UM AMOR DOS INFERNOS- LENDA MEDIEVAL
                                                     
Et pour ce nul de vos presume baisier de feme, ne veve, ni pucele, ne mere, ni seror, ne ant , ne nule otre feme...). “E por isso nenhum de vocês deve ousar beijar esposa, viúva , donzela, mãe, irmã, tia, ou quaisquer outras mulheres”   § 123- Regra Da Ordem do Templo.
 
Essa era a regra. Um cavaleiro templário, ao entrar para a Irmandade devia renunciar para sempre ao amor. Devia, doravante, viver para a Ordem, perseguindo os santos objetivos pelos quais lutava, ou seja, a defesa intransigente da fé cristã, as ordenanças da Igreja, os interesses do reino cristão na Terra Santa. Por isso jurava manter a castidade, praticar a caridade e viver na mais estrita pobreza.
Era uma regra dura, mas tudo isso o Cavaleiro Aymeric jurara e achara fácil cumprir. O prêmio era impagável em qualquer moeda: a salvação da sua alma. Ele não via problema algum em viver na mais estrita pobreza. Os bens do mundo nunca o atraíram. Nascera na pequena nobreza do Languedoc, nunca possuíra nada além das suas armas e seu cavalo, os quais oferecera em vassalagem ao conde de  Mountbard, em troca da sua elevação á nobre condição de cavaleiro. Depois, quando viera a cruzada, ele, juntamente com seu lorde suserano embarcara para aquela grande aventura na Terra Santa, para combater os infiéis que haviam ocupado a sagrada cidade de Jerusalém e proibido os cristãos de visitar os lugares santos.
Lutara com denodo e coragem no cerco de Jerusalém, quando os cristãos tomaram a cidade, naquela tarde do dia 15 de julho de 1099. Ele fora um dos cavaleiros que formavam a linha de frente da batalha, quando os cruzados entraram na cidade, com sangue até os tornozelos.
Sim, Aymeric era um valoroso soldado que não se importava com os prazeres da vida, nem desejava riquezas e tinha um coração aberto para a caridade. Por isso fora um dos primeiros a se filiar á Ordem dos Cavaleiros do Templo do Rei Salomão, um grupo de cavaleiros que se propuseram a viver como monges mendicantes, defendendo e protegendo os peregrinos cristãos que viessem a Jerusalém para adorar nos lugares santos.
Eles sim, eram verdadeiros santos. Ardentes defensores da fé, piedosos cristãos que não temiam derramar o próprio sangue em defesa dos valores que o Senhor Jesus Cristo havia trazido ao mundo e a Igreja de Roma se esforçava para disseminar, preservar e manter. Por isso ele havia sido iniciado naquela santa Irmandade, cujos regulamentos haviam sido redigidos por outro santo, o grande São Bernardo de Clairvaux.
E fora o próprio São Bernardo que redigira aquela regra que, agora, dez anos depois da sua iniciação como Templário, fazia dele o mais infeliz dos seres sobre a terra. Sim, aquela maldita regra que proibia que um cavaleiro templário se aproximasse de uma mulher: ‘... Et pour ce nul de vos presume baisier de feme, ne veve, ni pucele, ne mere, ni seror, ne ant , ne nule otre feme.”
Porque ele, Aymeric de Saint Didier, estava loucamente apaixonado pela dama Blanche de Chatillon, a jovem filha do conde Reinald de Chatillon, um dos pares do reino de Jerusalém e grande senhor entre os nobres cristãos que viviam na Terra Santa.
Mas ele, Aymeric, não podia nem almejar olhar para aquela donzela. Não fosse pela sua condição humilde, oriundo da pequena nobreza do Languedoc, embora feito cavaleiro por mérito conquistado no campo de batalha, havia ainda um impedimento maior, representado pelo seu juramento de Templário, de observar a mais estrita castidade, pois assim o exigia os votos da profissão de fé que adotara.
A mulher, diziam os ensinamentos que ele recebera nos Capítulos do Templo, devia ser vista como uma deusa. Devia ser adorada e respeitada como se fosse um santo relicário. Todo e qualquer pensamento lascivo em relação a ela era considerado um pecado capital. Devia ser expiado com jejuns, preces e retiro espiritual. Se o pecado tivesse sido cometido, ainda que por um mero olhar, uma palavra que fosse, dirigida a uma mulher, então o castigo era ainda maior. O chicote, a prisão, anos em uma masmorra, com ração de pão e água.
Essas regras já vinham da tradição da cavalaria secular. Por essa tradição, todo cavaleiro, ao ser armado, escolhia uma dama a quem jurava servir e ser fiel em seu coração. Com esse juramento acreditava-se que o cavaleiro se comportaria sempre com nobreza e seu coração seria eternamente fiel a um principio. Quanto aos Templários, sua jura a esse respeito era para com a Virgem Maria e a Igreja, as duas damas “viúvas” a quem eles juravam servir para sempre, em seus corações e espíritos. Por isso o Cavaleiro Templário era conhecido como “Filho da Viúva”, pois Maria, mãe de Jesus, era viúva de José, o carpinteiro, e a Igreja de Roma era a “esposa” viúva de Jesus.
 
Mas a paixão de Aymeric por Blanche tornava-se cada dia mais intensa. Ainda que nunca tivesse falado com a moça, ele sabia que ela também o amava. Estava escrito nos olhos dela. Ele via esse amor crescer dia a dia, a cada vez que seus olhares se cruzavam, no passo da Corte, onde ele, como cavaleiro, exercia suas funções junto ao Grão-Mestre do Templo e ela, na qualidade de dama de companhia da princesa Sibila, costumava passar todos os dias em direção ao palácio real.
Aymeric chegou naquele ponto em que uma paixão se torna obsessão. Ele tinha que possuir aquela moça. São exatamente as paixões não correspondidas, ou aquelas cujas barreiras físicas, sociais ou religiosas impedem a correspondência que se tornam obsessivas. Por isso o cavaleiro estava numa encruzilhada fatal da qual não tinha como escapar. Eram dois abismos postos na frente e atrás dele, de forma que qualquer passo que ele desse, em qualquer direção, o resultado seria terrível. Ou teria que escolher a loucura, que fatalmente adviria se ele não pudesse desfrutar o amor de Blanche, ou  então o degredo, a prisão, a excomunhão, se resolvesse deixar a Ordem para viver o seu amor. E depois disso, o inferno quando morresse, pois para lá iam todos os perjuros, os excomungados, os traidores dos votos sagrados.
 
As mentes torturadas são o canal pelo qual o demônio entra no mundo. E foi certamente o demônio que sugeriu á Aymeric a solução que ele, depois de muitas noites sem dormir, afinal, resolveu adotar. Pois o demônio sugeriu ao impoluto e casto cavaleiro simplesmente que ele matasse Blanche e depois possuísse o seu cadáver. A lógica do demônio era simples: uma vez que a razão da sua loucura não mais existisse, ela também deixaria de existir. E quanto a sua paixão, ela seria satisfeita pela posse do corpo da moça. Assim, ele ficaria plenamente satisfeito: teria o amor da sua dama e não precisaria quebrar os votos feitos à sua Ordem, já que um cadáver de mulher não podia ser considerado uma mulher. Pelo menos, não mais.
O demônio era insistente e ao cabo de algumas semanas de intensa pressão acabou convencendo Aymeric de que essa era a única solução. Não foi difícil para ele atrair Blanche para um encontro em um dos becos escuros de Jerusalém. Isso era o que mais havia naquela cidade de vielas escuras, estreitas e malcheirosas, que nenhuma pessoa honesta tinha coragem de frequentar depois que escurecia. Mas Blanche também o amava, e estava esperando por isso há muito tempo. Sonhava com isso. Rezava para que um dia, o seu cavaleiro tivesse a coragem de abandonar seus votos e entregar-se de vez áquele amor, que a cada dia, também crescia em seu coração de donzela sonhadora. Ela sabia de todas as restrições que eram impostas aos Templários nesse sentido. Mas também acreditava que o amor tudo vence: até mesmo as barreiras que a loucura e a ignorância humana impõem á sua própria natureza.   
E foi com essa confiança, o coração cheio de amor, e a maior das esperanças que ela foi se encontrar com Aymeric. E ao invés das juras de amor, dos beijos sonhados e experimentados na sua imaginação de donzela, o que encontrou foi a morte na ponta do punhal do seu amado.
E depois de matá-la, ele a violou. Mas mal terminara o seu nefasto ato de necrofilia, satisfeita a doentia paixão dos seus sentidos desvairados, ele ouviu a voz que vinha do ensanguentado cadáver da infeliz Blanche. “Venha ao meu túmulo daqui a nove meses para ver o resultado do seu ato.”
 
Nunca se descobriu o assassino da jovem Blanche. Por seu lado, Aymeric encontrou, finalmente a paz. O demônio não havia mentido. Aymeric cresceu dentro da Ordem do Templo e acabou se tornando preceptor de uma das mais importantes preceptorias templárias da Europa. Nunca mais o demônio o atormentou. E nunca ninguém soube da sua aventura. E também jamais revelou a alguém, que nove meses depois do seu horrendo crime ele foi ao túmulo de Blanche e violou a sua sepultura. E ao abrir o caixão da amada, encontrou, entre suas pernas, uma cabeça humana, de feto recém-nascido. O corpo de Blanche, já completamente decomposto, estava em posição de mulher que acabara de dar a luz. Então, a mesma voz que lhe dissera para vir ao túmulo dela depois de nove meses lhe disse: “guarda em segredo essa cabeça e presta-lhe culto nas sextas-feiras santas á meia noite. Ela fará a sua fortuna e a de seus Irmãos”.
 
Assim nasceu o demônio Baphomet que fez a Ordem dos Templários se tornar a mais rica e poderosa Irmandade de todos os tempos. E também levou a todos para o inferno.
Cuidado: O demônio também se vale dos nossos melhores sentimentos para realizar os seus intentos.