Luz — DTRL19

I

Num cair de tarde alaranjado sobre uma estrada poenta que divide uma imensidão plana e verde, caminhava, por essa estrada, um rapaz. Ao longo do caminho de terra vermelha, pelos dois lados, seguia uma ala de árvores de médio tamanho, talvez de uns três metros de altura.

O que o jovem não esperava, caminhando com seu olhar fixo no sol que se escondia, era que ele estava sendo vigiado. No lado esquerdo da estrada, para quem segue na direção em que caminhava o nosso mancebo, ia, recôndito entre as árvores, um animal negro e robusto; a fera caminhava pelas sobras, mas sempre paralelamente ao rapaz, ainda que este não a percebesse. Caía sobre tudo uma mudez calma, só se ouvia o farfalhar dos passos do jovem sobre a terra. A saliva pingava da boca da fera que seguia junto, no mesmo ritmo, esperando o momento exato.

O vento fez chiar as árvores com um balanço de folhas; dessas árvores os pássaros romperam num vôo súbito e barulhento de asas.

O sol deitou-se ao longe na grama; e a noite fez tudo se calar outra vez, jogando sobre o mundo seu manto negro que inibe qualquer resquício de vida. Os pequenos animais rasteiros corriam para suas casas, se escondiam em meio às folhas — sabiam que o perigo da escuridão era iminente. Mas, há mais ou menos um quilômetro dali, soou o apito agudo de um trem, como uma transgressão às imposições da noite.

Nosso mancebo virou por um momento a cabeça na direção em que vinha o ruído, mas só viu árvores bloqueando sua visão; mas por entre os troncos dessas árvores deslizava rápido e intercaladamente um feixe de luz, proveniente do farol do trem.

A luz se ia escorregando pela estrada escura e depois sumiu, e tudo outra vez ficou escuro e silencioso. Nesse momento voou a fera negra sobre o rapaz, como uma sombra em meio às outras sombras, um vulto como parte integrante da escuridão. A criatura caiu sobre o jovem derrubando-o na terra. Sua carne branca o extasiava: o animal travou os dentes afiados em sua perna. Um grito de pânico se ergueu na muda escuridão. Os pássaros que, silenciosos, se abrigavam nos galhos das árvores, voaram provocando um novo barulho de asas batendo.

O animal começou a correr pela estrada levando o jovem consigo bem preso pela perna. Enquanto era carregada, a vítima esperneava o animal para tentar se soltar ao mesmo tempo em que com as mãos ia evitando que sua cabeça batesse no chão. Mas eram inúteis ambos os esforços: os dentes da criatura estavam cravados na perna do rapaz muito profundamente, e as mãos não impediram que a cabeça do infeliz batesse com tanta força numa pedra que o deixasse desacordado.

II

Onde está? Onde está o lume que me guia? Não vês que eu não posso pisar sobre um chão que não enxergo?

Às noites eu olhava para o céu e via a lua, e sabia que você também estava olhando para ela, por isso ela luzia — a lua era minha certeza de que você vivia.

Onde está? Onde está o lume que me guia? Não vês que eu não posso pisar sobre um chão que não enxergo?

Hoje o céu está escuro: a lua se foi, as estrelas se foram e você também foi... E cá na Terra eu ando perdido, exposto ao que não vejo — mas queima ainda em mim um inexplicável desejo.

Onde está? Onde está o lume que me guia? Não vês que eu não posso pisar sobre um chão que não enxergo?

Sei que mesmo longe de mim, ainda tens consigo qualquer coisa que queime, que arda, que ilumine — e que então paire sobre tudo a alvura do seu manto mais sublime.

III

A estrada acabara, via-se agora uma linha de trem. Na verdade não se enxergava nada; tudo era treva total, escuridão. Sabia-se que havia ali uma linha porque um trem, aquele mesmo trem que antes vagava ao longe, como um sonho, uma fantasia, agora era real — estava há alguns metros. O farol à frente da locomotiva que vinha em disparada iluminava tudo, como o Conhecimento que ilumina a Humanidade e tira o Homem da escuridão. O rapaz, como presa, é o Homem como escravo do que não vê. A criatura é, portanto, aquilo que não se vê, é o tormento que o Homem cria para atormentar a si mesmo e que o pega desprevenido — como o jovem que não percebeu o ataque da fera, oculta antes em meio a escuridão.

Vinha o trem. O lobo corria com sua presa na direção da linha. O rapaz não fazia nada — o que se há de fazer absorto na escuridão?

Já na linha, com o trem há poucos metros, o lobo se esforçava em puxar sua presa que ficara agarrada junto a uma das barras paralelas que formam o trilho. O esforço da fera foi louvável, como é louvável o esforço daqueles que tentam tirar o Homem do rumo do Conhecimento, da Sabedoria; mas a tendência do Homem é Conhecer. O lobo, fugindo da ameaça do trem, da luz do trem, abandonou a presa e se foi.

Abrindo os olhos por um instante, o rapaz viu o trem vindo em sua direção — a luz do farol, a luz que salva o Homem, a luz que poderia salvar o rapaz se o maquinista parasse o trem e o socorresse; mas o trem era muito grande, ia muito rápido, era indomável — não havia tempo para frear. Como o trem, o Conhecimento é grande, mas muito difícil de administrar; isso torna o Homem também escravo de sua própria criação. A luz que pode salvar a humanidade também pode destruí-la.

O trem esmagou o rapaz. O maquinista abriu uma cerveja.

Tema: Escuridão

***

Olá, meus amigos do Recanto. Esta foi a minha colaboração para o 19º DTRL. Espero que eu tenha conseguido equalizar o terror com tanta filosofia barata presente neste texto (rs).

Estou muito feliz por estar participando outra vez e espero que vocês gostem do meu texto. Muito Obrigado :)

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 30/11/2014
Reeditado em 30/11/2014
Código do texto: T5054277
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