Latet in tenebris - DTRL19

A noite chuvosa não poderia ser companheira melhor. Era tudo de que necessitava. As ruas vazias garantiam a ausência de testemunhas. Dirigiu até o cemitério, estacionando próximo ao portão para facilitar seu trabalho, afinal, Bruna não tinha o tipo físico resistente o suficiente para carregar um corpo por um longo caminho. Ergueu o capuz do casaco e saiu do carro, conferindo o portão destrancado, apenas com as correntes enroladas. Já sabia disso, era sexta-feira e o velho coveiro sempre bebia além da conta e acabava adormecendo em seu casebre antes de trancar o portão. Bruna se lembrava de ouvir alguns vizinhos reclamando de atos de vandalismo e roubos no cemitério. E era essa a razão de sua escolha.

Abriu apenas um lado do portão, não precisaria de tanto espaço. Voltou ao carro e abriu a mala: mal sabia expressar o tamanho do alívio que sentia ao se livrar daquela desgraça. Com esforço, puxou as alças da mala de viagem até que caísse pesadamente sobre uma poça, espirrando lama em sua calça jeans. À base de urros baixos, arrastou aquele lixo indesejável até a frente de um dos túmulos; era velho e há muito esquecido. Com toda a lama espalhada naquele cemitério semi-abandonado, a cova mexida não faria diferença. Bruna usou a pá do próprio coveiro para iniciar seu árduo e demorado trabalho. A chuva, nesse momento bem mais forte, deixava de ser uma companheira para tornar-se um fardo.

Ela já estava toda suja quando finalmente abriu o caixão com a madeira apodrecida e empurrou a mala sobre os poucos ossos que restavam, quebrando-os com facilidade. Devolver a terra ao seu lugar foi a parte mais fácil, já não chovia tanto. Após se certificar de que tudo estava em seu devido lugar, voltou ao carro. Abrindo novamente o porta-malas, pegou um saco preto e tirou suas roupas e sapatos. No caminho de casa, fez um desvio estratégico para jogar o saco no lixo de um hospital.

***

Acordo suando, com a respiração forte e o coração descompassado. Sento-me na cama, observando a escuridão que parece se mover ao meu redor. Tudo pareceu tão real! Levanto-me e, tateando no breu, procuro o interruptor. A chuva lá fora é o único som que ouço; ainda é madrugada, a cidade toda ainda está dormindo. Mas, onde está essa porcaria de interruptor?! Pareço ter perdido a noção de direção e nem a janela vejo mais.

Continuo a tatear pela parede, caminhando para o lado. Consigo sentir minha cômoda, quase batendo o pé nela. Estou perto... pouco depois, toco algo. Mas, não é o interruptor... São... São dedos! Me afasto caindo para trás e, por uma fração de segundo, posso vê-lo com os olhos injetados de ódio e a pele pálida quase com um brilho próprio. Eu grito e, no mesmo instante, a luz se acende. Ao meu redor, apenas a mobília e os trovões retumbando lá fora.

***

Não! Não posso acreditar! Será que alguém me viu? Como isso veio parar aqui?! Eu joguei essa merda fora! E agora ela está bem na minha frente! Não! Não pode ser a mesma roupa! Mas, está aqui! Acabei de sair do banho, a casa está trancada... Como... Como posso ver isso?! A roupa que usei para enterrá-lo está aqui sobre a cama! Assustada, corro pela casa à procura de alguém e nada vejo, está tudo igual. Não é possível! Pego a roupa e os sapatos, coloco em uma sacola e me dirijo ao guarda roupas. Abro bruscamente as portas e sou surpreendida por um corpo caindo sobre mim, me levando ao chão.

***

Bruna segue pela estrada, a chuva fraca deixando o caminho esbranquiçado, atrapalhando a visibilidade. Tem pressa, medo, raiva. Teme que esse homem não a deixe em paz mesmo após a morte. Quem teria o trabalho de fazer tudo aquilo? Algum amigo? Outra mulher? Mas, não seria mais fácil apenas denunciá-la?!

Dirigiu até outra cidade, até a praia. Com a desculpa de visitar uma amiga em uma ilha próxima, pegou a barca, até pagando a mais para transportarem o carro junto. Por causa da chuva, era a única no convés; ninguém a veria desta vez. Com cuidado, Bruna abriu o porta-malas, contemplando o que um dia havia sido um belo homem. Seus olhos teimavam em ficar abertos, sempre a observá-la. Segurando-o por debaixo dos braços, o arrastou para a beira da barca e o jogou, vendo-o afundar.

***

Uma boa noite de sono era tudo que eu precisava. Depois de tanto esforço estava quebrada! A chuva havia parado de vez, sendo substituída por uma neblina suave que dava a tudo um tom acinzentado. A noite parecia surreal. Antes de entrar em casa, me sentei à porta e acendi um cigarro. A fumaça subia torpe e se misturava à neblina. Não havia vento nem barulho, as vizinhas sempre dormiam cedo. Eu me sentia aliviada por saber que agora aquele desgraçado do Paulo estava morto e ninguém acharia o corpo.

Aquele desgraçado teve o que mereceu. Eu já tinha avisado a ele.

Meus devaneios foram interrompidos por um movimento estranho próximo ao portão. A neblina me impedia de ver, estava escuro demais. me levantei pegando um cabo de vassoura e quando me aproximava do portão o vi, bem ali.

-Merda! Isso só pode ser sacanagem!

O corpo de Paulo estava lá, jogado no chão, molhado, olhos abertos e brancos, a pele viscosa... O que eu faria agora?

***

Bruna sente a dor nos músculos, estão latejando devido ao exercício contínuo, suas pernas bambeiam... as lágrimas escorrem abundantemente enquanto cava novamente. Dessa vez nem saiu de casa. A neblina não deixaria que ninguém a visse e seria impossível dirigir em uma madrugada assim. Cavou o quanto pôde, não mais que sessenta centímetros de profundidade, não aguentava mais. Rolou o corpo até o buraco e o cobriu, pisando sobre a terra e colocando alguns vasos de flores por cima. Depois, arrastou-se para dentro de casa. Quando encarou a cama, apenas jogou-se e adormeceu.

***

Me espreguiço na cama, sentindo as dores espalhadas pelo corpo. Por que está sendo tão difícil? Abro meus olhos, contemplando o teto até a vista se acostumar. É aí que sinto um cheiro estranho, desagradável. Olho para minhas mãos sujas e decido tomar um banho. Ao virar para o lado, o susto é tão grande que caio da cama. Paulo está lá, olhos abertos, fluidos corporais sujando os lençóis e uma expressão distorcida no rosto. Começo a gritar, pondo em dúvida minha sanidade.

***

Móveis afastados, cortinas fechadas. O chão do quarto coberto por lençóis se transforma em uma mesa de cirurgia. Com a faca de churrasco do próprio Paulo, que ele costumava usar se exibindo para os amigos, Bruna começou a cortar. Cortava, cortava... os ossos eram difíceis e em algumas partes ela só os separava da carne. Foram horas e mais horas. Quando finalmente acabou já era noite e os pedaços de Paulo estavam divididos em sacos. Começou a arrastá-los para a sala e quando abriu a porta, deparou-se com um nevoeiro tão forte que mal podia ver o chão a sua frente. Mesmo assim, com dificuldade, colocou todos na mala do carro e a trancou. Em seguida, removeu os lençóis e limpou o chão com uma dose extra de cloro.

***

Bruna se esfregava como se sua vida dependesse disso. Queria tirar o cheiro de Paulo de seu corpo, sua casa e sua alma. Deixando a água cair sobre sua cabeça, pensava no porquê de tudo aquilo. Por que Paulo não a deixava... Por que não ficava enterrado...

Ao sair do banho, enrolou-se na toalha e foi para a cozinha. A casa permanecia em uma semi-escuridão solitária, refletindo bem o interior de Bruna. Estava triste, sozinha, amaldiçoada. A fome corroía seu estômago, precisava de algo para comer, pois havia se dado conta de que estava sem comer a dias. Fritou algumas almôndegas e foi comê-las na sala.o sabor era divino, descia suavemente por sua garganta, fazendo-a esquecer seus problemas. Isso até sentir algo estranho ao morder a última almôndega. Ao cuspir o conteúdo no prato, viu o que era. A ponta de um dedo, uma falange ainda com unha. Quando seu cérebro processou o que estava comendo há alguns minutos, a ânsia foi inevitável. Correu para o banheiro e vomitou. Vomitou até sangrar, até perder a consciência.

***

‘Dim-dom’ –a campainha tocava insistente. Acordei atordoada, levantando do chão. Joguei uma água no rosto, vendo minha aparência horrível e fui atender.

-Oi, Bruna.

-Oi.

Sinceramente eu nem me lembrava de quem era aquela mulher, mas isso não importava, eu queria ir para minha cama logo.

-Eu sei que o Paulo viajou e aproveitei pra te trazer isso.

-Obrigada. –respondi recebendo uma torta de suas mãos.

-Não me agradeça. Sei que homens são um pouco difíceis de lidar.

Dei um sorriso amarelo e ela se afastou, saindo pelo portão. Dentro de casa, cortei um pedaço da torta e comecei a comer. A carne estava um pouco apimentada, mas gostosa. Eu tinha tanta fome que comi quase tudo. Logo depois, fui para a cama e adormeci profundamente. A dor lancinante me acordou. Era como se estivesse sendo devorada por dentro. Sem forças para me levantar, virei para o lado e vomitei no chão. Estava escuro, eu sentia que sangrava e algo se movia no meio daquela coisa que saía de mim. Me virei para o outro lado e vi a cabeça de Paulo sobre o travesseiro, me encarando. Ele sorria, dizendo:

-Eu não vou a lugar nenhum, Bruna. E você também não.

Apenas coloquei mais daquela coisa pra fora, chorando, tentando acordar do horror que minha vida havia se tornado.

***

Anos depois...

-Você se lembra daquela novela que passava a alguns anos?

-Qual?

-Aquela que tinha uma garota que passou anos em coma e quando acordou a filha já estava grande e o marido casado com a irmã.

-Ah, sei. Que tem ela?

-Essa garota é parecida. O rosto, o cabelo.

-É verdade, eu nem tinha notado.

-Mas, o fim dessa aqui, infelizmente vai ser bem diferente.

-Infelizmente. Que Deus tenha piedade de sua alma.

-Que nada, ela até que merece. Quem mandou matar o marido? Bem feito, o castigo veio a cavalo. Foi esconder o corpo no cemitério e na pressa de fugir bateu o carro.

-Pobrezinha, ela cansou. O cara era um animal. Eu mesma fiz curativos nela várias vezes.

-Isso não importa agora. Vamos acabar de prepará-la porque a família vem pra desligar os aparelhos essa tarde.

Fim... Mas não para Bruna

Temas: Artigo 211, escuridão, coma

Aureus Mortem
Enviado por Aureus Mortem em 10/12/2014
Reeditado em 11/12/2014
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