628-VELÓRIO AO ANOITECER -

Na pequena cidade de Tabatoa, o doutor Armando Rocha, juiz de direito já meio gagá, gosta de funerais. Não tem velório, missa de sétimo dia ou enterro que ele não vá. E para cada circunstância, tem um discurso, um improviso se esmera em não repetir.

Uma tarde soube de um velório lá pelas bandas do bairro do Escorpião, assim chamado pela grande incidência desses pequenos animais venenosos. Dirige-se a pé, embora a distância seja de uns quatro quilômetros, pois o bairro é separado da cidade pelo campo de futebol e o pastinho do Gouveia.

É uma figura e tanto: alto, magro, cabelos pretíssimos (pintados semanalmente) penteados par trás, expondo a larga calva. Boca larga e lábios carnudos e olhos escuros, nariz aquilino. Traja o uniforme que usa para tais eventos: terno preto, sapatos pretos, e guarda-chuva, que usa de dia ou de noite, quer faça sol ou chuva. Caminhando ao entardecer enevoado de inverno, mais parece uma figura de histórias de terror.

Vai pensando na apologia ao defunto, que não conhece. Entretanto, como bom orador forense, tecerá elogios rasgados ao morto, à família e até aos presentes ao velório.

O que ele não poderia sequer imaginar é que a viúva, ao ver, de longe, a lúgubre figura toda de negro, desconhecida para ela e para qualquer dos presentes no velório, alarmada e com medo, disse ao filho:

— Zeca, fecha a casa. Tou vendo um vulto vindo das bandas da cidade. Mais parece o demo que vem para pegar a alma do finado.

Quando o juiz chega ao local, a noite havia descido seu manto negro sobre o mundo. Encontra a casa completamente fechada.

Diacho — pensa — Ainda não é nem oito horas.

A casa, isolada entre terrenos vagos, deixa entrever, pelas frestas das portas e janelas, fracos raios de luz. Evidência de que tem gente lá dentro

Estão fazendo o velório de portas fechadas. - continua no seu raciocínio – Deve ser por causa do frio ou do vente.

Dá diversas voltas ao redor da lúgubre morada. Tudo fechado: porta da cozinha e todas as janelas. Finalmente, decide bater à porta de entrada. Bate diversas vezes, delicadamente, sem obter resposta. Intrigado, olha pelo buraco da fechadura e vê perfeitamente o caixão e uma mulher ao lado, rezando.

Esmurra a porta. Obstinado, não deseja perder o velório, de maneira nenhuma. Já havia rememorado as palavras do discurso e esperava saborear, como era de praxe, uns copinhos de cachaça com bolinhos e pães-de-queijo.

Um sinistro silêncio é a resposta aos seus murros. Sabendo que está excluído do velório, colocando as mãos em concha na boca, grita:

— Deixa estar! Hoje não posso entrar, mas amanhã, no cemitério, vocês não me escapam.

Lá dentro, assustados e trêmulos de medo, a viúva, Zeca e a meia dúzia de pessoas ouvem a ameaça. A viúva, tremendo que nem vara verde persigna-se, dizendo:

— Valha-me Nossa Senhora! É o próprio Belzebu! ALÉM DE VIR BUSCAR A ALMA DO FINADO, QUER TAMBEM LEVAR AS NOSSAS !!!

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 8 de outubro de 2010 –

Conto # 628 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Conto ADAPTADO de “Quatro Histórias Fúnebres” # 410-9,

para a Revista In Memoriam.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/01/2015
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