O ENCARGO DE APOLO
ASSIM QUE LI SOBRE A MORTE de J. Edmond nos jornais, soube o que era preciso fazer. Segundo os indiferentes peritos, ele fora vítima de uma letal combinação de antidepressivos e álcool, consumidos em doses avassaladoras. O laudo era inconclusivo; porém, enquanto a legião de fãs e a imprensa sensacionalista acreditavam tratar-se de mais um lamentável acidente, resultado dos excessos comuns entre os grandes artistas, dotados de almas sensíveis e irrequietas, eu, Ernesto Santiago y Santiago, seu editor e, de acordo com o próprio Edmond, único amigo (digo estas palavras com mais pesar do que satisfação; gostaria de ter sido um indivíduo mais qualificado para tal relação), tive a imediata certeza de que ele finalmente tomara coragem(?) e dera cabo da própria atribulada existência.
Depois do estrondoso sucesso de seu último livro –uma assombrosa coletânea de contos de natureza fantástica-, Edmond, a exemplo de outro escritor famoso, igualmente atormentado por seus demônios interiores, se impôs um rigoroso exílio. Eu fora a única pessoa a quem ele informara seu distante paradeiro, e era sua única ligação com o mundo dos homens. Orgulho-me de ter sido merecedor de tal confiança: além de jamais ter revelado a ninguém seu esconderijo, fui obrigado a realizar intrincadas manobras para manter em segredo a localização de seu refúgio e despistar fãs exaltados e paparazzi ávidos por uma foto do excêntrico autor do maior best seller da atualidade.
Devo ao acaso ou ao destino –que são a mesma coisa- a felicidade de ter me deparado com a espantosa literatura de Edmond; eu editava, então, deploráveis obras de autoajuda e embustes esotéricos insignificantes e parcamente rentáveis; a Edições Santiago, fundada por meu velho pai, um espanhol enorme e forte como um urso, de vasta barba cinzenta, obstinado, confiante e laborioso, vivera dias de glória; depois que o velho faleceu, e atendendo ao seu último desejo, intentei dar continuidade à sua obra. Porém, minha estatura física e moral era uma pálida sombra do meu pai, e a minha inaptidão para o ramo não tardou a se revelar por completo. Em poucos anos, fomos perdendo os bons autores e títulos, cuidadosamente angariados por meu pai ao longo dos anos, para outras editoras. As coisas iam de mal a pior, e a falência redentora era questão de –pouco- tempo; mas o destino (o acaso) havia me reservado outro fim. A literatura de Edmond livrou-me da bancarrota; sua sincera e devotada amizade preencheu uma lacuna em minha vida. Edmond recusou inúmeras propostas de grandes editoras que o teriam deixado ainda mais rico; sua fidelidade canina decorria das circunstâncias em que nossa relação teve início. O fato é que, se Edmond me salvou da ruína financeira, por outro lado, eu fui aquele que o resgatou de volta para o mundo dos homens. Talvez isso tenha sido um erro.
A maneira como tomei conhecimento da magistral obra de Edmond foi absolutamente fortuita; de fato, posso dizer que o universo (ou o acaso ou o destino) conspirou a meu favor. Hoje, creio que nosso encontro tenha sido prejudicial para Edmond; talvez, se ele tivesse permanecido no hospital, estaria protegido de si mesmo; talvez, se ele tivesse permanecido no hospital, ainda estaria entre nós; talvez, para ele, isso fosse intolerável... Basta; não há benefício algum em enveredarmos por inúteis e inconclusivas conjecturas; Edmond se foi, e nada o trará de volta. Edmond se foi, porém o mal que o transtornava perdura. É tempo, portanto, de trazer a verdade à tona. Não creio que seja possível fazer algo para evitar o fim; porém, que o mundo ao menos saiba como lhe sobreveio o mal que o destruiu.
Já mencionei que meu acesso à literatura de Edmond foi casual; passo a explicar como isso ocorreu. Explicar como conheci sua obra também elucidará sua natureza atormentada. Foi em 1972. Como de hábito, eu me encontrava trancado em minha sala na editora, evitando ao máximo os problemas cotidianos: falta de tinta na prensa, demandas por melhores salários, a perda de mais um título para uma concorrente. Contrariando minhas ordens expressas, a secretária permitiu que alguém chegasse até mim. O homem acreditava ter algo valioso para me apresentar. A letra era tímida, vacilante, incerta. Assim que pousei os olhos sobre as páginas manuscritas, o vertiginoso conteúdo –que contrastava com a pobreza da caligrafia- me aprisionou até a última surpreendente palavra. Olhei para o portador; sua rude aparência denunciava: em hipóteses alguma ele poderia ser o autor daquela peça magistral. Perguntei-lhe onde conseguira aquelas páginas; ele perguntou-me se eu havia gostado; tornei a perguntar-lhe onde ele adquirira aquelas páginas; ele perguntou-me quanto eu pagaria por elas; comecei a me irritar; disse-lhe que pagaria o equivalente a dois meses de seu salário desde que ele me revelasse onde havia descoberto a peça e quem era o seu autor. Ele regateou; queria mais. Ofereci-lhe quatro meses de salário, informando-lhe que aquela era minha oferta final, e que a mesma estava condicionada às revelações que eu já lhe havia demandado. Ele abriu um largo sorriso e me contou uma história quase tão fantástica quanto o conto que eu agora tinha em mãos.
Após vários meses desempregado, o portador daquela obra prima havia conseguido trabalho como faxineiro no Hospital Heisenheimer para pacientes com distúrbios psiquiátricos. Varria e lavava corredores e banheiros e arrumava quartos, cercado de indivíduos alienados deste mundo de homens, devastados pelo abuso de drogas ou por inextricáveis doenças da psique humana.
J. Edmond ocupava o quarto 32. Ele nunca deixava o aposento; tampouco permitia que qualquer um ali entrasse. Era um paciente dócil, mas ficava completamente transtornado se alguém tentasse penetrar em seu “lugar de refúgio”, como ele se referia às acabrunhadas instalações do quarto 32. O acesso só era franqueado ao Sr. Salomão, o outro faxineiro, um negro velho e gasto, tão familiarizado com aquele ambiente de loucura que parecia ter vindo ao mundo junto com o próprio hospital. Esse arranjo funcionou razoavelmente a contento, até a chegada do novo diretor, um jovem arrogante e cheio de si que pretendia ser rigoroso na nova função. Cioso de marcar suma administração à frente da renomada instituição, ansiava por uma oportunidade de contrastar seu perfil severo com a leniência do antigo gestor. Assim que tomou conhecimento dos “caprichos” de Edmond, ordenou que ele fosse transferido de quarto; sua índole autoritária jamais poderia tolerar insubordinações de qualquer natureza. Fez questão de acompanhar pessoalmente a operação; manteve-se insensível diante dos rogos confrangidos do paciente. Foram precisos quatro enfermeiros para o meterem dentro da camisa de força; a dose de sedativos que lhe aplicaram seria capaz de mantê-lo letárgico pelas próximas quarenta e oito horas. Ao entrar no quarto, o diretor se deparou com uma visão à qual somente Edmond e o velho Salomão estavam afeitos: as paredes estavam cobertas de inscrições e de um recorrente desenho de um animal que poderia ser um cão. Aborrecido com aquela bagunça, ordenou ao novo empregado que limpasse toda aquela confusão. Era uma quarta-feira; o diretor viajaria naquela mesma tarde, só retornando na próxima semana. Nosso amigo adentrou o quarto, munido de todos os equipamentos necessários para cumprir seu encargo; mas, ao contrário do diretor, era um homem curioso. Começou a ler e teve a mesma reação que eu e todos os fãs de Edmond teríamos a partir dali: não conseguiu parar. Teve, então, um breve lampejo; vislumbrou a possibilidade de faturar algum dinheiro; poderia ser que alguém se interessasse por aquela terrível história. Aproveitando-se da ausência do diretor, passou as horas de folga e as noites seguintes copiando o material; depois de três noites, o trabalho estava pronto, e ele, completamente exausto, mas satisfeito. No dia seguinte, lavou das paredes toda e qualquer prova da autoria do material e saiu em busca de alguma editora. A minha porta foi a primeira com a qual ele deu; como já mencionei, o acaso me foi extremamente favorável; ou os poderes cósmicos desejaram que eu e Edmond travássemos relações. Imediatamente comprei a história, o que proporcionou àquele pobre diabo grande alegria, pois metera nos bolsos uma soma que nunca obtivera antes. Mas o seu contentamento era infinitamente menor que o meu próprio; enquanto ele ignorava a magnitude daquela peça, eu pressentia –por Deus; eu sabia!- que tinha em mãos uma verdadeira joia. Mas eu precisava ir além; eu precisava conhecer pessoalmente o autor da melhor peça de literatura que jamais estivera sob os cuidados da Edições Santiago.
Encontrei Edmond em estado deplorável; a mudança imposta pelo novo diretor havia deixado em frangalhos seus nervos instáveis. Com uma determinação que nem sequer imaginava possuir, empenhei-me em livrá-lo daquela masmorra; isto só foi possível dois meses após nosso primeiro encontro. O estrondoso sucesso do seu relato, publicado numa coletânea de contos fantásticos pela Edições Santiago (as demais peças eram sofríveis; o conto de Edmond brilhava entre eles como uma pérola, um raio de sol) facilitou o processo, e eu finalmente consegui levá-lo para minha casa. Acomodei-o no modesto quarto de hóspedes, saí para trabalhar e deixei-o à vontade; ao retornar, já não o encontrei mais; Edmond havia fugido. Sua nova condição financeira lhe permitira desaparecer sem deixar vestígio. Sobre a minha escrivaninha, o número de uma conta bancária. Mensalmente eu depositava a comissão de Edmond naquela conta; um dia, ele me escreveu uma súplica num telegrama lacônico:
Favor excluir meu conto seu livro.
Muito a contragosto, tive que ceder à vontade do autor; a segunda edição de Fantasmagoria estreou bem, até as pessoas descobrirem, frustradas, que O encargo de Apolo não figurava em suas páginas. Daí em diante, as vendas despencaram. Nenhum livro posterior da editora jamais repetiu o sucesso de Fantasmagoria; nos próximos quinze anos (seus últimos quinze anos), Edmond, tal qual um novo Salinger –sem as perversões daquele outro famoso recluso-, nunca mais voltaria a publicar qualquer coisa. Edmond atraía a curiosidade do mundo literário, da imprensa especializada e dos leitores. De tempos em tempos ele me enviava cartões postais; suas palavras me faziam crer que ele era grato por minha amizade; apesar disso, reiterava sua ordem de não tornar a publicar o excelente O encargo de Apolo. Na última vez em que se comunicou comigo, ordenou, categórico:
Quando chegar fim, conte verdade. Destrua originais meu conto.
Sou um canalha; a ganância falou mais alto (a ganância gritou) do que a lealdade; assim que Edmond se extinguiu sem deixar herdeiros, tornei a publicar O encargo... com estrondoso sucesso. A despeito do pedido de Edmond, nunca fui capaz de contar a verdade; quem se importaria? Se não há nada a fazer para evitar o pior. Nunca fui capaz de contar a verdade; quem acreditaria? O homem recebe com nervosa alegria a narrativa fantástica que lhe infunde o terror catártico; porém, a mesma narrativa, trazida para o mundo real, é imediatamente rechaçada por sua mente hermética. Acreditar que, ao lermos O encargo..., estamos diante de uma terrível fantasia, de uma alegoria sobre o mal que espreita este mundo, ou de uma poderosa metáfora sobre a eterna batalha que tem lugar nos recônditos sombrios da alma humana, fazem do conto uma narrativa irresistível; conhecer suas verdadeiras características o tornam abominável. Dar-se-ia o caso que o nobre leitor ainda não o conheça? Pois bem: pela última fez, ei-lo; na cópia original –se podemos chamá-la assim- inicial, trazida pelo faxineiro do Hospital Heisenheimer, lamentavelmente, faltava-lhe o início; o conto foi publicado assim, desde a primeira edição de Fantasmagoria:
(CONTINUA...)