HISTÓRIA DE MORTE CONTADA MEIA HORA ANTES

Para vó Luíza

“Bom dia, minha vó tá internada na enfermaria dois e o médico de ontem pediu que eu viesse falar com o médico de hoje.” “Só que ainda não é hora de visita!” “Eu sei, mas o médico de ontem...” “Já entendi, mas só no horário de visita!” “Tem alguma outra pessoa com quem eu possa falar, porque o médico de ontem...” “Fala ali no controle de acesso!” Tomara que essa mentira dê certo! “Bom dia, minha vó tá internada na enfermaria dois e o médico de ontem pediu que eu viesse falar com o médico de hoje.” “Escreve o nome dela aqui e a enfermaria que ela está e me dá o seu documento.” Putz, como é difícil visitar alguém que tá pra morrer! Se tivessem o privilégio de conhecer minha vó... “Aguarda só um minuto, por favor.” Esse povo que trabalha aqui não tem noção que tempo é a única coisa que não temos; ela ainda vai falar sobre a novela, tomar um café, depois vai degustar as gracinhas do segurança, cumprimentar umas amigas lá dentro, se lembrar de procurar minha vó, voltar, degustar outra gracinha do segurança, falar com mais alguém e me dizer que não dá. Enquanto isso a sala de espera do pronto socorro lotada, gente de jaleco branco andando pra lá e pra cá com cara de quem tá passeando e não chamam ninguém da sala de espera. Gemidos, caras sofridas, gente explodindo pelas horas de espera... “Moço, cola esse adesivo na altura do peito, entra por aquela porta e vira à direita no final do corredor, a enfermaria dois é a última. Lá você pede para falar com o médico de hoje.” “Obrigado pela atenção, pode devolver o meu documento, por favor? Obrigado e bom dia.” Mentira demorada para dar certo, mas aquele mísero adesivo escrito “acompanhante” abriu todas as portas. Se tivessem a chance de ter pelo menos um dedinho de prosa com ela... E a vó Luíza, com carinha de sem vida, cabelinhos bancos despenteados, magrinha, o rosto ossudo, a boca aberta, a respiração quase inexistente, “dormindo” desde que passou mal. Se tivessem a oportunidade de conhece-la... A pessoa mais digna de respeito que já conheci! Peguei sua mãozinha fria que logo esquentou entre as minhas. “Bom dia, vó! Dormiu bem? Tá com uma cara ótima hoje! Tá tudo bem lá em casa, já dei comidinha pra Fofinha, levei ela pra passear, já reguei as plantas e dei uma varrida na calçada...” Contei a novela, umas fofocas de vizinhos, umas piadas, cantei umas músicas que ela gosta, coitada, suportar meu desafinamento, falei outra vez das plantas, as que tinham flores e da Fofinha... acho que nessa hora a sua respiração mudou; era como se ela fosse dizer alguma coisa... imaginação minha! Não aguentei ficar muito tempo. Fiz uma oração no seu ouvido, disse várias vezes o que ela sempre me disse “Te amo muito!”, me despedi como se fosse a última vez, conforme do doutor orientou ontem, e fui embora. Sensação esquisita... chão faltando debaixo dos pés... incômodo de quem tá esquecendo alguma coisa... “Moça, tô devolvendo o crachá. Consegui falar com o médico de hoje; nenhuma mudança. Tchau, obrigado.” A manhã tá bonita, vou a pé mesmo. Caramba, já tá entrando no terceiro dia de coma! Ainda bem que o doutor deu aquela orientação “médico-espiritual” ontem, senão eu ainda não teria coragem de falar com ela! “É bom falar com ela, falar de coisas que ela gosta; alguma parte do cérebro pode ser ativada...” Será que a respiração dela mudou mesmo naquela hora? Será que ela entendeu o que eu dizia? E eu que queria ter a última imagem na lembrança de como ela era... pensando bem, acho que sempre vou lembrar da minha velhinha como ela sempre foi... Nossa, como tempo passa! Nem parece, mas já faz meia hora que saí do hospital; até que a mentira do “médico de ontem mandou eu falar com o médico de hoje” colou! Ôpa! Tá tocando! Não conheço esse número... “Alô!” “É sim, eu mesmo!” “Do hospital!?...” “A presença de um familiar...”

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 05/01/2015
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