Cavalo de Troia - Meu Amigo Oculto - DTRL 2014

Sobre a mesa, aguardava em silêncio, o pacote cuidadosamente embrulhado, na etiqueta dos correios apenas o destinatário que vinha a passos despreocupados ao seu encontro. Os fins de tarde traziam consigo uma brisa refrescante, flores amarelas arrancadas de seus leitos pelo tempo cobriam o chão como um tapete, assim, contemplando o chacoalhar das folhas, caminhava sobre um quadro de van Gogh contrastando com suas botas pretas.

A luz do crepúsculo entrava por onde a cortina entreaberta permitia, encarava o pacote aberto como quem afronta uma bifurcação em sua própria vida, um gole ou outro no copo de destilado, tentava imaginar quem lhe enviara aquilo, parecia estranho.

Desde que o tal objeto chegou sua vida tornou-se confusa, talvez fosse a bebida, mas podia jurar que a coisa falava com ele e espreitava seu sono. Em sonho andava pela mesma rua de sempre, mas coberta por flores vermelhas, porém não pisava no chão, arrastava uma cadeira de rodas com sofreguidão, ainda assim, estava feliz, no lugar das pernas dois cotocos apontando para frente e nas mãos lhe faltava alguns dedos, mas não fazia diferença alguma. Se sentia completo.

Pensando bem, o presente poderia ser útil... Quem sabe o que vai ser amanhã, o mundo caminha para o fim, algo assim pode ser a diferença entre a vida e a morte.

Os pés batiam contra o piso agitados, mais uma dose na caneca preferida estampadas com os dizeres: “monsters are real, ghost are real too. They live inside us, and sometimes they win.” A dor nas mãos e no que sobrara da sua orelha o incomodava.

Na manhã seguinte a chegada a coisa o confrontou, em estado de choque custou a entender o que estava acontecendo, mas uma insatisfação sobre seu estado, seu próprio corpo, começou a corroer seu cerne como um verme sedento por sangue.

A primeira parte a cortar foi uma das orelhas, a esquerda.

Um corte bem amador, uma faca de cozinha bem afiada e vários copos de álcool. Ficou muito feliz com o resultado, aquela coisa cartilaginosa não o pertencia. Fez um embrulho bem caprichado e endereçou ao verdadeiro dono do pedaço sanguinolento.

Porém, ainda não estava satisfeito... A voz o prendia, insistia, molestava seus pensamentos. Deveria se desfazer de outras partes. Escolheu o dedinho da mão esquerda. E não hesitou. A primeira tentativa foi falha, a faca subiu na altura de sua cabeça e desceu rápido de uma vez, mas não tão forte. A lâmina ficou cravada na sólida e resistente falange. A dor o deixou inconsciente por alguns segundo. Depois disso tentou um martelo sobre a faca. O dedo foi ao lixo, não tinha dono, não tinha serventia.

Agora, ali na quietude da noite que insistia em avançar sem pedir licença, evitava olhar o objeto que permanecia intacto, o pacote tinha sido aberto apenas de modo que pudesse ver o que continha, nunca teve coragem para tocá-lo. No começo pareceu engraçado, depois, com as primeiras manifestações da voz, a graça desapareceu e deu lugar ao incomum.

Sempre gostou do estranho, ao ponto de sentir-se atraído por ele, talvez por esse motivo não temeu ou questionou o ocorrido, mas sua rotina, por tanto tempo ingrata, agora fazia sentido, só precisava se livrar do que não lhe pertencia.

O telefone jazia sem vida em um canto qualquer, o computador desligado até mesmo da tomada, a casa trancada como se estivesse abandonada, sobre a mesa sua única companhia e nãos mãos o último gole de seu único alimento.

Ouvia atentamente sua nova e ameaçadora amiga que o persuadia para seu mais desafiante salto nas entranhas da liberdade. Sim... ele era livre para fazer o que quiser. As mãos inquietas pela ansiedade que o consumia. O último gole. O choque da caneca contra a mesa. Ar para os pulmões.

Tomado por uma coragem repentina, sem ao menos pensar nas consequências, sem plano, sem lamurias, envolveu os dedos sobrantes no cabo plástico da faca e cravou a lâmina na coxa direita até onde pode. O metal desceu rasgando a carne e a artéria até estacionar no fêmur. Ignorando a dor realizou a proeza ainda por três vezes antes de perder a consciência.

Em seus devaneios finais, chegava em casa naquela tarde fatídica com as solas das botas incrustadas de flores amarelas, agarrava o pacote recém chegado com as duas mãos em fúria, rasgava com uma fome voraz o papelão até alcançar as entranhas e levantava seu troféu acima da cabeça, com a satisfação estampada em seu semblante. Finalmente mataria sua sede por sangue num cálice de vitória.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 07/12/2014
Código do texto: T5061707
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