ESTRANHOS NA NOITE - DTRL19

“Algo em seus olhos era tão convidativo

Algo em seu sorriso era tão cativante,

Algo em meu coração

Dizia-me que eu precisava ter você.”

Tradução Strangers In The Night, Frank Sinatra

(Recomendo ouvir a música)

Embalada por uma música clássica suave ela adormeceu, em seus conturbados sonhos os fantasmas construídos por seus medos vinham assombrá-la, arrastá-la para um mundo onde tudo era escuridão e mesmo com os olhos bem abertos não podia enxergar além do negrume infinito. Seu frágil corpo nu, desprotegido era dominado por um ser desconhecido, envolvido em um abraço molhado e pegajoso como tentáculos gigantes, que a imobilizava completamente, explorava todos seus pudores e calava seu grito deslizando seus membros inarticulados por sua garganta. Em um estrondo de luz e fogo, as portas para o inferno se abriam...

Acordou assustada, coração acelerado e respiração ofegante, todas as noites eram iguais, desde criança sofria por medo das sombras e do que elas podiam trazer, correu os olhos pelo quarto vazio e sentiu que havia algo errado... Um silêncio incomum. A música tinha acabado.

Seu corpo tremia, o medo quase irracional tornou-se absoluto quando de súbito as luzes da casa se apagaram, luzes que dia e noite permaneciam acesas... Ela ficou estática por um tempo sem conseguir raciocinar, as mãos suavam, o coração batia tão forte que podia ouvi-lo. Tateou a parede em busca do interruptor, apoiada na certeza de que tudo acabaria com um clique.

E a escuridão permaneceu imponente...

Com os sentidos abalados pensou estar ouvindo passos. Havia algo na casa ou seu medo lhe pregava mais uma peça. Não dessa vez. Os ruídos se aproximavam nítidos e claros, como um animal acuado, a moça indefesa escondendo-se num canto do quarto...

...“Strangers in the night exchanging glances”...

...O som voltou a tocar, Frank Sinatra, ela reconheceu...

...“Wondering in the night what were the chances”...

...Os versos eram como navalhas em seu coração...

…“we'd be sharing love before the night was through”…

...Lentos passos ecoaram em seu quarto...

...“Something in your eyes was so inviting”…

...Ela podia ouvi-lo, mas não podia vê-lo…

...“Something in your smile was so exciting”…

...O terror tomou conta de sua mente e ela passou a tremer e suar incontrolavelmente...

…“Something in my heart, told me I must have you”…

...Seu corpo se contraiu como se quisesse agarrar-se na esperança de que tudo acabaria bem...

…”Strangers in the night, two lonely people We were strangers in the night”…

...Completamente paralisada, sentia o ar lhe faltar e uma sensação de formigamento nas mãos...

...”Up to the moment When we said our first hello. Little did we know”...

...Um sopro de ar quente tocou seu rosto e ela percebeu que seu fantasma estava tão próximo que era capaz de sentir a respiração dele acariciando sua face...

…”Love was just a glance away, A warm embracing dance away and”…

... Um cheiro forte de tinta invadiu seu olfato um pouco antes de soltar um grito impulsivo de pavor...

…”Ever since that night we've been together”…

... Porém o intruso lhe roubou a voz com um beijo forçado, pressionando os lábios com força contra os dela...

…”Lovers at first sight, in love forever. It turned out so right”…

... Na ânsia de libertar-se do pesadelo, a moça desferia golpes inúteis perdendo as forças, já escassas e desfalecendo...

…”For strangers in the night”…

A lona desbotada e rasgada, o capim quase da atura de um homem exibia o esplendor do abandono do velho circo, dos trailers que serviam de camarote para os artistas, apenas um permaneceu, apoiado por quatro blocos de cimento no lugar das rodas, a pintura que já fora colorida e alegre, descascada, corroída pela ferrugem, e a luz avermelhada do anoitecer dava um tom lúgubre ao local.

A noite era a pior parte do dia para ele, o silêncio atormentava tanto, que o incomodo chegava próximo da dor o impedindo de dormir, talvez fosse porque quanto mais velho ficava, fazia menos sentido perder tempo dormindo, então ele caminhava. Em tempos de glória fora o grande palhaço Augusto ovacionado pela plateia, causava riso descontrolado desde as criancinhas até os mais ranzinzas dos velhinhos, agora, não passava de um velho mendigo implorando um pedaço de pão nas casas onde antes morou seu respeitável público.

Andava a esmo pelas ruas em busca de alguém para lhe suprir a necessidade de uma companhia, foi quando a viu... Foi paixão a primeira vista... De branco ela parecia um anjo, cabelos loiros... Olhos azuis. Caminhando sozinha pela escuridão da noite, ele a seguiu.

Por entre vielas escuras, no silêncio melancólico da noite, olhos escuros profundos a espreitavam, a seguiam pelos becos desertos, sondando seus passos apressados até a casa de madeira velha.

A noite sempre foi a pior parte do dia para ela, suas fobias a consumia assim que o sol se deitava e dava lugar a escuridão da noite...

Ele sabia que ela o amava, sempre o esperava com as luzes acesas, sempre o observava nas ruas, ele sabia que ela o queria, sabia que tinha de ir até ela... E ele foi.

Ao acordar ela sentiu diversas pontadas de dor pelo corpo, estava atordoada, visão turva, notou uma luz forte que iluminava um palco em ruínas, e um velho palhaço em farrapos dançava ao som que ela não conseguia distinguir, seu corpo torpe estava imóvel e sua garganta seca... Aos poucos os sentidos lhe eram devolvidos e ela já podia ver ao redor diversos animais, demorou ainda mais um pouco para perceber que estavam empalhados e um pouco mais para notar que eram montagens de animais misturados, cabeça de um no corpo de outro. Sentiu-se enojada com o cheiro do lugar, uma mistura de mofo com fezes, tentou se soltar de onde julgava estar amarrada, então, para o seu terror, percebeu... Estava costurada na cadeira estofada, com um grosso fio de nylon que passava sob a carne de seus braços, pernas e tórax e a unia ao móvel. Incontrolavelmente a dor a golpeou, não só a dor física, mas a dor de sentir-se violada de um modo monstruoso como aquele, sem poder fugir.

Quando percebeu os olhos abertos da moça e o terror vazando em seu semblante o palhaço aproximou-se, enxugou suas lágrimas com as mãos ásperas e lhe trouxe algo para beber... Um líquido amargo e difícil de engolir. A moça dormiu...

Seus olhos se abriram com dificuldades e ela sentiu uma dor que a debilitava, viu o palhaço a costurar uma boneca grande com tecido e madeira e a escuridão, tão amedrontadora, a dominou novamente... Tempo depois sua consciência voltou e ela percebeu que estava perdida... Seus braços e pernas haviam sidos arrancados e costurados na boneca, ainda sem cabeça... No centro do palco em ruínas o velho palhaço dançava ao som de stranger in the night, com sua dama de madeira e carne vestida em seda vermelha. Ele largou seu mais novo brinquedo aproximou-se da moça em choque. Ao seu ouvido sussurrou que não precisava temer, viveriam, para sempre, juntos na escuridão... Só precisava da sua cabeça para completar seu amor...

A jovem enfermeira jamais votou ao hospital onde trabalhava e o homem sentiu-se menos solitário com sua dama de sorriso congelado, mas um cadáver exposto ao tempo dura menos que o ele imaginava e logo o velho solitário voltaria às ruas em busca de um novo amor.

Tema: Escuridão

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 30/11/2014
Código do texto: T5054218
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