava. Estava preocupada também com o filho que ficara sozinho em casa. Precisava lhe servir a janta.

Viúva, morava com o filho único, Victor, que tinha quarenta anos. Ele era um homem extremamente tímido, calado e triste, que não tinha amigos, quase não saía de casa. Sua vida social se resumia as atividades da Igreja, sempre vigiado pelos olhos atentos da mãe, que não queria que ele conversasse com garotas. Elas podiam fazê-lo cair em tentação.

Victor não trabalhava e não estudava. Largara tudo para cuidar da mãe e ela dedicara sua vida para cuidar dele.

Ao passar em frente ao prédio onde funcionara o hospital, dona Carmen teve a atenção despertada por uma jovem que caminhava a passos largos, cabisbaixa, com uma criança no colo, enrolada em panos para protege-la da chuva.

Espantada, a idosa viu a garota subir a colina que levava ao hospital abandonado e que era iluminado pelos relâmpagos.

Os trovões a alertavam para ir para casa, mas, dona Carmen ficou observando a subida desesperada da jovem na estrada de chão batido. Tentou gritar, avisar que era tempo perdido procurar por socorro naquele prédio. Que há anos nada funcionava ali e só Josué, o vigia corcunda e manco cuidava do lugar.

Pensou na criança. Que cada segundo talvez fosse importante para salvar-lhe a vida e correu atrás da mãe e do filho. O vento impiedoso a desequilibrava a todo momento. A chuva começara com força e a impedia de ter uma visão exata do lugar e também de onde pisava, fazendo com que por três vezes ela tropeçasse e sujasse as mãos no barro, no esforço de evitar um tombo.

Dona Carmen pousava a mão em aba sobre os olhos na tentativa de ver a jovem. Observava a figura curvada diminuir de tamanho a cada passo e entrar apressada no prédio abandonado.

A idosa teve a esperança de que o vigia alertasse a moça sobre a inutilidade de sua ação. Esperou por alguns segundos, mas, ninguém apareceu na porta do grande prédio.

Pensou em desistir. Estava molhada, com frio, ofegante e começava a sentir dor de cabeça. Os raios e trovões eram ensurdecedores e os rápidos clarões eram seu único auxílio na tentativa de ajudar a jovem mãe.

Com dificuldade foi subindo a ladeira. Os pés afundavam na lama, seu rosto era castigado pelo vento e pela chuva inclemente, mas, ela via com satisfação o grande prédio se avolumar a cada passo.

Entrou e ficou por alguns segundos no saguão tentando descobrir um sopro de vida. Além do som assustador da tempestade só ouvia o ranger das portas e o barulho das janelas batendo. Esfregou os braços tentando se aquecer. Suas mãos encardidas sujaram as mangas do casaco branco de lã.

No fundo de um longo corredor um relâmpago a fez descobrir a figura da jovem cruzar o recinto. Ia de peça em peça, na busca desesperada e infrutífera do socorro para o filho.

Um estrondo desviou atenção de dona Carmem. A porta de entrada fechou tornando o velho casarão ainda mais lúgubre. Mas, ela não se importou. Sua prioridade era ajudar a moça. Devagar, começou a procura-la, tateando a escuridão, torcendo para que um novo relâmpago iluminasse seu caminho. Rezava pedindo força e ajuda aos céus. A escuridão era cada vez mais densa e o bater de dezenas de janelas lhe dava a impressão que o prédio desmoronava.

Seus olhos se arregalaram ao descobrir uma vela acessa no exato lugar onde havia um oratório. Lembrou da imagem da santa que ali ficara por décadas e agradeceu o milagre. Pensou que como ela podia se manter acessa com o vento correndo pelos corredores. Refletiu que o segurança a estava usando. Mas, ele utilizava lanterna - lembrou logo a seguir - e onde ele andava? – indagou tento a certeza de que a débil chama era uma graça dos céus.

Quando entrou num antigo consultório lembrou com carinho que ali recebera a notícia de que estava grávida. Sorriu ao relembrar a imagem do marido emocionado e a sua alegria de ver que em breve realizaria um sonho.

Mas, sua felicidade foi interrompida pelo vento apagando a vela e do barulho da porta se fechando. Mesmo na escuridão, Dona Carmem correu para abri-la, mas, ela estava trancada. Começou a dar socos e a gritar por socorro na esperança de que o vigia ou a jovem a escutassem.

A idosa não tinha celular. Não gostava destas modernidades. Os raios e trovões aumentavam seu desespero por ter a consciência de que seus gritos e murros na madeira eram por eles encobertos.

Depois de algum tempo, Dona Carmem encostou as mãos unidas na porta e pousou a testa sobre elas. Rezava e sua oração era interrompida pelos soluços e pelo choro. Uma lágrima que escorria por sua face lhe deu a consciência de sua solidão, fragilidade e impotência. Seu choro aumentou quando lembrou do filho e ela soluçava e dizia a si mesma para se acalmar. Talvez achar uma cadeira ou algo onde pudesse sentar. Recuperar as forças, meditar sobre uma forma de pedir socorro ou escapar dali. Um rápido clarão iluminou a sala e lhe mostrou um pequeno corredor que ligava a outras peças.

Receosa, mas com esperança de achar uma saída, caminhou lentamente usando as mãos que roçavam pelas paredes descascadas e mofadas como guias.

Ao chegar a um outro recinto tropeçou e caiu. Sua mão deslizou pelo chão imundo procurando o objeto no qual esbarrou. Tinha noção que era alguma coisa grande.

Para seu desespero a mão passou por algo que ela logo descobriu ser um corpo. Trêmula e ofegante deslocou a mão das nádegas até a corcova do vigia. A descoberta veio acompanhada de um novo clarão que lhe revelou a cabeça de Josué ao lado do corpo.

Vários foram os seus gritos que ecoaram pela escuridão acompanhados do bater multiplicado das janelas e portas, dos raios e trovões. Os olhos arregalados, o rosto retorcido, as mãos trêmulas à altura da face não conseguiam expressar todo o seu pânico. Desesperada tentou se erguer. Mas, seu corpo tremia intensamente. Faltava-lhe forças e ar. Sentia-se tonta, mas, sabia que não podia desistir e engatinhando tentava encontrar um apoio para se levantar. Seus joelhos doíam e com muito esforço conseguiu se erguer, com a ajuda do que julgou ser um monte de terra.

Só então um relâmpago lhe mostrou ao lado do monte de areia uma cova. Receosa, ela se aproximou do buraco. Seu coração palpitava, ofegava não só de cansaço, mas, de medo. Um clarão lhe revelou a jovem mãe que ela tentava ajudar. Estava deitada, de olhos arregalados, extremamente lívida, segurando entre os braços cruzados sobre o peito o filho morto.

Dona Carmem gritava como se descobrisse que era ela quem estava morta naquela cova. As mãos trêmulas sobre a boca não impediam um novo urro de pavor que se unia aos estrondos do fechar e abrir cada vez mais intenso das portas e das janelas. Seu desespero ecoava pelo enorme prédio escuro como se fosse uma série de chicotadas em sua alma, minando suas resistências e aumentando o seu medo e a certeza de que estava perdida.

Atônita, percebeu o rangido da porta se abrindo. Com dificuldade ficou em silencio. Tremia e era tomada pela angústia de tentar ouvir um novo ruído. Algo que denunciasse o que ocorria às suas costas. Mas, antes que pudesse se virar foi agarrada e sentiu a fria e afiada lâmina em seu pescoço e um último e desesperado grito ecoou pela escuridão antes que de sua jugular espirrasse sangue que escorreu por seu corpo e pelas mãos de seu assassino.

Seu corpo despencou ao lado do vigia. Seu algoz saiu correndo do prédio. Ninguém viu sua silhueta descendo a ladeira na forte chuva, entre relâmpagos e trovões.

Encharcado e esbaforido, Victor abriu a porta de casa. Não ligou a luz. Sentou na cadeira de balanço da mãe. Os clarões da tempestade iluminavam rapidamente a sala. Passou as mãos tremuladas sobre os cabelos molhados. Depois, as colocou em forma de concha sobre os lábios e lançou seu bafo, tentando aquecê-las. Permaneceu imóvel por instantes. Os olhos arregalados mirando o vazio da moradia, que os relâmpagos lhe apresentavam. Analisava que preferia ver a mãe morta do que suportar seu olhar de reprovação por ele ter feito sexo. Ter perdido a virgindade num estupro, que resultara na gravidez da jovem, que ele assassinara.

“Mas como a mãe descobriu o corpo? Como ele se desenterrou? E como a criança nasceu? Ele matou a jovem grávida.” “O vigia não podia ter ajudado dona Carmem. Ele o matou também” - indagava-se enquanto esperava que a polícia lhe trouxesse a notícia de que um monstro havia degolado sua mãe.

Paulo Antonio Branco
Enviado por Paulo Antonio Branco em 18/02/2015
Reeditado em 19/02/2015
Código do texto: T5141103
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