A Consciência De Um Pobre Caráter - DTRL19
Tema: escuridão
Início esse conto consciente e deliberadamente explicitando que o tema, único e singular, aqui descrito é a escuridão (como os próprios senhores tiveram a questão de escolher). E antes de dar sucessão já pretendo a princípio deixar claro, de modo indubitável, que isto é mesmo um conto. Mesmo que haja a falta de personagens, enredo, fim e outros artifícios de meio que são ditos caracterizarem um conto, isto é um conto.
Eu não vou me dar o luxo de apresentar a mim mesmo neste monólogo pois isso não passa de puras futilidades e trivialidades. Já começo meu conto (sim) em uma profunda e frívola análise de meu ser e caráter, além de tudo.
Não é de meu mérito, eu admito, me auto-proclamar ou simplesmente insuar-me mau e doente ou, então, maldosamente doente. Seja lá que diabos isso signifique. Não é de meu mérito pois nada disso eu sou. Não sou mau. É certo que já vi, vivenciei e pratiquei certas maldades em minha vida, mesmo que de modo não proposital, assim como qualquer outro homem que se ache na face da terra. Mas também é certo que, numa generalização, em toda minha vida nunca quis impor e inflingir malefício a ninguém. Pelo contrário, sempre busquei agir de modo bondoso e assim ser visto. E como eu próprio mencionei anteriormente, não sofro de nenhuma doença, visível ou não. Sustento uma rotina de hábitos mais que saudáveis e vou ao meu médico regularmente (quando necessário). Não, não sofro dessas superstições. Não me considero uma dessas pessoas que se esforçam, ao limite de suas consciências, a se aparentarem hipocondríacas. Elas são ironicamente cômicas devo dizer. Querem tanto se dizerem hipocondríacas mas tanto, que chega a ser algo realmente doentio.
Tenho esse conhecido (ressalto que será o único personagem que acrescentarei. Não o tinha em mente, mas já que o assunto apareceu me sinto no direito de mencioná-lo) que vez ou outra se acha completa e doentiamente absorvido a encarar uma lista de sintomas das mais diversas e perversas doenças. E quanto mais diversa e perversa é a doença, mais contente ele fica ao constatar possuir todos os sintomas. No prazo de uma semana ele já se auto-diagnostica possuir sete novas doenças que de tão raras e caras para sua saúde ele morrerá, ao que tudo indica, se uma nova doença for descoberta. Além de sua fatídica hipocondria, esse meu conhecido é totalmente supersticioso em relação aos remédios prescritos pelo próprio médico. Bem, pelo que entendo não é que ele não acredite ou confie nos efeitos dessas mínimas pílulas que forçamos, nós mesmos, a descer e lá permanecer em nosso organismo. Não é isso. A questão é que ele não consente que uma influência vinda do exterior altere seu interior. Hehe, é irônico. O homem se satisfaz criando e moldando essas doenças para ingerir e desgastar o fundo de sua alma, mas não se conforma quando o próprio corpo se adoenta espontânea e exteriormente. E por isso, só por isso, ele não se trata, não se cura mas ao contrário, aceita de bom grado o enfermo que consome a si próprio. Só por maldade.
Hehe, já que me permiti usar desse bom humor ei de me dar o direito de comentar outro personagem, diga-se de passagem apenas um mínimo detalhe. Esse outro conhecido é ainda mais cômico. Sua mãe o abandonou quando ele tinha nem cinco anos, deixando-o apenas o pai. Mas a influência que este transpunha ao menino era ainda pior que o vazio da mãe. Alcoólatra e bipolar, o desempregado do pai sempre batia no filho para se certificar que havia sangue correndo nas veias de ambos. Bem, o abandono de casa, as inúmeras humilhações e ofensas sofridas pelo menino na jornada rumo a dignidade não me interessam nem um pouco. Logo, ei de ignorá-los. Digo apenas que em contraste com o pai, o filho tem uma forte fobia em relação ao álcool , é o homem mais pacifista que você há de ouvir falar e é extremamente bem sucedido financeiramente. O detalhe é que esse conhecido é casado. Sim, é nesse único ponto que eu pretendia chegar. Sua esposa. Ah, é irônico senhores, irônico! O filho se casou com o próprio pai! Não me leiam literalmente. A mulher é a versão feminina do pai. Alcoólica, bipolar, e mesmo sendo rica sustenta uma aparência tão miserável que é de dar pena. Mas é disso, exatamente disso, que ele deseja. Uma mulher tão miserável, de magreza e branqueza tão deplorável que é tudo que constitui suas riquezas. Ah, como é prazeroso sentir o mesmo cheiro de embriagues no ar enclausurado nas quatro paredes; ouvir as vibrações que ecoam das paredes e tremem em seus ouvidos com esses mesmos gritos de anos passados; sofrer as mesmas surras inundadas de lágrimas que dantes marcavam sua alma e pele ensanguentada. Ah, a visão do sangue escorrendo, tremulando, cintilando! Ah, como é nostálgico!
Tenham paciência senhores. Esperem apenas eu recuperar o fôlego... Hehehe...
Agora chega. Basta. Sem mais delongas. Vou me ater ao ponto, e ao conto somente. Termino aqui minha introdução. Bem, espero que esse contraste entre o alegre início e o restante de escuridão do conto sirva de uma boa utilidade e finalidade.
Ai ai, meus perdões senhores leitores mas esse pensamento atingiu-me como um raio. Peço apenas mais alguns instantes de seu tempo. Tentarei ser o mais breve possível com esse personagem. Não me culpem. Jamais imaginei relatar à vocês sobre esse caráter, mas estamos chegando numa afinidade que... Ai, ai... É meu dever, meu dever.
Ah, este há de ser fascinável, o mais notável caráter. Um pobre de um caráter (não há melhor descrição), sentimentalista que só o próprio diabo sabe quanto. Por uma só palavra mal colocada ao seu ver e já se vão noites em claro. Uma alma cercada de arrependimentos e sofrimentos, atormentada desde sua origem e afogada em aflições e angústias. Suas lágrimas tentado em vão cortar como as mais afiadas navalhas, forjadas das mais íntimas profundezas da alma, enegrecidas pelos mais obscuros pensamentos, as pesadas máscaras que iludem e escondem suas emoções e expressões deixando livre apenas os olhos que queimam e queimam febrilmente. Seu corpo, destinado a uma dor obsessiva e infindável repousa (como em um caixão no leito de morte) numa cama, mórbido, paralisado, esquecido de tudo e todos, a ouvir e sentir o único ser vivo que reside enclausurado nas quatro paredes, as batidas de seu coração.
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Sou um homem sem caráter. Não um homem de mau caráter, mas simplesmente ausente deste. Eis minha história. Nada mais que uma autobiografia se resumem essas linhas. Não sou como os outros escritores que escrevem pela necessidade urgente de retirar o peso que sufoca suas almas, a cruz que se prende numa prisão palpitante e indomável. O mais efêmero, mais insignificante peso a menos já é algo que faz o ofício deles valerem a pena. Também não é aos senhores que lêem que escrevo. Não me importo se vocês irão ter uma epifania de moral ao ler minhas palavras, ou pelo contrário, se fecharão num caixão ouvindo o palpitar dessa prisão. Não leiam, leitores. Não me interessa. Escrevo para mim, e para mim somente. Não me chamem de egoísta ou egocêntrico, pois para ser tal coisas deve-se primeiramente adquirir caráter. Um mau caráter, precisamente. E eu não possuo ambos. Escrevo porque estou seriamente perdido, perdido dentre todas essas falsas personalidades, histórias, vidas, todos esses sentimentos, pensamentos, sofrimentos, desejos, sonhos... Eu, quem os fundou, manipulou, conservou e usou-os para enganar a si próprio, estou completa e desesperadamente perdido. Não sei mais quem sou, não lembro mais do passado, pois tantos são que só um cego para ser capaz de cruzar todos de uma vez sem o menor hesito. Um homem perdido em si mesmo! Eis que homem sou!
Mas não me engano, não, isso não! Agora não! Não é possível. Para enganar-se devem haver mentiras e para haver mentiras deve, indubitavelmente, existir a verdade, a bela e singela verdade. Para se enganar é preciso ser alguém, ter uma história, uma vida, passado presente futuro, e nada disso eu possuo. Me resumo à minhas palavras, tudo que posso tocar. Mas ah! Que preço árduo e amargo. Dar vida a incontáveis personagens, traçar seus destinos, descrever suas misérias e dramas. Ser nada menos que Deus! O mundo num só ser! Ah, é demais! Tão desumano mas tão necessário!
Minha mão que carrega toda essas vidas no peso de uma pena é a mesma mão do homem cego que carrega todo o mundo em um pincel. Um homem cego que inevitavelmente é obrigado a formar e pintar tudo e todos ao seu redor, o mundo, para podê-lo enxergar compartilha da exata necessidade de um homem sem caráter que doentemente descreve e transcreve no já amarelado papel todo o destino da humanidade. Como se fossem marionetes! Todo o mundo num só pulso! O único jeito de viver! Um remédio alheio à hipocondria viciante que pulsa na tinta de meu sangue, a única influência externa que transpassa toda essa escuridão que cerca e consome o ser, penetra como uma navalha atirada ao Sol em minhas pupilas, em meus cegos olhos guiadores desse velho destino infernal de outro mundo. Toda essa hipocondria com a finalidade dessa luz em chamas nas sombras iluminar. Pois assim, só assim, meus olhos finalmente terão a luz requerida para sobreviver a essa escuridão.
Minha cabeça arde em febre. Não me importa, que queime e queime. Que consuma todas essas máscaras que se sustentam em meus atos, que se espalhe em meu sangue, que este borbulhe em resposta, que livre-se de todo esse veneno por mim consumado. Sabendo, sem dúvidas, do preço necessário a ser pago.
Mas agora chega desses enfeites literários, dessa linguagem parnasiana e rebuscada.Como mencionei anteriormente estou aqui para analisar meu ser e caráter, mais precisamente a falta deste. Não estou aqui para me atormentar e pagar de poeta. Se for o caso ei de abusar do uso de redundâncias. Sou um homem repetitivo e gosto mortalmente de repetir. Ah! Novamente! Digo nas precisas palavras "chega desses enfeites literários" e já estou novamente os usando. Ah, aos diabos com isso!
Vejam, na minha inexistente e incoerente opinião (não conheço tal coisa) todos nascemos possuindo, vencilhado a nossa alma, um particular caráter e inicialmente o desenvolvemos, necessariamente. Logo, resta a questão de onde enfiei o bendito do meu caráter? Pelo que observei e conclui, a única fase da vida onde é possível, não anular, mas esconder e acobertar o caráter é singelamente na infância. Sim, apenas uma criança tem a capacidade de banir o próprio caráter. E a razão disso é simples e óbvia. O caráter nessa fase não é consistente, rígido, pelo contrário, é mutável e facilmente se adapta a maioria dos ambientes. E é por esse mecanismo de ágil adaptação que existe na infância que se faz existir homens como eu.
Bem, eu menti senhores. E propositalmente. Sim, propositalmente! Não peço e nem quero o perdão de vocês. Eu menti por maldade, e por maldade somente. Talvez seja também pelo meu senso de humor, mas isso não passa de uma hipótese, pois se é que eu tenho algum. Foi uma cruel irrealidade à parte "todos nascemos possuindo, aderido a nossa alma, um particular caráter" . Não nascemos com caráter algum! Primeiramente devemos desenvolver nossos sentidos exteriores para depois, e só depois, desenvolver nossos sentimentos interiores. Sim, eu menti por maldade, menti para mais uma vez usar uma dessas "futilidades literárias", e eu deixo claro que menti. Pois menti e repito que menti para os senhores me odiarem, me repudiarem como filho, me ofenderem, humilharem, esmurrarem, cuspirem em minha face esses alcoólicos xingamentos. Sim, sejam meu pai! Minha paixão! Meu Deus e criador! Pois nada sou e nada serei!
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Eis as palavras de um homem sem caráter! Ah, meu irmão, minha criança, como é doloroso, penoso entender num tom tão profundo a tonalidade de suas palavras!
Chegaste a hora! Clamaram por um conto de terror e um conto de terror é o que verão! Chega dessas desculpas, dessas análises autobiográficas, mentiras sem caráter; chega dessas rimas de pensamento-sentimento-sofrimento. Que ponha um fim no homem cego da mão que traça destinos. Um fim ao ofício de pretender ser Deus! Brindemos desse cáli-ce vinho tinto de pena amargurado pela negridão que corre em nosso sangue. O próprio Destino perdido! Sim, chegaste a hora do ultimo personagem. O mais pobre dos caracteres. O mais infausto e funesto, o que é mau para ser doente, o que acha repouso em sua cama a sete palmos abaixo do chão, e faz do coração sua prisão! O que sofre da própria consciência! Querem o terror, um conto de escuridão? Então eis ai o que todas as máscaras, as pinceladas na amarelada folha de papel, o que minha alma escondia e disso sofria minha consciência. Eis ai o caráter de um homem sem caráter!
Parem de ler senhores. Ainda há esperança! A ultima e única súplica que ordeno. Rogo-te aos céus que desistam dessa leitura. As ultimas diabólicas linhas! Se pecam pela sanidade, pela humanidade, pela seja lá o quê for, larguem nesse imediato instante essas suplicias e não prossiga jamais. Não prossigam pois temo, temo pelo o quê iram encontrar. Nada além do mais puro ódio, a mais arruinada das desgraças, o mais vil e ignóbil ser que nem aos portões do inferno sua consciência é aceita, a quem a morte cerrou os olhos e ignora. Há um motivo de minha alma ser tão desequilibrada e descontrolada. Eis o motivo!
Esperam uma história, eh? Que esperem, que morrão nessa espera! Não há história alguma! Eu menti. Ah, que prazer! Meus dedos transcorrem numa fúria estas linhas, as palavras se comprimem mais e mais. Uma arte abstrata. Uma escrita abstrata. O que deixam de inventar? He he he? Me chamam de abstrato, eh? Hi hi hi. Fechem os olhos, sejam como a morte pois ela, e só ela, me compreende. Sim compartilhamos da mesma história. Nenhuma! He he he. Há quanto tempo estava preso, sozinho comigo mesmo. Libertam-me só por libertinagem, para me cegarem frente a essa claridão! Enxergo tudo e todos, mas desapareço, afogado nessa insaciável luz tão pálida quanto o céu. Eis o seu conto de terror! A escuridão absoluta que é absolutamente harmônica, calma, pacífica. É nela, em nosso interior, que achamos nós próprios. Por isso a tememos. Por nós!
Sim... Chegamos numa inegável afinidade... Mas qual finalidade de ficar falando e falando? Os leitores que escolheram a escuridão como tema, o meu tema, logo aos senhores venho com o pedido: sobre o que vocês desejam que eu escreva? Só não me respondam sobre o passado, minha história. Não! Qualquer tema menos isso!
Dizer-ei da real arte da escrita abstrata usada neste conto. Uma autobiografia! Hehe. É isso, basicamente tudo resume-se ao famoso "fluxo de consciência" . Ha! Sim, sim, minha consciência. Não de outro, não de ninguém. Minha! Mas ouçam e ouçam bem. Não é o mesmo artifício que se usa também nos romances. Não, há de ser diferente. Os contos se assemelham muito mais aos filmes antigos. Mudos e sem cores. A ausência de tudo exceto a consciência! Sou como o um vagabundo, a tramp, The Tramp. E sem tempo, nem energia, devo, por força da natureza, usar concentrar abusar de todo esse fluxo de consciência delirante e dinamicamente. Ah, se vocês pudessem presenciar as curvas, os traços traçados, o mudo contraste entre preto e branco, ah! Como é uma arte minha escrita!
Não me entendam como um não compatriota, peço que não. Mas sinto-me no direito de assumir que tenho severas tendências de ter sangue russo correndo em minhas veias. Ha, já somos então irmãos de sangue! Reflito sobre isso somente pelo fato de haver dito que sou "sentimentalista que só o próprio diabo sabe quanto". Quantas interligações, emaranhamentos neste conto. Uma teia de aranha! E eu, quem sou eu? A teia, a aranha? A presa? Ha ha. Eu sou todos e nenhum na mesma passada de tempo. Tempo? Fluxo de consciência! Não há tempo! Não para mim. Esse formigamento em minhas mãos, essa febre que ferve em minha cabeça e incandesce as obscuras noites que passam sem que meus olhos nem pisquem.
Ah, como é absurdo, insuportável suportar todo esse peso que se desconstrói em todo nosso ser! Esse convite à pena, chamando-a para dançar em volta das linhas. Ah! A que custo devemos nos entregar! Todos meus músculos fatigados, cansados, destruídos pela leveza e rapideza dessa pena que corre numa música inaudível mas universal, que nos força a dançar sempre e sempre! Ah! O preço desse fluxo de consciência! Esse fluxo de emoções, perdões, sonhos, arrependimentos, memórias passadas que nos atravessam e nos destrói. Que queima e queima nossas faces, borbulha nosso sangue, nos faz agir sem um único descanso! Sempre e sempre! Todo o mundo concentrado e dividido em cada partícula de nosso corpo que tem para sí um conto totalmente particular e inédito. Ah, senhores! Nem mesmo eu já consigo mais compreender toda essa abstração, esses passos ao som da música, os desenhos que eu crio e recrio, faço e refaço. Eis a troca equivalente! O mundo na palma da mão junto com toda a prisão de sua gravidade.
Todo meu corpo se revolta contra si mesmo. É demais continuar, demais! Cada singular traço de exclamação é mais uma dor acrescentada e guardada à alma. Meus tímpanos perdem o entusiasmo desta tremula vibração que nos toca. Meus dedos estalam em urros requerendo o fim imediato. A tinta já nas ultimas gotas passa a falhar e perder o brilho. A pena amarelada dança nas ultimas linhas desse mesmo amarelado papel. É demais. O mundo absoluta e inteiramente sustentado pela consciência desse pobre caráter...