O COURO DO ENFORCADO - DTRL 20

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Caro leitor, antes que comece a decodificar essas linhas que vos aguardam, tenho que alertar que essa história carrega uma maldição, uma maldição cercada de mistérios que se materializa no significado de cada palavra, então quando estiver lendo, uma sugestão dos fatos vai entrar por seu sistema nervoso e transformar em realidade no seu subconsciente obrigando a ver mesmo de olhos fechados as imagens que atormentam até mesmo os mais corajosos... Imagens que pode não significar nada, mas quando estiver no escuro silencioso do seu quarto, os ruídos habituais vão deixar de serem comuns, as sombras indecifráveis vão passar a se mover e seus sonhos vão fazê-lo tremer... Já aconteceu antes... Com outras pessoas que ousaram ir até o fim...

2

No canto do quarto a menina, completamente nua, chorava compulsivamente, se encolhia e soluçava sem parar, sentia a sombra do medo lhe cobrir como um manto escuro e denso, e apesar da pouca idade, previa a própria morte. Nunca foi uma criança boba, mas ainda mantinha a inocência infantil que a colocou naquela situação... O homem parecia tão confiável... Ele fazia isso há tempos, por todas as cidades onde passava escolhia sua vítimas e as conquistava com sua simpatia peculiar, olhos azuis profundos e talento com ilusionismo.

Para o monstro de olhar repulsivo ao qual ele se transformava o choro era a música mais bela do mundo e ele se deliciava com a dor da pequena, gostava de apavorá-la contando histórias de terror... Relatos das coisas que havia feito com as outras meninas, descrevia com detalhes todas as atrocidades praticadas, coisas que a jovem menina nem sabia o significado, mas deduzia estarem relacionadas com a dor... Seus olhos castanhos escuros se mantinham fechados e a doce garotinha tentava imaginar o rosto de sua mãe ou o campo verde coberto de geada no inverno e de pequenas flores amarelas no verão... Ela adorava brincar lá com seus irmãos... As lembranças pareciam cada vez mais distantes e quando o demônio a tocava com suas mãos sujas a lembrança desaparecia por completo e a única coisa que a confortava era a certeza que a morte não tardava.

3

O homem, viúvo e pai órfão, observava com lágrimas brotando dos olhos uma pluma branca flutuar suavemente sobre o cemitério silencioso, viajando por onde a brisa daquele dia morno a levasse... Pelo infinito, pelos campos floridos, por sobre o mar, para as terras distantes e desconhecidas onde dormem os inocentes...

Em sua dor o homem imaginava que, se os anjos existissem, deveriam ter essa forma.

4

1929, uma cidade interiorana passou por uma serie de crimes contra crianças, todas meninas. Contam que um homem trajado elegantemente, ajeitou o chapéu, após o segundo velório do mês; depois da trágica morte de sua jovem esposa por uma doença ainda desconhecida, enterrava sua única filha, Alice, uma garotinha de apenas sete anos encontrada a beira da estrada de ferro. Um assassinato brutal. O homem de meia idade, olhou no relógio de bolso e apressadamente desapareceu no horizonte. Por duas semanas ele não foi visto na pequena cidade, mas o que se conta, escreverei nessas linhas amaldiçoadas.

De alguma forma, ele descobriu a identidade do assassino e decidiu fazer justiça com as próprias mãos. Encontrou o bicho encolhido no porão da casa abraçado a um diário onde estavam os relatos detalhados, das mortes, torturas e abusos ás cinco meninas. Dizem que ao ler, o homem enlouqueceu...

Esfolou o criminoso, ainda vivo, os vizinhos ouviram gritos que mais pareciam um porco no abate. O homem possuído pelo ódio preparou o couro das costas do assassino para a confecção da capa de um livro, onde foram escritos com o sangue do matador, os relatos mais horríveis sobre a tortura sofrida por ele... Pois, o que ele fez com cada garotinha, foi feito com ele também, durante cinco dias... E ao final de cada dia ele era colocado em uma forca, e deixado lá, para que acabasse com a própria vida.

5

...”Sofia era o nome da primeira, ela tinha nove anos e os cabelos longos e ruivos, suas mãos pequenas permaneceram fechadas mesmo após a morte, ela eu matei sem ar. Antes, lhe tirei os lindos cabelos ainda com o couro, eu a amei”... Foi retirado, com uma adaga de cabo de osso, a pele de suas costas e da sola dos seus pés.

Ao cair da noite o silencioso senhor sempre elegante levou seu troféu ensanguentado para baixo da velha e enorme paineira... O monstro já pressentia a morte. Uma forca foi colocada em seu pescoço, a corda pendia de um dos galhos da árvore e um banco de madeira sustentava o corpo do esfolado, o homem olhou sua obra, encostou o pé no banco ameaçando empurrá-lo, o criminoso chegou a prender a respiração, mas o homem nada fez, apenas sentou-se para vigiá-lo.

O assassino permaneceu lá, no frio da noite adentro, sobre o banco e com a corda envolta do pescoço, entendeu que era um jogo, o homem queria que ele cometesse suicídio, mas ele ria por dentro, a despeito da dor, principalmente nos pés, ria pela esperança que cultivava dentro de si. No entanto com os primeiros raios de sol, veio a tortura.

...”A menina Aninha chorava demais, lhe arranquei a língua com um alicate e lâmina quente como nos rituais, ela era linda mesmo assim, ainda choro por ela”... E... sua língua foi cortada com uma serra sem fio.

Na paineira ele relutou a morte.

...“Maria era meiga, e tão pequenina, parecia uma boneca... introduzi agulhas em seu frágil corpo, até que uma febre a levou, ela quase não chorava mais”... Os olhos do homem de chapéu tornaram-se frios, e à medida que lia as páginas negras daquele diário se tornava gelo. O corpo do psicopata foi cravejado de pregos enferrujados, e ele tremia a cada martelada.

Seu corpo se tornava cada vez mais pesado, mas a esperança o mantinha em pé sobre o pequeno banco durante a noite toda.

... “A noivinha era branca como neve, Alice tinha o sangue mais vermelho de todas, eu tive seu corpo, e o velei por três dias, antes de abandoná-lo”... E o homem de chapéu tornou-se pedra para sempre, arrancou, com as próprias mãos o orgulho masculino do porco infeliz.

Aquela noite o monstro derramou suas primeiras lágrimas...

Assim seguiram-se os dias, naquela semana tão comum como qualquer outra, o pai e sua justiça e o assassino e sua punição, essa ele enfrentava aos gritos, mas nem quando ainda podia falar tentou convencer o homem de libertá-lo, parecia resignado àquela condição.

Ao fim do quinto dia o sujeito ainda respirava, observava em seu lamento de sangue e dor o elegante homem a escrever com seu próprio sangue as linhas da última tortura. O pesar de Joana, cinco anos, que foi presa de cabeça para baixo e queimada com ferro... Assim, o energúmeno pendia do teto por um gancho de açougue preso em seus pés, o sangue escorria por seu rosto, mas ele estava feliz, enfim aquilo tudo acabaria, a última menina, última tortura, última punição.

Porém no dia seguinte ao ver o resto humano ainda teimando em viver sobre o banco, aos pés da paineira, o homem alinhadamente vestindo num traje preto, olhou e lhe cumprimentou tirando o chapéu, o assassino riu, um sorriso banguela e sanguinolento, esperando sua soltura, mas não aconteceu; o homem lhe virou as costas e seguiu sua vida, por trinta e seis horas o doente lutou pela vida sobre o inclinado banquinho de madeira.

Enfim, se atirou ao nada.

6

Sobre a velha mesa de carvalho repousava o objeto macabro escrito com letras de sangue, poucas pessoas ousaram tocá-lo. O corpo pendia na velha paineira com os olhos abertos parecia fitar o livro, calado... As linhas escritas chocavam os que resolviam ler. A vingança estava completa, mas tanto ódio pairava sobre aquela cidade, que ninguém pôde viver lá, o homem de chapéu depois do ocorrido, nunca mais foi visto. O diário do assassino foi queimado com seu cadáver, e o livro... Desapareceu. Dizem que as letras de sangue duram pouco, talvez tenham se apagado e outra história escrita, mas, o que se conta desde então é que ele procura por esse objeto... O enforcado procura seu couro como uma maldição de ódio e sangue.

Uma maldição que nunca deixou que ele descansasse, o obrigou a procurar pela eternidade pelo objeto feito do seu corpo, uma busca interminável pelas partes que lhe faltam, porém a lenda diz que ele só pode procurar onde as pessoas conhecem sua história, por isso contei a vocês. Nesse momento aconselho que, se tens medo, não olhe para trás, pois ele já pode estar aí... E quando acordar no meio da noite ouvindo o ranger da madeira e uma leve pressão sobre seu corpo... Não abra os olhos, porque certamente ele estará enforcado acima da sua cama, com os olhos abertos a observar... E com os pés encostando em seu corpo... Já aconteceu antes... Comigo.

Tema: Lenda Urbana

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Bom, esse conto não é inédito escrevi em 2012, mas gosto dele, apesar de notar que mudei muito a minha escrita. Para quem ainda não leu... é novidade :). Quase desisti de publicar quando vi que é quase o mesmo título do conto do nosso colega Alexandre kkkkkk, juro que não copiei :P. enfim, espero que tenham gostado.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 21/01/2015
Reeditado em 21/01/2015
Código do texto: T5109270
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