O SURTO
- Nada como ficar sozinho.
Dissera Emerson com o corpo esguio deitado no sofá e com as pernas finas apoiadas sobre a mesa da sala. Estava à vontade neste ambiente no qual as imagens da televisão conseguia vencer parcialmente a escuridão que tentava se instalar.
Seu gênero favorito de filmes era o terror. Adorava cenas horripilantes e sanguinolentas, pois sentia seu coração pulsar de modo violento o pavor negro que absorvia pelos olhos e ouvidos. Ele tinha atração pelo medo, acreditava que era o único sentimento que o fazia conhecer as próprias limitações.
Sentir as suas fraquezas florescerem na pele era saboroso para seu espírito lúgubre. O medo, segundo ele, era o único sentimento que fazia a brevidade existencial vir à tona. Toda arrogância, refletia, finda quando o medo se torna evidente.
Ao lado do sofá branco, havia uma banqueta na qual repousava um pote de pipoca e um copo de guaraná. Sem pensar, ele comia sofregamente a pipoca e bebia o refrigerante para facilitar a descida do bolo alimentar formado em sua boca. Não desviava seus olhos esbugalhados do filme que assistia; mergulhou intensamente na história que se esqueceu de ir ao banheiro mictar.
Seus pais haviam saído para buscar a sua irmã em uma outra cidade e prometeram que dentro de uma hora retornariam, se não houvesse empecilhos. A sua mãe, antes de sair, pediu para que ele não se esquecesse de colocar a ração para o cachorro Bob, mas Emerson se esqueceu.
O cachorro da raça pastor alemão latia em vão no quintal, sentindo a fome roncar e rasgar as suas entranhas. De orelha em pé, corpo robusto, com pelugem mesclada amarela e preta, a corrente grossa limitava a sua mobilidade, e quanto mais se esforçava, mais castigava o seu pescoço felpudo. Em um ato de revolta instintiva, o cão faminto esgarçou uma camisa vermelha do Che Guevara que voou do varal com o auxílio do vento.
Lá dentro...
O telefone tocou alto captando a atenção do garoto. Ele pausou o filme, pulou do sofá e foi, aborrecido pela interrupção impertinente do toque, atender o aparelho telefônico.
- Alo, quem fala? – disse rispidamente.
- É a mamãe. Colocou a ração para o Bob?
Emerson colocou a mão na testa, revirou os olhos para cima e disse com os dentes cerrados.
- Já.
- Tudo bem. Em cinquenta minutos, estaremos em casa. Beijo.
- Beijo, mãe.
Bateu o telefone com raiva e correu para o quintal para alimentar o cachorro. Ficou muito aborrecido ao ver a sua camisa vermelha aos trapos. Ameaçou o pobre cachorro com um chute, mas desistiu dessa cruel intenção quando a porta da sala, entrada principal da casa, fechou numa pancada forte e seca.
Emerson ficou estático instantaneamente, pensando na possibilidade de como esse alguém havia entrado em sua residência. Não conseguia encontrar a resposta, mesmo porque a porta da sala estava devidamente trancada. Seus pais sempre quando chegam fazem um escarcéu, mas com certeza não era ninguém que ele conhecia.
O garoto desejou naquele instante que a Taurus 9 milimetros slim 709 estivesse ali portada em suas mãos. Daria a ele um fio de coragem para ir lá ver quem era o desgraçado. Preferiu soltar o cachorro.
Bob, livre da corrente, correu em grande velocidade para dentro da casa latindo e não fez mais barulho. Tudo ficara em silêncio. Como se algo tivesse sugado o cachorro. Emerson chamou por Bob e não obteve nenhuma resposta.
Decidiu entrar em casa. Começou a caminhar vagarosamente em direção a porta que dava acesso à cozinha, estava apreensivo e atento a qualquer barulho.
Girou o pescoço para o lado direito e esquerdo em busca de algo que pudesse lhe defender. Por sorte, achou um taco de beisebol. Agarrou com um sorriso no rosto, aliviado em encontrar algo substancial para lhe permitir uma chance de extirpar o medo que fazia suas canelas trepidarem.
Entrou com o taco grudado em seu ombro direito pronto para arrebatar o primeiro que aparecesse. Não hesitaria em seu dilema : derrubar e depois ver quem era. Espiou do canto da parede da cozinha a sala. Não viu o cachorro, não viu ninguém, apenas o aparelho de televisão ligado.
Dirigiu-se à sala pé ante pé e parou. Um vulto subiu as escadas que davam acesso ao andar de cima numa velocidade absurda. Emerson recuou. Nunca havia visto nada igual. Tomou coragem e foi até a sala gritando.
- Quem esta aí ? Porra! Não tenho medo de você. Desça se for homem!
A carcaça do cachorro foi lançada escada abaixo. Emerson se aproximou para verificar o que tinha acontecido com Bob. Puxou o pobre cão para o meio da sala e observou que havia um rasgo enorme na barriga dele. Bob fora estripado.
A revolta fez com que Emerson esmurrasse a parede da salada várias vezes.
- Desgraçado! Vou ai em cima te pegar! Vou arrancar as suas tripas.
Ao terminar de falar, um líquido escuro começou a escorrer pela escada. No último degrau, houve uma solidificação e o desconhecido se materializou num homem alto, forte com a indumentária negra.
O garoto ficou em posição de arrebatar aquele ser, mas não conseguia empregar força alguma.
- Quem é você? - perguntou gaguejando.
- Sua inconsciência materializada. - respondeu o homem.
- Como assim, porra?
- Eu sou aquela que vive nos recônditos da sua mente. Eu controlo seus atos e domino as suas vontades.
- Por que matou meu cachorro?
O homem riu sarcasticamente e apontou o dedo em direção a Emerson.
- Não foi eu. Foi você. Veja suas mãos sujas de sangue. Quando você viu a sua camisa rasgada, ficou cego de raiva. Soltou o cachorro, pegou uma faca na cozinha e estripou-o lá em cima, no seu quarto. Fechou a porta da sala e correu para o quintal. Quando acordou do seu surto, achou que alguém tinha invadido a sua casa. Só esta você, Emerson. Estou fazendo o trabalho da memória.
Emerson chorava de raiva.
- Não me confunda! Seu desgraçado.
O homem correu e deu um pulo, entrando por dentro do olho do garoto.
- Você é um louco assassino!
A frase começou a ecoar na mente de Emerson, deixando-o maluco. Segurava em sua cabeça com as duas mãos e debatia-se em todos os móveis da sala, numa tentativa vã de se livrar da sua própria imaginação.
Subiu para o quarto atribulado, babava e apertava os olhos com força.
A cama estava suja de sangue, provavelmente do seu falecido cão.
Agarrou um lençol e o transformou numa corda. Amarrou-a na parte superior da janela e...
Os pais de Emerson chegaram e observaram a desarrumação na sala. Bob latia ferozmente no quintal e abanava o rabo quando avistou os donos.
A mãe de Emerson começou a chamar por ele, mas ninguém respondia. Subiu ao quarto, abriu a porta e gritou. O pai foi verificar o que era e quando chegou observou o corpo de Emerson que balançava sem vida pendurado pelo pescoço na janela do quarto.