DTRL20 - A Casa da Vovó
Chovia copiosamente. A tempestade parecia que jamais iria acabar. Raios iluminam o quarto onde durmo. As sombras que surgem na velha casa de madeira não parecem ficar menos assustadoras enquanto repito para mim que é apenas Pareidolia.
A noite já vai alta quando desço as escadas da casa de minha vó. Passar as férias ali parecera uma boa ideia, até eu descobrir como a casa era desagradável.
Portas rangendo sem motivo, janelas se fechando ao mínimo sinal de movimentação e barulhos horripilantes eram os problemas iniciais, que começaram uma semana depois que cheguei. E então, 14 dias após minha vinda, começaram os pesadelos.
Todos eram idênticos. Uma garota, de seus quatro anos, vestida de branco e com a boca cheia de sangue, com um homem morto ao lado. Ela me olhava com um sorriso inocente, como se fosse totalmente normal o que fizera.
Bebo água esperando que a imagem desça junto. Fecho a porta da geladeira e ouço, estranhamente mais alto que o ribombar poderoso dos trovões, um tec-tec conhecido na sala. Vou até lá, imaginando o porquê que vovó está costurando a essas horas.
Ela parece remendar um vestido branco de renda. Me aproximo dela e, sem saber bem porque, indago-a sobre os pesadelos. Ela me olha por debaixo dos óculos grossos e diz:
- Vários anos atrás, no assentamento onde morava quando criança, ocorreu um incidente horrível. Foi bem na época em que papai morreu. Até hoje fala-se da garotinha de branco.
E, ao notar meu interesse na história, e sabendo que não voltaria à cama sem uma boa história para afastar a tempestade, ela continua:
"Há muitos anos, um homem mudou-se para o Assentamento Quatro Folhas. Ele chegou com suas duas filhas, a mais velha de sete e a mais nova de cinco.
Ninguém sabia de onde ele tinha vindo e, por ele, tudo ficava melhor assim. A desconfiança de sua origem, porém, logo deu lugar a um enorme contentamento, ao descobrirem que ele era um vizinho maravilhoso.
Dizia ser boticário e, três dias depois, o estabelecimento já estava funcionando. Ele alugou uma casa velha, com fama de mal assombrada, e ali morava e trabalhava.
Alguns dias depois descobriu-se que o doutor tinha apenas uma irmã. Uma tal de Anne alguma coisa, não me lembro bem, que vivia na cidade grande.
Sempre com um sorriso, dava remédios a quem não podia pagar, nunca exigindo nada. Os moradores gostavam tanto dele que todos sofreram a morte da filha mais velha do Seu Joaquim, deixando-o apenas com uma filha e uma irmã.
A perca foi tão forte que quase ameaçou-o de ir embora. Comentou brevemente que iria passar um tempo na casa da mana. Mas todos se recusaram, dizendo que ele era extremamente importante naquele local. Já fazia parte dele.
Tanto disseram e fizeram que o pobre homem viu-se obrigado a ficar. A felicidade foi tanto que o Pe. Gabriel, eleito líder do vilarejo, ordenou os preparativos para uma festa após a missa do domingo seguinte.
Veio a missa e a festa. Uma atmosfera de alegria enchia a vila de uma forma quase sobrenatural. Nunca haviam estado tão felizes com a situação que levavam.
Até que veio a segunda. E, com ela, a primeira morte.
Era a filha do Seu Toinho, o dono do bar. A jovem fora encontrada na cama, com um pedaço do pescoço arrancado a mordidas, pelo relatório da época.
Na sexta, foi a vez do Joca, o sapateiro, de aparecer com a garganta aberta. Acho que pode imaginar o Terror que acometeu a todos, não?
Na outra sexta, de forma idêntica, foi encontrado o corpo da Mariazinha, uma prostituta nova no bordel da cidade. Igual método. Garganta aberta, sangue escorrendo.
Mas só na sexta seguinte, quando o redator do jornalzinho amanheceu morto, foi que descobriram algo. Antes de morrer, de forma idêntica aos outros, ele conseguira descrever o que era pra ser o assassino.
Lembro-me como se fosse hoje quando papai me contou: Era uma garotinha de olhos negros, mais ou menos da minha idade, vestida de branco. Um vestido branco de renda.
O próximo assassinato foi o do pai. Boatos surgiram sobre o vestido que acharam no meu armário. Eu lembro que nunca o havia visto, mas o estrago estava feito.
Três dias depois minha tia Anne veio à cidade e me levou embora. Um padre vinha me visitar todos os dias. Insistência de tia Anne. Dizia que era Psicólogo.
Até onde fiquei sabendo as estranhas mortes pararam de ocorrer no Quatro Folhas. Muito embora, às vezes eu ouvia titia comentando com o Padre sobre estranhos assassinatos na cidade.
Algumas pessoas com a garganta cortada."
Um raio ilumina a sala e eu a vejo, severa, aterrorizante. É quando me assusto ao ver o vestido branco que ela costura. Um trovão explode e ela me pede água.
Levanto e vou até a porta. Volto-me para saber se a quer fria ou morna e estremeço ao ver que ela sumiu. Então eu grito:
- Vó?!
E, lá do alto, nas escadas, eu a vejo. E ouvindo o último trovão da minha vida ela desce, de branco, com os olhos negros, e pergunta:
- Me chamou?
Lá em casa numa Noite de Tempestade