Eles viram você - DTRL20
Desculpe meu estado alterado, mas estou uma pilha de nervos. Não durmo há dias e ficar acordado tem sido uma tortura. Não sei ao certo o que está havendo, mas eles... Essas coisas não me deixam em paz. Escute... Está ouvindo os sussurros? Não? Como não? Estão por toda parte... Eu... Eu os vejo e o pior é que eles também me veem. Sabe, eu nunca fui religioso, mas peço a deus para me livrar desse pesadelo sem fim. Você deve estar se perguntando a razão dessa situação em que me encontro. Apenas prometa que não vai embora e eu conto tudo, porque enquanto eu estiver acompanhado eles não se aproximam.
Essa maldição me atingiu há quase uma semana. Alguns amigos vieram aqui em casa para jogar videogame. Era nosso programa de sexta-feira à noite e eu, como estava sozinho por minha mulher ter viajado, era o anfitrião. Éramos cinco: Carlos, Sidney, Jorge e Rafael, que trouxe um amigo que estava na cidade para visita-lo. Até hoje não sei seu nome real nem o vi mais, ele apenas se apresentou como Folheto. Achei o apelido um tanto estranho, mas não questionei; queria começar a beber minha cerveja logo. Durante algumas horas nós bebemos, jogamos e nos divertimos. Falávamos sobre tudo, de futebol a aparições de óvnis. Confesso que demorei a perceber que de et’s o papo passou para seres espirituais.
Eu nunca acreditei nessas coisas, sempre me considerei cético quanto a essas baboseiras espirituais. Minha opinião era simples:
-Isso é bobagem! Será Mesmo que é mais fácil acreditar em fadas e duendes, que existem anjos salvando pessoas de acidentes do que na lei da probabilidade e fenômenos químicos e biológicos?
-E porque não as duas coisas? –Sidney perguntou
-Você sempre prefere o caos. –Jorge falou ainda com os olhos no jogo- Assim fica difícil.
-E se existir? Que diferença faz? Eles estão lá e nós aqui. –Rafael falou levantando- Vou buscar Mais cerveja.
Carlos, que sorria de nossas opiniões, comentou:
-Sendo real ou não, eu gostaria de fazer uma autópsia em um anjo para saber do que são feitos. Deve ser bem interessante.
-Isso não faz o Menor sentido. –falei- E, aliás, além de contos de terror e relatos religiosos, não existe provas que me convençam.
-Eu posso te mostrar uma coisa. –Folheto falou com um olhar estranho- Mas não é algo para qualquer um.
-Não é jogo do copo não, né?
-Jogo do copo é brincadeira de escola. O que vou te ensinar é algo profundo, com fundamento.
-Então vamos lá. Manda ver.
-Na antiguidade, os espelhos não eram usados apenas nas residências, mas também em templos, rituais e vidências. Espelhos são portais para outros mundos, outras realidades. O que alguns chamam de plano astral é o mais próximo de nós e é possível vê-lo através de uma técnica bem simples.
-Folheto, acho melhor parar com a cerveja. –eu debochei- Isso é papo de bêbado.
-Duvida? Então faça o teste. Se não acontecer nada, eu te dou razão.
Pensei por uns instantes e concordei. Era algo realmente simples. Me tranquei no banheiro, apaguei a luz e acendi uma vela. Diante do espelho, a ergui do meu lado esquerdo. Olhei para o lado escuro do meu rosto sem piscar sequer uma vez. Não havia nada, apenas escuridão. E isso começava a ficar desagradável a cada segundo que se passava. Ao mesmo tempo em que a ardência se tornou desconfortável demais, vi algo mudando. Em uma fração de segundo eu vi, mas até agora não sei o que foi. Eu pisquei. Tentei começar de novo, mas meus olhos ardiam muito.
Apaguei a vela e saí do banheiro, coçando os olhos. Todos perguntaram se eu vi algo, mas para não parecer ridículo falei que pisquei e não consegui. Em pouco tempo o assunto estava esquecido. Quando acabamos de jogar, eles se despediram e eu os acompanhei até o portão. Sem que os outros ouvissem, Folheto disse:
-Eles viram você.
Eu ri, imaginando que ele queria me assustar. Porém, o assustador foi de madrugada. Aquela noite foi a primeira que não dormi. Tive pesadelos com criaturas horrendas, distorcidas, com traços de animais. Me perseguiam, tentavam me devorar e não me pegaram por pouco. Talvez porque acordei. Fui para a sala e liguei a televisão para tentar me distrair. Mas uma sensação estranha me tomava. Arrepios vinham junto com a impressão de não estar sozinho. Parecia uma criança vendo filme de terror. E isso aumentou tanto que não conseguia pisar no chão, sentia pressão em meus ouvidos e os arrepios não passavam. Fiquei encolhido no sofá, lágrimas escorriam dos meus olhos cada vez que sentia a brisa gelada me tocar. Brisa essa que parecia não ter origem física, porque a casa estava fechada e o ventilador desligado.
Não dormi aquela noite e pela manhã estava péssimo. Passei o dia a base de café forte e sem açúcar. Mas eles não me deixavam. Hesitei em entrar no banheiro, por medo de encarar o espelho. Quando o fiz, me arrependi. A superfície estava negra, nem um único reflexo em sua superfície. Ao colocar a mão sobre ele, senti como se algo se movesse, quase como se o espelho respirasse. Tentei retirá-lo para quebra-lo, mas parecia colado à parede. Decidi cobri-lo com uma toalha e apenas não olhá-lo mais.
Os dias seguintes foram ainda piores. Comecei a ouvir vozes guturais sussurrando línguas estranhas em meus ouvidos. Foi assim no trabalho, na rua, em casa... Todo lugar que eu ia as vozes me seguiam. Meus amigos perguntavam a razão das olheiras e da cara abatida, mas eu não podia contar a eles. Iam rir e dizer que fiquei impressionado com a brincadeira do Folheto. Por isso estou contando a você, sei que não vai me ridicularizar e quem sabe até possa me ajudar. Por que eu não sei mais o que fazer. Juro que já tentei de tudo. E as coisas só pioram. A cada vez que procuro ajuda, eles se tornam mais agressivos.
Uns dias atrás eu comecei a sentir os vultos ao meu redor, em todo lugar. E depois vi seus rostos. É horrível! Juro pra você que nada do que aconteça comigo depois vai apagar essas imagens da minha mente. Eles tentam me pegar e eu sinto que vão conseguir mais cedo ou mais tarde. Sinto que a cada dia estou mais lá do que aqui. Ontem mesmo meu vizinho passou por mim e pareceu não me ver, em sua frente. Tenho muito medo. Não quero deixar minha esposa e meus filhos para trás. Vou te dar uma prova do que estou falando. Veja meu braço. Esses pontos inflamados e sangrando não são de um acidente na cozinha como tive que falar para o médico. Isso foi o resultado de um minuto de cochilo enquanto pesquisava meu problema na internet.
Estou tomando muitos remédios, café e energéticos, mas a cada vez os efeitos diminuem. Sabe, eu... Acho que estou enlouquecendo. Acho que estou começando a compreender o que dizem, essa maldita língua da qual não consegui encontrar nenhum tipo de tradução. Eles me querem. Querem devorar minha alma. E sabe por que? Por que eu os chamei para nosso plano. Estão sussurrando agora Mesmo enquanto se aproximam de Mim. Você também está ouvindo, mas acha que é sua imaginação. Sei que ainda não os compreende, mas vai compreender em breve. Porque, agora, eles também viram você.
Tema: universos paralelos