No próximo ano...

Kentucky - 1976

O roupão de lã azul era muito maior que seu tamanho e o fazia tropeçar diversas vezes na fita da qual nunca amarrava na cintura. Ainda não suficiente, sua meia branca o fazia deslizar por todo o corredor de madeira. Com apenas um impulso chegava praticamente ao final dele.

Saltou as escadas e em seus últimos degraus apoiou-se em apenas uma perna e abriu os braços para manter o equilíbrio. Já estava acostumado a tal correria, mas esta manhã era diferente.

Passou acelerado pela mãe, que por sua vez conseguiu evitar que o bule de café prateado caísse não chão.

-Percy! -exclamou ao filho ainda com o braço direito erguido segurando o bule.

O garoto nem ao menos olhara para trás.

Segurou a maçaneta dourada da porta com as duas mãos e a girou sem sucesso por conta das mangas longas do roupão que deslizavam.

O garoto ergueu os braços para o alto, e então suas pequenas mãos

saíram do longo esconderijo azul.

Um manto branco e fofo adentrou a casa antes mesmo da porta ser aberto por completo.

Seu sorriso se abriu. Foi de ponta a ponta.

Era como se não sentisse a umidade do gelo penetrando suas meias.

E por que se preocupar?

-É natal!! - esvaziou os pulmões enquanto chutava a neve e a pegava do chão fazendo bolas.

A mãe é claro chegara à sala aos berros, pedindo para que o garoto parasse com a bagunça que estava fazendo.

Rotineiramente ignorada. Eram instantes contados de uma bronca incerta, pois sabia de que nada adiantava insistir em nada daquilo.

O pai atravessou a sala de estar com o jornal de frente ao rosto, sem se atentar ao que o filho fazia.

Naturalmente.

Ele apenas sussurrou o fato de que era apenas véspera de natal.

Percy franziu o cenho e chutou mais uma vez a neve com certa impaciência e então fechou a porta.

Não se importava com qual dia de fato era, mas que em breve sua sala estaria repleta de presentes. Pilhas e pilhas de brinquedos, e era isso que importava.

Já na escola, o garoto era conhecido por toda a quarta-série. Ninguém ousava desafiá-lo, sabiam que poderiam acabar machucados por conta das travessuras que ele pregava, ou ainda pior se descobrisse que fora delatado à professora por alguém.

É claro que ninguém ousaria...

E Percy sabia disso.

Quando voltou para o quarto, logo após o café -da -manhã, se curvou para debaixo da cama e de lá tirou uma caixa de sapatos coberta por adesivos de carros e remendada por fitas adesivas.

Despejou todo o conteúdo em cima da cama: sete bolinhas de gude coloridas, um pião de madeira clara com o barbante já gasto; cinco balas de coca-cola surrupiadas do armazém vizinho; a sétima edição da revista Atari; três coroas; e por fim... O estilingue vermelho no qual ele mesmo o personalizara. Cada vez que acertava alguém ao longe, fazia um pequeno risco com canetas de cores diferentes nele.

O estilingue estava quase coberto pelas tais marcas coloridas. Talvez fosse a hora de ganhar um novo...

Mal podia esperar pelo dia de amanhã.

Mas de qual cor receberia desta vez?

''Verde ''?

-Ai! - exclamou a senhora de meia idade após ser atingida por um chumbinho.

“Hm... Não. Verde não, talvez laranja.”

-Droga! –disse em voz alta a mulher depois que suas sacolas de compras caíram no chão. Estava pressionando a dobra da perna onde havia sido atingida.

“Pensando melhor, as canetas coloridas não apareceriam no laranja...

Não. Laranja não.”

-Ouch!! – gritou um senhor robusto desta vez.

O garoto se abaixou rapidamente e sua imagem desapareceu da janela.

O chumbinho acertara o dono do açougue, mas dessa vez o velho sabia quem havia atirado. Cerrou o olhar em meio ao nevoeiro que surgiu, ergueu o braço apontando para a casa de número doze e acrescentou: –“Moleque dos infernos!” –sacudiu o pulso fechado no ar, e então seguiu seu caminho.

“Talvez branco fosse o melhor...”

A voz da mãe ecoou pelo corredor enquanto ela continuava seu tricor cor-de-rosa; ele tinha de escovar os dentes.

“Sim. Branco!”

E continuou a atirar suas bolinhas de chumbinho novamente.

A brincadeira havia durado quase a tarde inteira, quando finalmente resolveu que era hora de parar e descansar. Abaixou o estilingue se posicionou para fechar a janela, mas algo posicionado em frente à calçada chamou sua atenção.

Segurou a janela pela metade antes de descê-la completamente e então espremeu os olhos. Havia algo em frente a sua casa.

Algo que não estava lá instante antes.

Grandes olhos pretos fincados numa bola branca e fofa. Os outros botões eram menores e formavam aquilo que deveria ser um pequeno sorriso, ainda que desalinhado.

Não havia adereços ou outros tipos de detalhes. Eram apenas essas três bolas brancas, uma em cima da outra.

E aqueles olhos.

Pareciam estar fitando seu quarto, como se a bola branca simulando a cabeça estivesse ligeiramente inclinada para cima.

Crianças idiotas. Mas é claro... Como não percebera um maldito

boneco de neve parado em frente a sua casa?

Esteve lá por quase todo o dia. Era impossível alguém ter se aproximado sem que ele percebe-se.

Desceu as escadas correndo mais uma vez, chegou à porta e calçou suas galochas. Destruiria esse boneco idiota em um só chute!

Abriu a porta, se posicionou para saltar e...

Mas o quê?

O boneco de neve havia desaparecido.

A noite já estava em seus instantes finais. A casa estava em um escuro profundo, mas as luzes de natal que vinham da rua refletiam pequenos pontos coloridos que piscavam contra a parede de seu quarto. Luzes que aumentavam sua ansiedade a cada piscada que davam.

Por que o dia não amanhecia de uma vez?!

O garoto cruzou os braços embaixo da cabeça e observando o teto escuro, começou a fantasiar os presentes.

Qual abrirá primeiro? Qual será o maior?

Imaginou a pilha que se formara em frente à árvore.

Esperava que não fossem roupas. Odiava quando recebia roupas, mas sabia que de uma forma ou de outra elas estariam juntas àquela pilha.

A curiosidade sufocava seus pensamentos. Apertou o cobertor com impaciência.

Tinha de abri-los antes de o dia amanhecer...

Afastou o pesado cobertor de cima, e girou o corpo para fora da cama.

Preferiu não calçar as pantufas, afinal poderiam fazer ainda mais barulho.

Pisava com cuidado pelo piso de mogno do quarto. Mesmo em um escuro completo tentava passar por cima dos muitos brinquedos espalhados pelo chão- dos quais nunca guardava.

Abriu a porta do quarto e um leve ranger ecoou pelo corredor.

Percy contraiu os lábios e fechou os olhos.

Alguém acordara?

Tentou procurar algo na escuridão do longo corredor e parou por alguns instantes.

Não. Tudo estava quieto, ninguém acordara.

Continuou a passos curtos e silenciosos pelo corredor. Ao cruzar a porta do quarto dos pais, percebeu o vento que vinha dali: a porta estava entreaberta.

O garoto não se preocupara com possível fato do pai ou da mãe estar perambulando pela casa a essa hora... Sabia que quando precisavam sair do quarto durante a noite sempre ascendiam as luzes por todos os cômodos que passavam.

Não, estava tudo bem. Ninguém o perceberia.

Logo ao fim do o corredor sentiu que havia pisado em algo molhado.

Esperou descer alguns degraus da escada e só então ascendeu à luz:

Havia rastros de água por todo o corredor.

Ele observou o teto para procurar por goteiras, mas não havia nada.

O chão por algum motivo estava molhado aparentemente sem motivos.

Percy deu ombros e apagou a luz. Antes de continuar descendo parou por mais alguns instantes se atentando a possíveis ruídos do quarto dos pais.

Nada novamente.

Abrira um sorriso levemente confuso e desceu.

A árvore de natal cintilava e por de baixo dela... Lá estavam.

O garoto acelerou os passos até ela –ainda em extremo cuidado para não criar maiores barulhos.

Havia caixas e mais caixas.

Não fora necessário ascender à luz, uma vez que a lua cheia iluminou a rua coberta por neve e conseguiu atravessar as janelas refletindo uma estranha, mas nítida claridade.

Percy ajoelhou-se diante a grande e cintilante árvore e seus olhos se encheram.

Deslizou a ponta dos dedos sobre o papel azul laminado no qual embalava uma grande caixa.

Infelizmente não podia abri-lo... Seus pais saberiam que ele mesmo o

havia aberto.

Retirou a mão de cima da grande caixa, e no mesmo instante, ainda com a mão sobre o ar em direção ao pacote menor embrulhado em papel vermelho, se deu conta do que estava fazendo...

Desde quando hesitava por obediência? E ainda mais em situações como essa?

“Tolo.” Riu enquanto a mesma mão voltava para a superfície plana e azul da primeira caixa.

Não se preocupou em pensar duas vezes.

Desfez rapidamente o laço de seda dourado e o jogou para o lado.

Suas unhas arranharam o pacote, fazendo o papel laminado emitir um leve chiado ao ser amassado.

Percy parou rapidamente ainda com as mãos sobre a caixa e curvou o pescoço em direção às escadas.

“Ainda estão dormindo”. –pensou.

Continuou sua tarefa desembrulhando o papel, e finalmente, levantou as duas abas da caixa.

Cerrou os olhos para dentro da caixa, mas não conseguiu enxergar nem ao menos a cor do conteúdo. Inclinou-se para frente e então esticou os braços para dentro da caixa.

Suas mãos retiraram um objeto estranho, e por alguns instantes tentou entender o que era exatamente aquilo...

Girou-o com apenas uma mão, e percebeu que a mão esquerda ficara manchada por algo... Preto.

-O q... –Percy sussurrou enquanto seus olhos fitavam a grande peça

de carvão que estava segurando.

Posicionara-o de volta na caixa.

Não entendera o que aquilo fazia lá.

Resolvera abrir o outro pacote, o vermelho. E para sua surpresa, ao retirar percebeu ser... O mesmo.

Antes sua primeira reação estivera como em uma completa confusão, mas agora, ao abrir os próximos dois presentes e notar que todos continham o mesmo conteúdo preto começou a se zangar.

Mas foi quando estava no oitavo presente que sua expressão mudara.

Percy engoliu seco.

Não estava mais com raiva, mas sim receoso.

Tinha medo de abrir outro presente e se deparar com mais uma peça de carvão.

O garoto se levantou e foi em direção à lareira.

Ficara algum momento fitando as lenhas que ainda continham pequenos focos laranja entre elas.

O que estava acontecendo?

Ao levantar a cabeça observou as meias natalinas em sua frente. Espremeu os olhos mais uma vez, e percebeu que havia um bilhete em seu nome em uma delas.

Ele retirou, mas notou que nenhuma delas continha doce.

Todas estavam repletas de...

-Carvão!!

Percy cambaleou, ainda com o bilhete em suas mãos seu rosto lançou um olhar para a janela: O boneco de neve estava lá.

E o observava.

Sua respiração pesou, as pernas pareciam terem congelado bem ali. Ficou com a boca semiaberta enquanto seus olhos se enchiam d’água.

Não conseguia tirar os olhos da criatura que o fitava. E, ao espremer os olhos novamente, percebeu que algo estava em volta da cabeça de bola de neve: Um cachecol cor de rosa inacabado.

Engoliu tão seco que sua garganta doera. E ao encarar a feição do boneco de neve, percebeu que os botões que formavam a boca de repente se mexeram.

Percy finalmente conseguiu se mexer, e o susto o havia feito cair para trás.

Não esperou mais. Posicionou-se e correu em direção às escadas.

-Mãe!!! –liberou o grito desesperado que saiu de seus pulmões e ecoou pela casa.

Caiu ao chegar ao penúltimo degrau e novamente gritou pela mãe.

Quando parou bem em frente à porta dos pais, sua respiração oscilava.

A porta ainda estava entreaberta.

O garoto posicionou a mão sobre a porta e ouviu o ranger ao abri-la devagar.

-Pai...? –sussurrou.

A mesma luz que iluminara a sala estava agora iluminando o quarto, e ainda mais nítida. Seu olhar se enrijeceu ao ver a cama.

Não havia ninguém sobre ela.

Percy se aproximou da cama, observando os lençóis que estavam caídos e espalhados pelo chão.

Havia água também.

Ele continuou caminhando pelo quarto, até chegar à janela.

Seus olhos estavam despejando lágrimas em meio ao medo e a confusão.

As mãos de Percy se contraíram, e então percebeu que ainda segurava o tal bilhete em seu nome.

“De:______

Para: Percy.

Natal,Natal,

Querido Natal,

Espero que no próximo ano você não seja tão mal,

Pois isso que recebeu esse ano

Sim, tudo isso é real...”

Projetou-se para frente, e observou o boneco de neve que permanecia no mesmo lugar...

Mas sua cabeça estava inclinada para cima.

E aqueles mesmos botões que a pouco se mexiam, agora estavam estáticos...

Em um terrível e aterrorizante sorriso alinhado.