NATAL DOS MORTOS VIVOS

“O Homem tem dois pecados capitais, dos quais

decorrem todos os outros: a impaciência e a preguiça.

Por impaciência foi expulso do Paraíso,

e por preguiça não volta para lá.”

Franz Kafka

A revista científica Homem Inacabado publicou esta semana uma recente descoberta arqueológica que lançou nova luz sobre a origem do Homem como o conhecemos.

Nas ruínas localizadas nas coordenadas latitude 23º32'51" S longitude 46º38'10" W os arqueólogos encontraram um dispositivo eletrônico, de quinhentos anos atrás, que continha um escrito datado da mesma época. Segundo pesquisas anteriores, naquelas coordenadas havia uma metrópole chamada São Paulo, provável capital de uma nação, talvez soberana, chamada Brasil.

Veja a seguir a transcrição do escrito:

"A quem possa interessar, deixo o registro da minha morte, da morte de todos.

Meu nome é Carlos e hoje é Natal, 25/12/2014.

Vamos aos fatos:

Vim visitar meus pais e no caminho me deparei com uma flash mob de zumbis. Mas eles subiram no meu carro e começaram a pular em cima, bater nos vidros... acelerei. Tive medo! A toca vermelha de um Papai Noel ficou presa no limpador de para-brisa. Parei um quarteirão depois para tentar entender e quando ouvi a gritaria e gente correndo para o mesmo lado, tive certeza de que havia algo mais estranho do que os dias de Natal costumam ser...

Quando encostei o carro em frente ao prédio, fui tomado por um pavor que me roubou o raciocínio... vi um corpo caindo de algum apartamento... fiquei parado, com a porta do carro entreaberta, petrificado... um carro saiu da garagem derrubando o portão e indo bater num carro do outro lado da rua. Aí acordei!

Corri para dentro da garagem, subi pelas escadas até o terceiro andar. Barulhos altos de coisas caindo, quebrando, gritos e vozes ecoando pelas escadas... Cheguei ao apartamento dos meus pais, vi pingos de sangue no chão, borrifos vermelhos na porta e uma mancha vermelha na parede em forma de mão... senti o coração batendo dentro dos ouvidos!

Chamei, esmurrando a porta e tocando a campainha. Antes que a porta fosse aberta, alguém me deu uma gravata e mordeu minha nuca! A porta abriu e minha mãe começou a gritar. Mesmo morto não esqueço da sua cara, dos seus gritos, ela segurando a porta aberta e gritando, meu pai aparecendo atrás dela, franzino e baixinho, empurrando-a para o lado, tirando aquela coisa de cima de mim com força de titã, me arrastando para dentro, batendo a porta, trancando à chave... Tentava estancar meu sangue e acalmar minha mãe. Sabia que ele era calmo, mas sangue frio era novidade.

Meu estômago revirou, os músculos ficaram duros, os ossos tremeram, a língua se mexia que nem peixe fora da água, a visão era um mosaico em alta velocidade, eu me ouvia dentro de uma garrafa, rodava dentro da minha própria cabeça, as mãos tentavam agarrar alguma coisa, os pés chutavam sem parar...

Morri e minha mãe, em seu desespero irreversível, me apertou contra o peito. Foi onde a mordi pouco tempo depois de morrer! Meu pai me puxou com força pelos cabelos, mas não soltei, aí ele me puxou pelo braço e arrastou nós dois pela sala: eu e minha mãe com o seio sangrando dentro da minha mordida. Ele me deu um soco na cara e só soltei, quer dizer arranquei um pedaço do seio que me amamentou, quando ele chutou como um louco minha cabeça.

Ao me ver com um pedaço do seio da minha mãe na boca, ele correu tropeçando e derrubando móveis e coisas, derrubando nosso almoço de Natal, para se esconder onde não havia esconderijo. E eu, seu filho, morto cambaleava como um aleijado bêbado atrás dele... O coitado ficou encurralado na cozinha, pegou uma faca e gritou que me amava e que eu o perdoasse... Enfiou a faca no coração...

Acho que mesmo morto fiquei chocado... Alguma coisa aconteceu dentro da minha cabeça depois que meu pai começou a se debater no chão, sem medo de quebrar algum osso, sem medo de bater a cabeça, sem medo da faca entrar ainda mais no peito... Foi como ouvir um estalo duro e tudo ficar em silêncio, dentro no olho do furacão... Durou pouco o sossego... um estrondo, como um pé na porta... barulhos caóticos vindos de fora de mim... um aperto na parte da frente da cara, uma luz piscando sem ritmo... A luz parou de piscar e ficou lá, aos poucos os barulhos caóticos se organizaram... Senti a nuca latejar, a tampa da cabeça arder, a cara doer e estralar...

Meu pai cambaleou entre nosso almoço de Natal esparramado no chão, passou por mim com a faca enfiada no peito, o sangue ainda escorrendo, tropeçou e caiu. A ponta da faca apareceu nas costas; minha mãe tentava achar um caminho, não sei para onde, com apenas um seio, a carne rasgada e o sangue pingando.

Não sei quanto tempo fiquei parado, olhando e ouvindo. Lembro que o sangue já havia secado quando assumi o controle parcial de mim mesmo. Lembro que a televisão ligada falava de mortos-vivos pela cidade toda, pelo país todo, pelo mundo todo... o repórter insano gritava que o Inferno está cheio... cheio... não cabe mais ninguém... até sair do ar...

O vivo preso dentro do morto... incoerente... impossível... Sei que o portal da consciência é o cérebro; agarrei-me à essa idéia. Procurei uma porta, encontrei e entrei... invadi meu próprio cérebro, acendi uma luz fraca... tentei me acalmar... em vão... pelo menos raciocinar uma estratégia...

Morto-vivo... cuspi fora o seio da minha mãe... repugnante... morto... fome... fome diferente... nenhum menu saboroso veio à mente... gritos lá fora... comida lá fora...

Sensação horrível... corpo quase religado... sem sentimento... sem medo... sem alegria... sem tristeza... ver meu pai morrer-viver... arrancar o seio que me alimentou... só desejo... desejo por hábito... desejo por instinto... alguém passou voando pela janela... olhei para baixo... um Papai Noel sem propósito estatelado no chão... o vermelho da roupa, o vermelho do sangue... tiros... muitos contra um... animais fortes... animal fraco...

Inferno cheio... não cabemos lá, não temos para onde ir... mas morremos... mas vivemos... não... só mortos-vivos... a noite está próxima... não gosto da noite... mas gosto de ver o dia amanhecer... de ver a luz encobrir o escuro... daria tudo para ver a aurora de novo... se ainda estou aqui é porque também vou para o Inferno... reflexões demais para um morto...

Meus pais acharam a saída... deviam estar com fome... a mãe das boas idéias... eu também estou... posso me controlar, sei disso... morto, mas vivo também... posso me controlar... posso aguentar mais um pouco a fome... será que consigo usar o computador... mesmo morto fazer um registro histórico... isso é histórico...

Sei que essa praga vai ressuscitar... vai ressurgir... sobreviver... alguém um dia vai ler o relato de um morto... morto, mas vivo... morto-vivo...

Esses são os fatos... o repórter da televisão, antes de morrer... antes de morrer-viver disse que ninguém sabia ainda quem era o paciente um... imagino que ele falasse do primeiro morto-vivo desse Natal... não sei que número de paciente sou eu...

Pronto... morto digita devagar demais... Agora vou jantar com meus pais... mortos-vivos... família morta-viva...

Feliz Natal dos Mortos-Vivos."

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 25/12/2014
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