630-A MÃO SECA
No meio da encosta suave da colina está a velha capela, minúscula construção apequenada mais ainda quando vista de longe, apenas um escuro detalhe no meio do verde da pastaria de capim jaraguá.
Apenas um viajante ou passante curioso notará sua existência, acanhada que é. Terá talvez cinco metros de frente por dez de fundo, feita de tijolos irregulares, que se mostram através das enormes falhas do reboco. Algumas telhas já foram levadas pela ventania, outras jazem ao lado das paredes. Estas, que já foram brancas, perderam a caiação para o negrume do tempo. A porta negra, entreaberta, não guarda segredos. Quem a empurrar, ouvirá o guincho de dobradiças enferrujadas e verá que nada há no interior senão um rústico altar, simples mesa de alvenaria, encimado por um crucifixo de madeira, onde o Crucificado pende, pois a madeira podre já não mantém o equilíbrio da esquálida figura de braços abertos.
Centenária, pouca gente sabe da sua origem. Por aquelas bandas ninguém mais se lembra da lenda que cerca a orada em ruína. Minto. O velho Tião Goleiro sabe, sim, do porquê da existência da ermida. Mora nas proximidades e tão centenário quanto a capelinha, lembra dos fatos. Para conseguir sua narrativa, é necessário, porém, encontrá-lo em dia de bom humor e antes que tenha tomado seus goles diários.
Encontrei-o certa tarde, já bem mamado, mas ciente de que ele sabia da lenda, combinei um encontro para a manhã seguinte, logo ao alvorecer, antes mesmo que ele tivesse tempo de começar a perder a consciência, devido aos primeiros goles de café com pinga.
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A Fazenda Pau Dalho se estendia por léguas e léguas e era uma das maiores da região.
Capitão Demóstenes tinha o maior orgulho da propriedade, mais, talvez, do que da própria família: Sinhá Carolina e a prole de onze filhos, quatro mulheres e sete homens.
Dizem que o sétimo filho homem de uma irmandade vira lobisomem quando se torna adulto. Nesta lenda, entretanto, o sétimo filho, o caçula, Quinzinho, que era um moleque endiabrado, como diziam, não atingiu a idade adulta, pois morreu no sétimo ano de existência.
Como disse, era tão arteiro, aprontava tantas com os irmãos, irmãs, com os animais ao redor da casa e até mesmo com os bois e vacas no pasto, que mais parecia filho do tinhoso. Os passarinhos, então, não tinham sossego: trazia o estilingue sempre não mão, pedras nos bolsos e pontaria certeira. Não escapava uma ave mirada pelo moleque.
Naqueles tempos, há quase um século, só ia para escola, na cidade, quem se mostrasse diferente e tivesse pendor para aprender ler e escrever. Os filhos do Capitão não sairam da fazenda, já iam se acostumando com as lides de cuidar do gado, das plantações, de forma que foram se criando todos ali, e se tornavam rudes homens do campo. As moças, entretanto, freqüentaram escolas e... bem isto não vem ao caso.
Quinzinho era da pá virada. Amolava todo mundo. Uma tarde enfezou o Albertinho, mas tanto, que este saiu correndo atrás do mano menor pasto afora. O moleque era esperto, disparou como um corisco. O mano mais velho, que teria uns quinze ou dezesseis anos, vendo que não o alcançava, agachou-se, pegou uma pedra do tamanho apropriado para sua mão e... Zápt! Atirou na direção do irmão.
Não era o dia de sorte de nenhum dos dois. A pedra alcançou Quinzinho com a força imprimida pelo irmão, apesar da distância. Bateu direto na cabeça do garotinho, que levou a mão para cima, como num aceno de adeus, e sem um grito, tombou ao chão.
Albertinho aproximou-se do corpo inerte do irmão. Da cabeça, perto da testa, minava o sangue brilhante.
— Levanta daí, sô! Seja homem. Agora que te peguei, fica fingindo...
Não era fingimento, não. Abaixando-se, o rapaz viu que o sangue corria cada vez mais abundante, e o irmãozinho não dava sinal de vida. Apavorado, correu de volta à casa-sede. No caminho, passando pelo campo de plantação, encontrou com o pai e os irmãos, envolvidos com a colheita do feijão.
Ao vê-lo, de longe, o pai gritou:
— Ô vadio! Vem trabalhar! A gente tem de colher o feijão antes de escurecer. E antes que aquela chuva despenque!
Albertinho chegou esbaforido, gritando, desesperado:
— Pai! O Quinzinho...
— Que Quinzinho, que nada! Deixa ele pra lá. Num serve pra nada, aquele moleque.
— Mas, Pai, ele tá...
— Vamos, deixa de prosa, Pega o saco aqui, vai enchendo com as ramas de feijão.
— Pai, deixa eu falá...
— Num embroma, ocê também tá ficando malandro. Desaparece quando a gente mais precisa. — Assim dizendo, o Capitão chegou perto do filho com a cara fechada e a mão já armada para o bofetão.
Desesperado, o jovem falou de uma só vez.
— Pai, o Quinzinho tá machucado!
— Ara, além de vadio, deu pra mentir. Vamo trabalhar, seu safado...
Ante a ameaça do pai, e completamente transtornado, pegou uma braçada de ramas de feijão, já arrancado, e foi metendo na saca de aniagem.
O campo era extenso, e todos mourejaram com vigor. O jovem, como que querendo apagar da memória a figura do irmão ferido, agia como um louco. A exaustão abateu sobre todos, mas principalmente atingiu Albertinho. Ao chegar em casa, para jantar, estava mais morto que vivo.
— Diz pra mãe que num tou com fome, num vou comer.
Foi para o quarto, que repartia com três irmãos, caiu de borco e como que desmaiou.
Não viu a movimentação de todos, que, após o jantar, procuravam pelo irmão menor, que não aparecera.
— A última vez que vi ele, foi de tarde. Tomou café aqui na cozinha e saiu por aí... — Afirmou Severina, a cozinheira, que dava notícia de tudo o que acontecia pela casa grande e nos arredores.
Procuraram por todos os cantos da casa. A lua cheia já ia alta, e todos na fazenda (exceto Albertinho, que desmaiado estava em sua cama) se empenharam na busca. Saíram para os currais, os chiqueiros, paiol, tulha, depois para os campos.
O albor do novo dia se anunciava na franja do horizonte, quando Mané Gato, um dos peões, tropeçou no corpo inerte do menino.
Alvoroço total com a aproximação de Mané Gato carregando Quinzinho.
— Tava lá, na encosta do morrinho, estendido no pasto.
Que o menino estava morto souberam assim que Mané Gato o estendeu no banco do alpendre.
O desespero foi total. Gritos e lamentações. As meninas, os irmãos, o pessoal da casa, todos começaram a perguntar e lamentar-se.
Sinhá Carolina, ao ver o filhinho querido, estendido inerte e já branco de cera, o sinal da pedrada na cabeça, gritou desesperada:
— O desgraçado que matou meu filho... O desgraçado que jogou esta pedra... sua mão vai secar... sua mão vai secar... juro que sua mão vai secar.
Capitão Demóstenes enregelou ao ouvir a maldição. Ficou atordoado. Lembrou-se do Albertinho chegando esbaforido onde colhiam feijão, dizendo que o filho caçula estava machucado.
— Não fala assim, Carola. A gente num sabe quem foi e...
Ela abraça o menino, levanta-o do banco, aperta-o de encontro ao peito.
— Esconjuro o maldito que matou meu filhinho. Sua mão há de secar!
O capitão procurou Albertinho. Ao chegar ao quarto, no lusco-fusco do amanhecer, viu o filho profundamente adormecido.
Uma onda de ternura nunca sentida antes, o invadiu.
Será que foi ele que matou o irmão? Não acreditei quando ele chegou gritando... pensei que era desculpa... Falou que o irmão tava machucado... se eu tivesse ouvido ele, pode ser que o Quinzinho não tava morto ainda, eu podia ter salvado ele...
Não acordou o filho. Olhando para o corpo esguio do jovem, encostou-se no portal, pensando.
Sou o culpado pela morte de Quinzinho. Culpado do mesmo jeito de quem atirou a pedra. Será que foi Albertinho...? Agora é tarde, não convém nem falar nada.
Quando acordou, ou foi acordado pelo burburinho da casa, o velório já armado na sala da frente, Albertinho estava tonto. E mais desorientado ficou ainda ante a visão do irmão estendido sobre a mesa da sala, cercado de velas e de flores brancas e velado por todos os que habitavam a fazenda.
Devo falar que matei o mano. Vou confessar pra todo mundo...
Foi para o lado da mãe, sentada ao lado do filho, as mãos colocadas ora na face, ora no peito do pequeno defunto, chorando muito, soluçando alto.
Não teve coragem de falar nada, a garganta fechava-se como se tivesse com um caroço de manga entalada.
Caminhou para o alpendre, onde o pai estava sentado, as pernas afastadas, a cabeça baixa, os braços sobre as pernas, as mãos pendentes. Quando Albertinho chegou perto, levantou a cabeça, os olhos vermelhos e olhou para o filho. Quase adivinhando a intenção do filho, disse:
— Cê não teve culpa. Eu não pensei que você tava falando de verdade.
— Pai, eu...
— Num fala nada. Sua mãe já lançou um esconjuro que eu nem quero lembrar.
Nunca ninguém ficou sabendo (além do protagonista sobrevivente) o que realmente havia acontecido no pastinho na subida da colina.
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O tempo passou, a vida voltou quase ao normal na Fazenda Pau Dalho.
Quase.
Albertinho ensimesmou-se e alguns meses depois, falou com o pai:
— Num agüento mais viver aqui. Vou-me embora, caçar outro rumo na vida.
E partiu.
Sinhá Carolina, que nem era muito devota ou chegada às coisas da igreja, pediu ao marido que construísse uma capelinha no local da tragédia. Pedido que o capitão atendeu prontamente, pois assim pensava pagar a culpa que sentia.
A capela erguida, a imagem de Jesus Crucifixado foi colocada na parede do fundo, sobre o altar. Padre Jeremias benzeu a capela e celebrou a primeira missa.
Apenas a mãe subia à ermida, todas as semanas, nas tardes de domingo, para rezar pelo filho. E, quem sabe?, reforçar a esconjuração...
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Mais tempo foi acrescentado à lenda.
Sinhá Carolina adoeceu e o médico desenganou. Ela pediu:
— Quero ver meu Albertinho antes de morrer.
As diligências do Capitão levaram à pista do filho sumido há mais de cinquenta anos. Estava pelas bandas de Goiás, metido no negócio de criação de gado. Um mensageiro foi enviado e, na volta, trouxe o filho desgarrado da família.
O encontro com a família revestiu-se da alegria ao ver o ente querido de volta. Sinhá Carolina, que guardava o leito, abraçou e foi abraçada pelo filho. Passou-lhe as mãos pelo rosto, cabelos, descendo pelos ombros, braços, mãos e até às ponta dos dedos.
Demorava-se em cada ruga da face, pela calva da cabeça, na papada do pescoço. Ao chegar às mãos, com a amorosidade de quem segura pela primeira ou pela ultima vez as mãos da pessoa amada, os olhos fixos nos olhos do filho, observou:
— Suas mãos estão tão magras...
Alberto (agora já não lhe caia bem o apelido da meninice) olhou para as próprias mãos. Estavam magras, sim. Ressecadas. E não havia notado que uma tonalidade escura tomava conta dos dedos e das costas das mãos.
Coisas da idade... pensou, sem nada comentar.
Sinhá Carolina definhava rapidamente. Na ânsia de conservar-se entre os vivos, e talvez prevendo a chegada daquela que não ousava dizer o nome, acariciava o marido, os filhos e até as pessoas amigas que se sentavam ao seu lado. E ao acariciar Alberto, sempre observava:
— Suas mãos estão tão magras... tão ressecadas...
Alberto não se incomodava, mas notava com certa surpresa para as mãos magras, quase esqueléticas. Especialmente a mão direita, cuja pele, escurecida em poucos dias, parecia pequena para os dedos: esticava-se sobre os ossos, cada vez mais salientes.
A saúde da mãe piorou.A respiração tornou-se arfante, uma rouquidão quase a impedia de falar. Os olhos fixos no teto, pouco enxergavam.
Mas as mãos... passavam por todas as pessoas que estavam ao seu lado. Parecia que procurava alguma coisa, com o deslizar ansioso dos dedos.
Alberto sentou-se ao seu lado. Além da tristeza causada pela situação da mãe, preocupava-lhe o fato de que sua mão direita estava cada dia mais ressecada. Os movimentos dos dedos estavam ficando difíceis e dolorosos. De nada valiam os ungüentos e outros remédios caseiros preparado pela velha Severina, já na casa dos noventa anos.
A mãe fez, novamente, o ritual de passar as mãos sobre ele. Cabeça, face, pescoço, braços, mãos... Ao chegar à mão direita, parou: apalpou demoradamente a mão e disse, numa voz que, apesar de fraca, mostrava uma surpresa dolorosa e impregnada de horror:
— Meu filho... a sua mão... a sua mão ESTÁ SECA!
As mãos da velha senhora se afrouxaram e a cabeça tombou de lado. Os olhos, com a expressão de horror pelo conhecimento de algo dolorosamente horrível, fixaram-se no rosto de Alberto. Mas já não viam nada mais.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 16 de outubro de 2010
Conto # 630 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS