525-PACTO DE IMORTALIDADE- Diabólico

— Daria tudo para ser um imortal! Pertencer à Academia, usar o fardão, participar das tertúlias e das reuniões literárias de alto nível. Ser homenageado por todos como um dos melhores literatos!

A idéia entrou na cabeça de Solon Botello mesmo antes de ser um escritor famoso. Quando seu primeiro livro foi editado, na festa de lançamento, ao autografar os primeiros exemplares, uma pequenina luz se acendeu em seu espírito: a idéia de ser famoso e atingir o pináculo da carreira o mais rápido possível.

Interessante notar que a fama almejada por ele não passava pela ambição de ficar rico vendendo os livros que escreveria. Não, sua ambição se dirigia para a fama, a glória, o reconhecimento de suas qualidades literárias.

Vou ser considerado o maior escritor de todos os tempos! Receberei as honras que estão reservadas para mim. Serei um imortal, um membro da Academia.

Que seus escritos eram envolventes, há de se reconhecer. Escrevia sobre assuntos místicos, cabalísticos, religiosos e profanos. Tratava com a mesma desenvoltura literária as questões esotéricas e exotéricas. A fluência era sua característica, a magia estava sempre nas entrelinhas (quando não claramente) de sua abundante produção literária. As experiências de sua mocidade aventureira eram narradas como aventuras de um herói mitológico.

O sucesso aconteceu em função do seu valor literário. Edição após edição, de títulos atraentes e chamativos, esgotava-se nos primeiros dias após lançadas. Tudo indicando que Sólon poderia, com o correr do tempo, candidatar-se e conseguir seu ingresso na Academia.

Porém, a minúscula chama da ambição que se instalara em sua mente foi aumentando, ampliando-se de tal modo que, dentro de poucos anos, se tornou uma idéia fixa e que se sobrepôs a tudo.

A ambição se revelou na maneira e nos modos de agir. Gradualmente, a inspiração cedeu lugar à ambição, que mudou não só seu estilo literário como seu comportamento particular e a conduta social. Inteligente que era, viu que estava perdendo prestígio, à medida que seus novos livros passaram a encalhar.

Daria tudo para ser imortal! De que vale ter sucesso e não ser um imortal, não pertencer à Academia?

Uma tarde recebeu uma visita inesperada. Sentado à frente da escrivaninha, procedia a algumas correções em seu trabalho mais recente, quando, sem ser anunciado pelo serviçal, o vulto impressionante se materializou ao seu lado: um homem alto, extremamente magro, de feições aquilinas, mais parecendo um personagem saído das telas de Goya. Ainda de pé, falou a Sólon, que, estupefato, permaneceu sentado.

— Ouvi falar que o senhor daria tudo para ser imortal. É isto mesmo?

Notando que o visitante era amigável, convidou-o a sentar-se. Só depois que o homem se sentou e cruzou suas longas pernas, Sólon respondeu:

— Sim. Darei tudo para ser imortal. Vou pertencer à Academia, custe o que custar.

— Pois estão, posso ajudá-lo. Tenho poderes para torná-lo imortal. — Disse o estranho, exibindo um sorriso cheio de simpatia.

— Como assim? Quem é o senhor? Como poderá fazer de mim um imortal?

— Quem sou, não vem ao caso. Quer ou não quer a minha ajuda?

Sólon pensou rápido.

Só pode ser brincadeira de alguém. Nunca vi esse cara, mas sinto que posso confiar nele. Se for brincadeira, nada tenho a perder. Se for assunto sério, tenho tudo a ganhar.

— Sim, aceito sua colaboração.

— Colaboração que tem um preço.

— Quanto terei de pagar para ter a garantia de ser imortal?

— Sua alma.

Agora sei que isto é brincadeira de meus amigos. Vou fingir que estou acreditando nessa tramóia. Seja quem for o mentor desta patranha, vai ficar sem graça.

— Minha alma? Mas, como teremos garantias? Como terei a certeza de que serei imortal? E como o senhor terá a garantia de obter minha alma?

— Faremos um pacto de palavra e de tempo. Sua aceitação com a minha promessa. O tempo confirmará nosso tratado.

— Seja! Concordo. Mas quero ser imortal dentro de breve tempo.

— Tempo é o que não lhe faltará para a prova de minha parte no nosso acordo.

Isto dizendo, como aparecera, o homem se desvaneceu.

Putz! Até que essa mágica foi bem feita. — pensou, sem se impressionar.

Para Sólon pouco mudou a vida após a visita do estranho. Não houve nenhuma manifestação por parte de seus amigos ou conhecidos, nem mesmo de inimigos, a respeito do estranho visitante. A produção literária continuou no mesmo nível, nem melh or nem pior. Vendia bem, dava para manter, e tudo ficou num nível que, estatisticamente, seria representado por uma linha horizontal no centro de uma escala de 1 a 100.

A obsessão de Sólon pela imortalidade da Academia não diminuiu. Cortejava os atuais imortais, e candidatou-se por diversas vezes a uma vaga. Entretanto, seu nome era sistematicamente rejeitado.

Os anos passaram. Sólon escrevia e escrevia. Sua editora já não lhe dedicava o mesmo tratamento de antanho. Os amigos foram rareando.

Ao completar oitenta e cinco anos, sentiu pela primeira vez que a Academia já não lhe fascinava tanto. A editora cancelou as edições. A idade pesava-lhe. A saúde diminuía, os achaques da velhice já se manifestavam.

Mais alguns anos se passaram. Aos noventa, seus escritos nada mais significavam. Deixou de escrever e passava os dias recolhido em solidão, na grande casa que, como o proprietário, se desfazia lentamente com o passar do tempo.

Noventa e cinco, noventa e nove, cem anos. Vivia então de recordações. Entre elas, a mais insistente era a da visita do estranho que lhe prometera a imortalidade em troca de sua alma.

Bem, se não me tornei imortal da Academia, então aquela visita não passou de alguma brincadeira de mau gosto. Se não ganhei, também não perdi.

Entretanto, alguma coisa bem no fundo de sua consciência lhe incomodava. Enquanto as demais lembranças se dissipavam da memória, a recordação da visita tornava-se cada vez mais vívida, mais nítida, quase que se transformando em realidade.

Será que foi realmente um pacto com...”ele”?— Não ousava sequer imaginar o nome da entidade que pensava ser. — Se foi um acordo, “ele” não cumpriu a sua parte e eu também não tenho de me preocupar.

Porém, se preocupava, sim. Seria ou não seria um combinado? Sim ou não? Uma noite, entre pesadelos e horas de insônia, o estranho apareceu-lhe em sonhos e confirmou o que Sólon já deveria ter imaginado:

— Sim...Trato é trato. Estou cumprindo com minha parte e sua alma me pertence. Tornei você imortal e tenho toda a eternidade para recebê-la.

Sólon acordou sobressaltado.

Então é isso? Eu queria a imortalidade da Academia de Letras e “ele” me deu a imortalidade da vida!

O desespero tomou conta do velhinho. Não podia, não queria pensar no que significava ser imortal. Uma idéia passou a dominar toda sua mente: suicidar-se.

Já que não terei um fim natural, eu mesmo providenciarei a minha morte.

Mas todas as tentativas de suicídio foram em vão. Salvo miraculosamente de atropelamentos, saltou diversas vezes de altos edifícios e pontes. Uma força sempre providenciava para que a morte, tão desejada, jamais ocorresse. Ingestão de venenos foi inútil. Cortou inúmeras vezes os pulsos, que se fecharam no instante seguinte.

Os momentos de lucidez eram dedicados a novas tentativas de acabar com a própria existência. Nos momentos de loucura, era visitado constantemente pela entidade cujo nome não ousava mencionar. E a aparição confirmando inexoravelmente a sua disposição de cumprir o trato:

— Não se preocupe. Lembre-se que você é imortal graças ao nosso trato. Tenho toda a eternidade para esperar por sua alma.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 18 de dezembro de 2008

Conto # 525 da Série Milistórias –

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/11/2014
Reeditado em 16/11/2014
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