LONGA NOITE
Obs.: Mais pra causo que Terror =)
Os grãos de areia e poeira caíram na madeira do assoalho quando Maria Quitéria sacudiu a rede para deitar a pequena Rita. A mulher mestiça, quase indígena, tratou de prender o mosquiteiro à rede para evitar as incômodas carapanãs, depois ergueu a saia e se sentou no batente da porta apoiando os pés nos degraus da escada. Trazia nas mãos uma manga espada muito madura a qual bateu na quina da porta por duas vezes seguidas a fim de desprender grande quantidade de sumo do fruto, massageou com os polegares, furou a casca com os dentes e sugou aquele néctar fechando os olhos de prazer. Deitou as vistas, vez por outra no caminho com alguma preocupação, pois já começava a escurecer e o marido, Antônio Félix, ainda não havia retornado da caçada.
O vento frio, prenúncio da cruviana noturna, buliu nas folhas das goiabeiras ao lado dela e depois veio eriçar os pelos de seus braços deixando-a mais preocupada ainda. Joanita, esposa do pescador Chico Pacu, apontou no início da trilha trazendo um pote de água na cabeça. Quitéria pensou em perguntar dela se não havia cruzado com Félix pelas bandas do rio. A mulher descansou o pote sob a sombra da cumeeira, pôs as mãos nas cadeiras espreguiçando o corpo moreno e roliço e depois foi sentar-se junto da outra.
– Dê cá uma, dê. – Indicou com o queixo para manga. Quitéria procurou um fruto bonito no interior do forno do fogão ao lado e entregou a Joanita que prosseguiu. – Vai pra missa amanhã?
– Tô querendo. – Suspirou olhando mais uma vez para a trilha.
– Hum, hum… Quede Félix? – Os olhos curiosos vasculharam rapidamente o interior da casa, Quitéria embalou o punho da rede que rangeu carente de lubrificação.
– Tá no mato. – Respondeu afundando a cabeça nos ombros, percebendo que a outra nada sabia do paradeiro do marido.
– Ah! Mas amanhã é sexta – feira da paixão, matar bicho é pecado, Félix num pode fazer virada hoje não.
Quitéria calou-se, o caroço da manga já estava branco de tanto que ela o havia sugado, atirou-o no terreiro, com cuidado para não acertar nos cães dos vizinhos que brincavam por ali, e disse tristonha:
– Sei não. Tu vê o que ele fala quando nós diz: “Félix, a noite é do mal”.
– “É de Félix também”. – Brincou a outra engrossando a voz.
As mulheres riram alto enquanto a noite cobriu a luz do sol.
*******
Antônio Félix era assim mesmo, metido a valente com certo sadismo na hora da caça. Chegava em Silves sempre com uma história nova para contar. Se pudesse, matava a anta na unha, a onça, com um punhal pequeno, e por vezes lamentava a chance perdida de estourar a cabeça de um índio quando este cruzou com ele. Não dava tiro de misericórdia nos animais abatidos e contava a morte de cada caça estufando o peito nas rodadas no terreiro junto dos outros moradores da Vila Silves.
– A desgraçada esturrou alto, eu mirei palm’dentro e amassei.
“Páááá!!!!” Ela caiu. Me cheguei pertinho, a bichona se tremia que só vara verde quando o vento passa. O cigarro chiou quando apaguei ele nos olhos da gatona que se estrebuchou cheinha de raiva.
Os moradores que escutavam aquelas narrativas tinham expressões diversas entre dó, raiva e desconfiança, mas ninguém ouvia Félix com indiferença. O homem não se importava com a carne conseguida, doava a grande maioria e por esse motivo era tão querido. Para ele, o que importava era ter alguma estória sádica para contar. Mas naquele dia, nada. Félix andou o tempo todo sem avistar caititu, paca, ou cutia sequer. Ao cair da noite já estava irado desejando abater nem que fosse uma nambu, ou qualquer outro pássaro, por isso os olhos seguiam cravados para o alto das árvores.
Andou bem mais que o habitual, e quando começou a sentir os primeiros sopros gelados da noite, desistiu. Parou em uma clareira, puxou uma grossa camiseta de dentro da cangaceira costurada por Quitéria e vestiu sobre a outra. Deu alguns pulos para se aquecer e o tecido ajustar no corpo esguio, pegou a lanterna e agachou-se para colher um punhado de piracuí. Fez da mão uma concha e apanhou no ar a saborosa farinha de peixe, repetiu o ato mais uma vez e depois catou uma castanha e atirou-a na boca empurrado tudo com um gole de água. Pronto. Sabia que não iria sentir fome tão cedo e poderia partir em retirada, mesmo que isso significasse não ter estória nova para contar.
O canto do cricrió deu espaço ao do bacurau, Félix colocou um paieiro nos lábios e seguiu com a espingarda à tira colo. Em dado momento, estranhou vozes distantes, pois pelos seus cálculos ainda estava muito longe da Vila. Seguiu para perto da turba e discerniu uma cantoria:
“Penitente pede esmola,
é porque tem precisão:
Vai jejuar quarta e quinta,
sextá – feirá da paixão.”
Procurou por todos os lados e não viu vivalma, entretanto, a mata abria espaço para uma trilha cujo fim dava em uma Vila. Estranhou, julgou conhecer a mata com a palma de sua mão. No entorno, ninguém, mas ainda assim o som aumentava cada vez mais perto.
“Penitente pede esmola, chefe!” – Ouviu e sentiu um bafo quente diante de si, e num átimo, puxou a arma e disse engrossando a voz cheio de valentia:
– Seja alma, Cão caído ou qualquer peste que vem azucrinar a paz de Antônio Félix, ele num tem medo de nada. Passe já!
A cantoria continuou e sem que ele pudesse se defender sentiu encontrões em seu corpo com tanta força capaz de jogá-lo no chão, mas não caiu. Cambaleou lá e cá ouvindo o vento ser cortado pela cinta dos penitentes que flagelavam a si mesmo naquela procissão invisível. O caçador ainda engatilhou a espingarda, mas a cantoria cedeu deixando apenas um cricrilar distante. Não demorou nada para avistar um caboclinho balançando no galho de uma árvore próxima, focou com a lanterna e só conseguiu avistar a bermuda azul e o contorno do curumim que cavalgava montado no galho como em um cavalo. Félix se chegou e parou bem embaixo, mas ao tentar perguntar algo, o garoto se soltou e veio a pancada na cabeça como se alguém lhe desferisse um golpe com um pedaço de madeira.
“Tááááá!”
A dor insuportável o fez cair sentado, mas quando procurou o pequeno, viu somente um gato maracajá escalar a árvore e em seguida ouviu novamente os gritos do caboclo. Félix saltou querendo entender o que havia acontecido e novamente o baque na cabeça. – Ainda que a protegesse com os braços.
“Tááááá!”
Mais uma vez sentiu a dor absurda que o deixou zonzo, xingou de todas as formas que podia, e quando olhou no chão, lá o gato novamente escalava a árvore. Com um estremecimento no corpo não esperou a queda e saiu de perto escutando aqueles gritinhos alegres e o farfalhar das folhas, porém, não escapou de ser atingido mais uma vez. Espumando de ódio, as mãos tocaram o gatilho da espingarda e ele atirou sem fazer mira. Quando abriu os olhos escutou um piado e viu uma pequenina picota com alguns pintinhos correr e se esconder em uma moita. Félix sapateou com as botas, demente de ira tentando esmagar as aves que eram mais rápidas que ele. O susto o fazia sentir-se ridículo, diminuído. Caminhou, aporrinhado, braçadas e braçadas de mata, a boca não parava de xingar até ficar seca. Sentia que a Vila se distanciava cada vez mais. Temia ficar parado e ser envolvido pela cruviana, cujos sopros álgidos são capazes de traspassar qualquer tecido e penetrar os ossos. Porém, por mais que a mente estivesse ciente disso, o cansaço já falava mais alto.
Um mutá armado foi avistado no pé de uma ladeira, e assim que chegou até ele, pôs-se a galgá-lo ágil como um macaco. Bebeu, com sofreguidão, a água do cantil e prosseguiu bodejando enquanto recarregava a arma, estava enfezado com aquela situação, mas assim que lembrou do gosto do tarrabufado de anta que só Maria Quitéria sabia preparar e do cheiro doce de sua filhinha, Ritinha, um sorriso se formou. Pensou nelas abrigadas e aquecidas, e logo o sono amorteceu o seu corpo pregando as suas pálpebras.
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A noite ia alta quando Félix acordou sobressaltado, mergulhado no mal estar. O tremor do frio era intenso, mas a gastura provinha de um forte cheio do sumo de diversas folhas verdes. Ouviu o que parecia ser o bater de asas e um rumor insistente vindo de várias direções.
“Ênh! Ênh! Ênh!” – E um gorgolejar paposo completava – “Cuaar!”
“Ênh! Ênh! Ênh! … “Cuaar!”
Félix catou a arma e focou com a lanterna, mas não viu nada. A raiva de se sentir assustado o impeliu em dizer:
– Quem tá aí? Aparece, diabo!
O incômodo silêncio foi o que teve de resposta, não se ouvia nenhum animal terrestre, ou morcego, e nem o vento ousava mexer com as folhas das árvores. O foco da lanterna vacilou quando ouviu:
“Ei! Você gosta de gente verde?”
O timbre cavernoso, primitivo, fê-lo sentir-se acuado. Atirou a luz para todas as direções, o peito ia a galope.
“Ênh! Ênh! Ênh! … “Cuaar!”
“Ênh! Ênh! Ênh! … “Cuaar!”
“Ei! Você gosta de gente verde?”
Pasmou diante da agitação entre as copas das árvores, via contornos desmedidos onde duas grandes cabaças rubras e cintilantes o encaravam da mesma forma hipnótica de uma serpente prestes a dar o bote. Durante toda sua vida, Félix tinha visto diversas criaturas, mas nenhuma delas se comparava a aquela. As tochas de fogo mantinham-se fixas num ser galiforme de garras negras suportando um corpo ornado em penas escuras que se inchavam aumentando as proporções. No papo lustroso como uma bexiga, um líquido pulsava. O aspecto era o de uma gárgula demoníaca, mas o homem não tinha tais referências e apenas imaginava-se diante de uma galinha gigante. Reinou em puxar o gatilho, mas esperou ter certeza. Não deixava de imaginar a fama em abater algo como aquilo. O longo pescoço se aproximou mexendo como um pêndulo. Uma volta na árvore próxima, e mais outra e mais outra, logo aquela cabeça do tamanho de um jacá, estava sobre o caçador que disparou.
“Buuuummm”
O tiro ecoou na mata, atraindo um aranzel de outros sons, o projétil ricocheteou e passou rente a orelha do homem, quase surdo ante aquele tumulto. O ser agitou o corpo e o asco do cheiro se condensou. Descargas de adrenalina mergulharam Félix na ânsia atormentada do terror. Se tivesse uma carapaça, qual tracajá, recolher-se-ia imediatamente, mas estava ali sentindo cada músculo seu vulnerável, pequeno. A coragem se esvaia por completo e ele contorcia os músculos das nádegas a fim de conter o caldo quente que borbulhava raivoso frente à ameaça do bico redondo prestes a investir.
“Você não gosta de gente verde, chefe?”
Uma forte bicada destruiu o estrado. Arma, lanterna e homem espatifaram-se no chão. Com a boca cheia de terra, Félix observou o ciscar, prenúncio das duras bicadas em sua cabeça. Caiu diversas vezes antes de ganhar o mundo levando embora o que via pela frente. Urtigas lanharam seu rosto junto de cipoadas dolorosas. O desassossego causado por aquelas marteladas o impelia em correr alucinado tossindo comprido ao ter a garganta seca e ardida de frio e pavor. Quando achava que já havia corrido o suficiente, uma bicada em sua cabeça o desnorteava, mas logo apressava o passo e seguia adiante. A besta galinácea o acompanhava sem pressa, e no entorno, o coaxar dos sapos parecia zombar de seu sofrimento. O discurso do homem já era outro, esconjurava e clamava ajuda a todos os santos que conhecia, sentindo o corpo moído e enfermo. O véu do tempo foi rasgado e as horas tornaram-se joguete da noite.
“Ênh! Ênh! Ênh! … “Cuaar!”
“Ênh! Ênh! Ênh! … “Cuaar!”
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Em casa, Maria Quitéria ainda não havia conseguido dormir, agitava-se na rede fazendo ranger os esteios da casa. A paz dissipava-se quando lembrava a afronta do marido em permanecer caçando no dia santo. Pôs-se em pé e abriu o trinco da janela suportando-a acima da cabeça por algum tempo. O lençol da névoa branca cobria o mundo.
– Ah! Home teimoso!
O peito palpitava apreensivo e ela fazia preces espremendo o escapulário, de olho no caminho:
“Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra…”
Ritinha chorou e a mulher deu-lhe de mamar desejando o canto do galo para trazer a luz do dia.
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Félix deu-se por vencido e se atirou no chão tapando os ouvidos e recolhendo-se como semente, o cheiro chamava o vômito, mas não havia mais forças. Esperou pelo baque final, que não veio, em seu lugar um farfalhar e pio de diversas aves explodiram junto com despontar dos primeiros feixes de luz entre as copas das árvores. O alívio seria completo, se não fosse as finas bicadas e arranhões. Agitou o corpo a fim de se proteger. Sanhaços, bem-te-vis, rolinhas… Uma aquarela de pássaros investia contra ele retirando-o da mata.
Quando pisou o chão da Vila, divagava entre realidades, pisando lento no terreiro de areia e repetindo frases ininteligíveis. Talvez uma prece, talvez uma sentença gravada em seu subconsciente. Logo as primeiras vozes dirigidas a ele foram ouvidas:
– Eita, que o home vem mais sério que porco mijando! – Exclamou um morador acenando antes de tomar um atalho para o rio.
Mas Félix não respondeu, a roupa colada no corpo rescendia àquele cheiro forte de verde. Vinha cambota, trôpego, crepitando em febre com os cães ladrando aos seus pés.
– Fale, coronel! – Brincou o vizinho Chico Pacu, e como o outro não expressou qualquer reação, Chico completou a brincadeira com um sorriso solitário – Diminua a patente e aumente o salário, né não Félix?
Na frente de sua casa as mulheres repartiam uma grande quantidade de mari mari cujo cheiro adocicado ia buscar longe, mas logo elas sentiram o odor nauseabundo que não as incomodou tanto quanto a imagem do homem que se deixou cair sentado apoiando a cabeça em um dos barrotes da casa.
-- Maria! Acuda aqui! – Gritou Joaninha, aturdida, e prosseguiu levando a mão à boca – Ave Santa, Félix tá lombrado! Isso foi beijo de Cruviana, só pode.
Os moradores se prostraram assustados em roda de Félix, que não dizia nada só arfava em agonia, a cabeça minava sangue. Copos e copos de água foram jogados nele, mas coisa nenhuma o fazia ter qualquer reação. De repente, seus músculos ficaram rijos e ele apontou o dedo trêmulo para as estacas não muito distantes. Logo todos exclamaram assustados um bramido uníssono levando as mãos aos peitos ante um imponente acauã empoleirado. Temiam o seu pio agourento, sentença de morte, mas a ave permaneceu imóvel. Por um punhado incerto de tempo, um vendaval levantou poeira cegando todos ali. Ninguém, exceto Félix, conseguiu ver o acauã rasgar os céus depois de mexer a cabeça rapidamente cá e acolá e esboçar, para ele, o que pareceu ser um sorriso de troça.
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Conto Escrito para o Desafio do Blog EntreContos Novembro/Dezembro, cujo tema era: Criaturas Fantásticas. O texto ficou em 7º lugar.