589-A MÃO DA BRUXA

A Mão da Bruxa

— Então, doutor Gervásio, vejo que está bem instalado. Conseguiu uma ótima casa. — O comentário era do prefeito de Piquimirim, ao visitar o recém chegado coletor estadual á pequena cidade, que administrava com dificuldade.

— Dá para a gente viver até o nenê nascer. Mas não precisa me chamar de doutor, não. Apenas Gervásio.

Gervásio Cintra chegara a Piquimirim para assumir a coletoria estadual, de recente criação, com a esposa Miriam, grávida de seis meses. Alugara uma casa pequena, bastante apenas para ele a e mulher, bem localizada, defronte à praça principal. Da rua sem calçamento subia a poeira, agitada por um redemoinho, na tarde quente.

—Vão ter de acostumar com as dificuldades do lugar. A cidade é pequena, não tenho muitos recursos e o povo é pobre. Mas, quem sabe, agora com sua repartição instalada, o governo do estado olha mais pra nossa Pequimirim. — A conversa do prefeito foi se estendendo, enquanto a tarde ia declinando, as sombras se alongando e a temperatura amenizando.

À medida que foi se adaptando à nova vida, Gervásio se enfronhava com os costumes da cidadezinha e ia conhecendo sua gente, sua história, os diz-que-disse, boatos e fofocas.

—Olha, doutor (insistiam em chamá-lo assim, apesar de seus protestos), fala pra sua senhora tomar cuidado com a bruxa da pedreira. — Mariano, um funcionário da coletoria natural da cidade lhe falou em voz baixa.

—Bruxa?

—É. Uma velhinha que mora num lugar ermo, onde havia uma pedreira. Vive esmolando pela cidade. Dizem que ela se transforma em gata preta e arranha as crianças de noite, sem que a mãe e o pai percebam. Prefere as crianças novinhas, as nenezinhas. Só menininhas. Diz que as crianças arranhadas viram bruxas também.

—Ora, ora, isto é história inventada...

—Que corre por aí. — Completou Mariano. — Cuidado nunca é demais. E a prova é que tem muita menininha de olho gateado na cidade, é só reparar.

Gervásio, incrédulo porém curioso, procurou saber mais da bruxa da pedreira. O assunto era evitado, poucos continuavam a conversa quando se falava na velha da pedreira. Recorreu ao Mariano, que, parecia saber tudo sobre a bruxa.

—A pedreira foi abandonada há muitos anos, e lá só existe uma macega alta, que esconde a maloca da velha. Ninguém sabe de onde ela veio. Mas depois que apareceu por aqui, mendigando comida e roupa, começou acontecer a aparição da gata preta que arranha as nenezinhas.

—Então já em muitas bruxinhas por aí... — Disse Gervásio, gracejando.

—O doutor não brinque com as coisas sérias. Mas que tem muitas meninas com os olhos gateados, lá isso tem. É só observar.

—E como ela consegue arranhar as crianças, sem que ninguém perceba?

—Ninguém sabe. É bruxaria das fortes.

Sem querer, e dada a convicção com que Mariano contava sua versão da velhinha que virava gata preta e arranhava as crianças recém-nascidas, Gervásio foi perguntando. Nada contou a Miriam, pois isto só serviria para impressioná-la, inutilmente.

—É a Velha Bichana, disse a diretora da escola, dona Luciana, numa tarde, na repartição. — Eu já estive lá, alguns anos atrás, na tentativa de tirá-la daquele lugar, mas ela não quis. Vive numa cabana miserável, remanescente das instalações da pedreira, desativada há não sei quanto anos. Eu também não acreditava nesta história. Mas existe, sim, muitas meninas aqui, de diversas idades, que têm olhos verdes e amendoados, sem nenhuma explicação, pois os pais são, na maioria, morenos ou negros.

—E são crianças normais? — Indaga Gervásio.

—Bem, mais ou menos. Mas já notei um temperamento agressivo nessas crianças. Arreganham os dentes quando estão zangadas, e quando brigam, avançam com as mãos como se fossem garras... os dedos abertos e as unhas arranhando as outras crianças.

—Estou impressionado, disse Gervásio, mais intrigado. — Será que posso visitar a escola e ver algumas dessas meninas?

Fez a visita. A diretora foi mostrando, discretamente, as meninas de olhos verdes e amendoados. Era hora do recreio e as crianças brincavam no patê interno da escola. Num dado momento, houve um desentendimento entre algumas meninas, no canto do pátio, e uma delas se jogou em cima de outra, como se fosse realmente uma felina. As mãos em garra arranharam os braços e, numa agilidade incrível, mordeu o pescoço da outra criança.

Gervásio nada falou com a esposa sobre a lenda nem a respeito de sua curiosidade, que o levara até a escola onde assistira a briga. Miriam estava nos últimos meses de gravidez e o marido sabia que tal assunto só iria preocupá-la.

Entretanto, as informações que recolhera o impressionaram a ponto de desejar visitar o covil da bruxa.

—Vamos ver quem é esta bruxa, disse a Mariano, convidando-o para uma visita à velha Bichana da pedreira.

Foram. E viram.

A velha estava sentada ao sol da tarde, num banco rústico, perto do simples telheiro sem paredes, que lhe servia de morada. Coçava ou penteava a cabeleira branca, que lhe chegava até a cintura. Pelo menos meia dúzia de gatos a rodeava e um estava sentado em cima do telheiro.

—Vamos conversar com ela?

—Melhor não, doutor Gervásio. Aqueles gatos são selvagens e podem e atacar a gente.

Ficaram só na observação. A velha permaneceu ali, mexendo nos cabelos com os dedos finos, sem se dar conta ou fingindo que não via os dois homens atrás dos arbustos.

Miriam deu a luz: parto normal, a criança sadia e esperta. Quando soube que era uma menina, Gervásio lembrou-se da bruxa.

Que diacho, porque tenho de lembrar daquela velha? É tudo lenda. Mito – pensou.

Entretanto, as visões da velha, dos gatos e das meninas brigando na escola persistiam em sua cabeça, entrando em seu pensamento como a raiz de uma planta maligna, crescendo a cada instante.

O medo instalou-se em sua mente.

E se a bruxa arranha minha filhinha à noite, quando estamos todos dormindo...? — Tal idéia não saia da cabeça.

Perdia o sono nas madrugadas e ficava atento aos ruídos da noite, às sombras das árvores no quintal. Ficou obcecado com a possibilidade de a lenda ser real. E num ato de insanidade— quando examinado à luz do dia— comprou um facão que passou a manter debaixo da cama de casal, do seu lado, à mão para qualquer eventualidade— que era bem possível nas noites de insônia.

Se algum gato aparecer por aqui, vai se ver comigo. — era o pensamento que acompanhava sua estranha atitude.

Miriam notava a insônia do marido, após o nascimento de Débora. Mas atribuía a uma preocupação exagerada do marido, “marinheiro de primeira viagem”, como dizia.

Uma noite...

Gervásio estava acordado quando notou uma sombra que se movimentava ao lado do bercinho. Sem se fazer notado, passou a mão por baixo da cama e encontrou o cabo do facão. A sombra tomou a forma de um gato preto que pulou agilmente sobre a cabeceira do berço. Por alguns instantes, ali ficou, lambendo as patas, como que se preparando para algo. O animal diabólico iniciava um ritual. Aterrorizado, o pai teve a certeza de que a lenda era real: ali estava a gata sem dúvida nenhuma pronta para arranhar a filhinha, e ele, bem acordado, agarrando o facão com a mão suada.

Num átimo, levantou o facão num gesto rápido e atingiu o animal. Procurou acertar a cabeça, mas a lâmina passou rente, cortando apenas a pata dianteira.

O animal soltou um terrível miado ao mesmo tempo em que saltou do berço, desaparecendo por debaixo dos móveis. A pata dianteira caiu sobre o assoalho, fazendo PLOC, som fraco e macio.

Gervásio levantou-se e, ainda segurando o facão, correu pela casa, mas nada mais viu. Voltou ao quarto, onde a mulher, tão apavorada quanto o marido, segurava a filhinha no colo.

—Foi um gato que entrou no quarto, explicou ele. — Não sei o que queria no nosso quarto. — Mentiu para acalmar a esposa.

Escondeu a pata da gata em local que só ele sabia e nada disse na repartição.

Gervásio se interessou pelas andanças da velha pela cidade, onde recebia algumas esmolas, não obstante a fama de bruxa.

—Tem gente que é ignorante demais. Imagine, dar esmola pra bruxa. — Mariano não perdoava.

—Pois quero dar uma ajuda pra ela, disse Gervásio. Na próxima vez que você ver a velha por aí, me avisa.

Não demorou muito, a bruxa passou defronte à coletoria.

—Lá vem ela, doutor.

Gervásio postou-se na calçada, de tal forma que a velha teria de passar entre ele e a porta da coletoria. Tirou algumas moedas do bolso e quando a ela passou rente a ele, ofereceu-lhe.

A velha estendeu a mão esquerda, uma garra de dedos tortos e unhas enormes. O braço direito estava envolto em farrapos que desciam desde o ombro. Gervásio viu que uma mancha escura marcava o pano, que escondia o lugar onde deveria estar a mão direita.

Tempos se passaram. A pata secou no esconderijo. A menina não fora arranhada e crescia saudável e normal. A velha continuava esmolando pelas calçadas, cada vez mais fraca, claudicando entre as ruas.

E foi numa dessas travessias de uma calçada a outra, descuidada e trôpega, foi atingida por Zécão, numa desastrada manobra com sua bicicleta. O rapaz, que virou a esquina moderadamente, não viu a figura arqueada de dona Bichana. Os dois foram ao chão, aos trambolhões. O rapaz saiu incólume, com apenas arranhões, mas a velhinha, devido à fragilidade de seu corpo, ficou estatelada no chão.

Conduzida para o hospital, permaneceu o resto do dia. Gervásio quis vê-la, mas estava muito fraca e o medico não permitiu visitas.

Sumiu naquela mesma noite. Na manhã seguinte, a cama estava vazia. Embora na enfermaria houvesse quatro outros pacientes, ninguém viu nem ouviu nada.

Se não houve preocupação no hospital pelo sumiço da velhinha, Gervásio ficou pensando sobre o fato.

—Vamos até a grota, ver a velhinha? — Falou com Mariano.

—Sim, vou com o senhor. Mas vou levar um vidrinho de água benta.

E foram. Gervásio, desconfiado e curioso. Mariano, temeroso, confiando na água benta que, sim, havia tirado da igreja.

Entraram no telheiro, chamando alto:

—Ô de casa! Dona Bichana!

Ninguém. Silêncio. Os gatos, assustados, subiram para o telheiro.

No fundo, uma enxerga. Em um leito estreito de paus trançados, sobre panos sujos e amarfanhados, Gervásio deparou com o corpo de uma gata preta. Cheio de equimoses e feridas, coberta de sangue.

Tirou do bolso a pata ressecada e ajustou-a no coto a pata dianteira, onde se encaixou como uma luva.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 3 de fevereiro de 2010

Conto # 589 da série 1.OOO HISTÓRIAS

Os contos da Série 1.OOO HISTÓRIAS São arquivados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/12/2014
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