A MALDIÇÃO DO ESPELHO

-Sai do espelho, caralho!

Quem pode ouvir o grito, assustou-se. Primeiro, a velha não falava palavrões, segundo, estava há pelo menos três anos sem falar.


Os médicos atribuíram a ela, esquizofrenia, porque passava horas e horas sentada estática em frente ao enorme espelho de cristal com moldura em madeira toda trabalhada, uma peça maravilhosa, que combinava com o casarão secular e seus móveis divinais. Às vezes, a senhora gargalhava compulsivamente sem som, às vezes chorava convulsivamente sem emitir som também.



A filha, depois do espanto, sorriu e disse:
- Mamãe falou! Isso é motivo de alegria!
Alguns parentes não gostaram muito da sua melhora não, por causa de interesses econômicos. A idosa era rica. Conhecia o mundo inteiro, mas de que adiantava? Se não se recordava de nada?! Bem, não podemos afirmar  isso, de que ela não se lembrava de nada, não estávamos no cérebro dela para saber!

A filha tratou logo de comemorar, chamou alguns poucos amigos para um lanche à tarde, porém pouco antes do evento começar, a idosa ainda continuava apática, na mesma posição em frente ao espelho. A filha puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da mãe, na esperança de iniciar um diálogo:
- Mamãe, quem a senhora estava mandando sair do espelho?
- Eu. Eu estou presa naquele mundo lá dentro do espelho.
- Mas como, mamãe, se a senhora está aqui?!


- Esta aqui não sou eu, meu verdadeiro eu está lá dentro do espelho: jovem, bonita, sedutora, inteligente, aventureira, o mundo real está lá dentro e é um mundo fantástico, um paraíso mágico, um oásis cheio de cachoeiras, mares, mesclando tecnologia, cidades cibernéticas altamente evoluídas , arranhas-céus ultra modernos, com a vida nativa.


- Ele só precisa sair de dentro do espelho, junto com a jovem que sou eu, e me conduzir até lá. Lá este meu corpo não mais existirá, só os meus pensamentos irão ficar no corpo da jovem que sou eu.

- Ele? Quem é ele, mamãe?

- O barqueiro do capuz azul e seu gato. Ele é o mediador entre os dois mundos. E confesso que quando gritei, é que eu já tinha perdido a paciência, afinal, estou aqui há muito tempo, esperando por este momento. Alguma coisa me diz que é o gato quem tem poder, e é o gato o dono do barqueiro.



- Ok, mamãe. Vou buscar toalha, roupas,  nos armários,.A senhora vai tomar um banho e ficar linda e cheirosa para os seus amigos. Eles estão todos felizes porque a senhora melhorou.
A velha abriu um largo sorriso e a moça dirigiu-se ao outro quarto. De repente, todos os que estavam na casa, ouviram um barulho muito forte, vidros se quebrando e correram no sentido do som.

O espelho estava todo partido e a idosa havia sumido. Procuraram por todos os cômodos, depois pelas imediações da casa, quarteirões, chamaram a polícia. Dias se passaram e ninguém a encontrou.

Certo dia, a moça recebeu uma visita inesperada. Um primo distante afirmou ter visto sua prima quando jovem, no dia anterior, entrando num antiquário, na rua do Lavradio, na companhia gato escuro, de um homem trajando um casaco longo de capuz azul.


A prima remoçada ainda falou:
- Primo Alexandre, avisa à minha filha que estou muito bem e que nunca mais voltarei, diga a ela que a amo, mas preciso seguir meu destino. Avisa a ela também que poderá se corresponder eventualmente comigo através do site www.cidadedosespelhos.com

Enquanto recebia o recado, a moça pensou alto:
- É estranho, a mamãe nunca mexeu num computador!..


Fora do antiquário, uma explosão e o susto desviaram seu olhar da prima e, coisa de segundos, os três haviam sumido, mas para sua surpresa achou tê-los visto alegres e saltitantes, através do espelho.

Ficou em dúvida se teria sido reflexo, se pegaram o caminho da rua, ou estavam dentro do espelho.

A filha logo tratou de comprar o objeto e todos os dias ficava horas em frente a ele, ao computador, tablet, e aparelho celular, chamando pela mãe.


LYGIA VICTORIA
Enviado por LYGIA VICTORIA em 21/01/2015
Reeditado em 16/02/2016
Código do texto: T5109218
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