Deglutição


Dizem as más línguas que o rebuliço que anda pela boca do povo, é mentira. Quando se trata de verdades espalhadas pelo vento, há de se desconfiar. Mas ao mesmo tempo em que há certa desconfiança, também temos que admitir que não se deva duvidar de nada quando se trata do filho mais novo de Dona Marcinha. As teorias que acercam o desparecimento do menino são muitas. Desde crime planejado até abdução alienígena. A coitada da mãe sofre até hoje pelo o que aconteceu ao garoto.

Ninguém mais a vê andando pela rua, nem mesmo se achegando nas mercearias. O povo fala demais e ouve de menos. A pobre da mulher já não aguenta tanta fofoca, pelo o que parece.

A última eu ouvi um dia desses, enquanto andava pela Floresta do Capiau.

O que me foi dito conta sobre uma velha que morava nos arredores da cidade, conhecida pela sua feitiçaria curandeira e seus dons com magia negra. A molecada dizia ser macumba, mas ninguém nunca soube o que era de verdade. Na entrada da velha casa tinha uns bonecos espetados igual aos de vodu, porém pouco se sabia. Mas o que se diz no momento, é que o menino andou por aquelas bandas, e parece que isso foi a causa de seu sumiço.
 
***
 
Renatinho ouvira diversas vezes sobre a bruxa caquética que habitava uma casinha velha, nos arredores da cidade. Sua mãe contara que certa vez havia ido até lá para descobrir se seu pai a estava traindo. E pelo visto dera certo, pois ela descobriu a traição e o colocou para fora de casa. Renatinho não via problema algum nisso, pois já nem mesmo se lembrava do dito cujo. Já era um menino-homem de doze anos de idade, e a compreensão dos fatos lhe era natural, pelo menos assim ele julgava.

Ouvia histórias sobre a velha desde criança, e tinha um fascínio sobrenatural pelo o que o que lhe contavam. Planejou diversas vezes ir até lá, mas nunca conseguiu completar sua missão. Na maioria dos casos, por sua mãe o pegar no flagra antes de cometer o ato. Mas desta vez, conseguira escapar. Acordou logo cedo, montou na bicicleta antes que mãe percebesse, e rumou para seu destino. Pedalou durante duas horas até chegar à casinha de madeira, que ficava no finalzinho da floresta do Capiau. Não viu movimentação enquanto se aproximava.

O casebre era pequeno, feito de madeira há muito desgastada e telha caiada. Renatinho observou com fascínio os pequenos e horripilantes bonecos que balançavam pendurados ao teto. Eram sete, ao total. Subiu no meio-muro da varanda, olhando para ver se encontrava alguém, e quando não viu, passou a mão nos brinquedos. Eram feitos de palha e madeira, sem rostos que os distinguisse, apenas silhuetas diferentes. Ele fitou um mais cheinho, coberto com palha preta para identificar a roupa. Segurou o boneco e puxou com força, arrebentando o cordão que o segurava no teto. Segurou em suas mãos e sorriu. Virou o rosto de leve e uma feição indescritível gargalhava para ele através da janela. Um rosto sulcado e purulento. Faltavam todos os dentes e em seu lugar vãos negros eram vistos. O olho esquerdo era completamente branco, enquanto o direito era vermelho, e movia-se de forma frenética. Renatinho escorregou do meio-muro e caiu, levantando-se rapidamente e correndo em direção a bicicleta. Montou nela e saiu desvairado pela estrada de terra.

O boneco, ele trazia consigo, enfiado dentro do bolso da camisa.
 
***
 
E dizem que foi aí que a coisa ficou feia. Naquela manhã ele chegou em casa atônito e foi descansar embaixo do pé de manga suntuoso que tinham no quintal. Ao que parece, Dona Marcinha procurou saber o que tinha acontecido ao filho, mas ele não quis dizer. Segurava apenas o bonequinho bem apertado ao peito, e tinha um olhar estranho. A mãe buscou umas ervas e deu para o menino. Primeiro achou que era dor de barriga, depois pensou que fosse moleira mole, devido ao tempo exposto ao sol. Mas nada adiantou.

Quando a noite se aproximou, Renatinho ainda não tinha falado sequer uma palavra, mas enfim sentiu fome. E é ai que começa a falácia.

Naquela noite ele comeu até não querer mais. Começou com um balde de fruta que ficava em cima da mesa. A mãe saiu por um instante e quando voltou, o menino comia até o caroço. Os dentes pequenos mastigando e quebrando tudo. Com uma mão segurava a fruta, e na outra o boneco. Dona Marcinha fizera de tudo para ele soltar, mas de forma alguma, ele não largou.

Quando terminou de comer tudo, inclusive o balde, pulou para as panelas. Comeu a comida que tinha e ainda raspou o fundo. A mãe só olhava horrorizada enquanto via o menino mastigando sem parar. Quando acabou o que tinha ali, ele pulou para o armário. Abriu e comeu tudo o que tinha. Mastigou arroz, feijão, farinha, fubá e ainda comeu os sacos. Dizem que os olhos do moleque eram brasa pura.

Quando por fim ele comeu até a carne crua da geladeira, bebendo o sangue em seguida, Partiu para a mobília.

E isso explica muita coisa na casa depredada da sobrevivente Dona Marcinha. Ouvi dizer que não tem muita mobília por lá. Falam que o pouco que tem, é marcado por mordidas.  Sem contar os diversos buracos pela casa. Certa vez me disseram que ela só vive do lado de fora, catando fruta no quintal. Dia e noite. Quem me contou essa de agora, diz que é pra alimentar o filho amaldiçoado dela. Enquanto outro disse que ele furou o estômago mastigando as panelas.

 
Não dá para acreditar muito. Hoje em dia mentira tem perna curta, mas corre que é uma beleza. Somente de uma coisa eu tenho plena certeza: O bonequinho gorducho e feito de palha existe. Já vi com meus próprios olhos. E ele ainda está lá, bailando com o vento, pendurado na varanda. Quando o vejo, não nego, sinto fome...
 
Jefferson Lemos
Enviado por Jefferson Lemos em 03/02/2015
Código do texto: T5124832
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