Durante a noite
Era uma cabana no meio do nada. Não havia árvores, animais, casas, ou qualquer outra coisa. Cláudio necessitava de tempo para escrever seu livreto. Tempo sozinho, distante, dizia ele. Ali, longe do estresse de sua casa e sua noiva irritadiça grávida, poderia relaxar e pensar em histórias para dar a seu editor. O silêncio parecia uma dádiva.
A cabana, feita de troncos de carvalho e cimentada por dentro, era aconchegante, quente e espaçosa. O autor, de cabeça grisalha, na casa dos cinquenta anos, estava sentado em uma cadeira de frente para seu notebook quando ouviu um som que lhe incomodou profundamente. Parou de digitar e olhou ao redor. Nada viu; mas o som permaneceu constante, doendo-lhe os ouvidos. Cláudio sequer imaginava como era o vácuo do espaço; porém o silêncio daquela cabana se assemelhava àquilo. Sem som, sem vento, sem animais, sem nada; senão por um pernilongo.
Era apenas um pernilongo, ele pensou. Voltou ao seu livro e, quando foi teclar novamente, o zumbido voltou. Cláudio olhou ao redor e nada viu. A casa era quadrada, sem divisórias – senão o banheiro –, portanto o som ricocheteava nas paredes e parecia emanar de todos os cantos. O pródigo escritor resolveu procurar o ínfimo mosquito, mas não viu sinal do inseto que se misturava na cor escura das paredes – e o zumbido continuava. Respirou fundo e voltou ao computador. Sentou, respirou, e teclou a letra “F” – e zumbido se intensificou. Não conseguiu digitar mais nada. Seus olhos corriam de canto a canto e nada viam – e o zumbido não cessava. Onde estaria, ele se perguntava em raiva já suando em estresse – e o zumbido continuava.
Cláudio, então, pegou seu notebook e foi para o banheiro. Digitou a letra “D” e a bateria apitou. Estava acabando. Olhou ao redor e não viu tomada. Só havia do outro lado – o zumbido havia parado. Respirou fundo, pegou seu notebook, e abriu a porta lentamente, ouvindo o ranger que, naquela cabana silenciosa, mais parecia um grito rouco. Seu ouvido doeu. Um pingo de suor escorreu de seu queixo e, como estalar de dedos, ressoou ao cair no chão – e o zumbido voltou.
O cinquentão, já sentado em sua cadeira, pegou papel higiênico, fez duas bolinhas, e colocou na cavidade auditiva. O som externo cessou, porém o interno aumentou. Agora “ouvia” o palpitar de seus olhos estressados, o bater rápido de seu coração, as velhas articulações estalarem ao caminhar de lado a outro pela cabana, sua ofegante respiração, e quando ousava pronunciar algum xingamento o som era tão estrondoso que parecia estourar-lhe os tímpanos. Cláudio estava puto. Procurou seu fone de ouvido para ouvir música, mas percebeu que o havia esquecido em casa. Forçou-se a sentar na cadeira e olhar para a tela do computador, onde não havia escrito praticamente nada útil. Havia prazo para entregar o texto, não muito, e ele necessitava de calma para escrever. Cláudio era do tipo de pessoa que não funcionava muito bem sobre pressão e sua noiva não o estava ajudando em casa, sempre reclamando e vomitando, de forma que em casa tudo o que sentia era o cheiro azedo no ar. Ele precisava estar ali, no entanto a maldita cabana não lhe acalentava a mente. Era o inferno na terra, mas ele era persistente. Havia dirigido quatro horas para estar ali, pagado pelo fim de semana, e não sairia de lá sem seu livreto pronto.
Olhos lá, olhos cá – onde está?! – não vejo você, filho de uma puta. Ali, rápido, passando perto da parede. Cláudio correu com um chinelo na mão, focalizando o maldito pernilongo, e quando estava prestes a atacá-lo, notou que seus olhos haviam se desfocalizado do inseto na parede escura e se guiado à uma mancha na parede – e o zumbido não cessava. Cláudio começou a chorar – onde está?! – e o zumbido foi fundo em sua alma quando o pernilongo passou ao lado de seu ouvido. Cláudio deu um tapa no ar somente para acertar um pedaço de madeira na parede que lhe encheu a mão de farpas. Sua mão ardia e sua testa ardia – em febre. Cláudio estava mal, perdido em sua própria ilusão. O silêncio não era um aliado, não daquela forma – não, jamais, silêncio faz mal. Ele se levantou e, quando se dirigia à porta, viu o pernilongo voando baixo. Foi-lhe dar uma chinelada com a mão não ferida – também não a boa – e não acertou nada. Correu atrás do pernilongo sem perdê-lo de vista – não o podia fazer – e correu atrás do maldito inseto sem perder o foco. Tropeçou no fio do notebook arrebentando-lhe e puxando o aparato para o chão, fazendo a letra “P” sair involuntariamente no livreto, e fazendo Cláudio cair de testa no chão. Seu notebook morreu, seu livreto morreu, e sua paz já havia morrido em casa, ressuscitado na cabana para morrer mais uma vez. Que vida injusta. Uma mão enfarpada, um galo na cabeça, lágrimas no rosto, febre e raiva.
Pegou suas malas – ainda fechadas -, guardou seu notebook e saiu da cabana. Estava febril, com alta temperatura corporal, suando frio, quando pegou a chave do carro e ouviu o “bip”. Entrou, respirou fundo, olhou para a cabana com raiva e fechou a porta do carro. Ligou a luz interna para procurar no porta-luvas um remédio para a febre e viu, ali no vidro do carro, do lado interno, outro pernilongo – e ele voou. E o zumbido recomeçou.