Apenas mais um dia
La estão... Seu sitio e ele, são rústicos, construídos de pau a pique, pinga e suor. Bem peculiar, muito exótico, talvez excêntrico...
São sete horas da tarde, João acaba de acordar, caminha até a grande varanda, veste uma calça de boiadeiro, casaco de pele, suspensório, que na ocasião está suspenso e bate a altura dos joelhos, e uma bota de couro. Faz aquilo que faz todos os dias. Espreme limão num copo, coloca pinga e vira de um só trago, pega uma bereta, vai até uma das extremidades da varanda onde gosta de ver a neve cair, segura a bereta a frente do nariz, se concentra, mira e dá um tiro e mais três subsequentes.
Após o cair da neve, anda até o quintal, para em frente a um grande tronco de arvore cortado a uns quarenta centímetros do solo, ao lado tem uma pilha de outros troncos menores, pega um, coloca em cima do largo tronco de arvore, empunha seu machado, e de um só golpe o reparte ao meio, desfere outro golpe certeiro e o quebra em quatro, fica neste oficio durante uma hora, depois empilha os troncos cortados do outro lado, ergue o suspensório sobre os ombros, como se aquilo fosse fazer alguma diferença, e some porta adentro.
Neste dia como todos os outros neste lugar, o dia nublado começa ir embora as oito dando lugar a uma noite fria, cortada pelos gelados zunidos do vento, acompanhados por periódicas pancadas de neve. Ao fundo relâmpagos dançam no horizonte, dando ao local uma aparência pulsante e extremecedora.
As benfeitorias do sitio foram construídas por ele, a casa é espaçosa e quase toda em madeira, sem alguma forma de acabamento, bem ao fundo tem um engenho, produz pinga e aguardente, é movido pela queda d’água de uma bica sobre uma grande roleta de madeira presa as extremidades de uma represa, na qual a faz girar e acionar o mecanismo.
João está sentado em um banco, do outro lado da casa, numa segunda varanda. Está afiando o seu machado, como quem afaga os cabelos de uma pequena, gosta do som metálico causado pelo atrito entre a lima e a lâmina, lhe agrada ver o aço comendo o aço, o excita a atmosfera nebulosa da propriedade.
Na sala, em cima de uma mesa prepara algo que intitula de “coquetel”, ingere aquelas substâncias, pega sua capa de neve, empunha novamente seu machado este dia, e sai para mais um dia de matança.
Mata a machadadas indivíduos vulneráveis que cruzam o seu caminho, os amaldiçoam com a certeza de que irão direto para o inferno. João não gosta da morte súbita, profere vários golpes enquanto sente o sofrimento das vítimas, a neva manchada de sangue anuncia uma vida interrompida, saboreia o gosto da morte, o entusiasma o som de gritos atormentados, cultua o ódio, o desespero, a desesperança, o medo e a desolação. Ao voltar traz com ele pedaços de carne humana.
De volta à propriedade, reúne uma porção dos troncos cortados e ascende o seu grande fogão a lenha, retira seu pesado casaco de pele sujo de sangue, tempera a carne e a coloca dentro de uma panela com água. Enquanto cozinha vai até seu quarto pega um caderno escondido atrás de uma tábua, abre e relata todo o seu dia ali, inclusive a carnificina. Enquanto escreve tem a sensação de estar revivendo cada momento, por isso detalha no presente seus feitos, como se estivessem acontecendo novamente. Possui o estilo de escrever seus relatos em terceira pessoa, dando a falsa impressão que fosse apenas um mero observador, usa o pseudônimo “João”. No começo da última folha esta a palavra assassinatos, risca o numero 19 e coloca 21 e esconde novamente seu caderno.
O cheiro da carne humana está impregnado em todos os cantos da casa, isso lhe traz um desejo selvagem de saboreá-la, de volta a cozinha serve-se com prazer descomunal daquele pedaço já sem alma. Satisfeito deita-se tranquilamente, repousa suave e, sobretudo orgulhoso, enfim suspira e dorme.
J. Félix de Mendonça