523-NO CÓRREGO DO MOINHO

Adaptação do conto # 289- “O Córrego do Moinho”,

para a novela A Senhora das Coroas

Margarida trabalhou algum tempo comigo, no hospital. Foi então que ficamos amigas. Depois, casou, teve um filho e seguiu a sua vida. Nos últimos meses, quando sua irmã, Leocádia, ficou grávida, ela me convidou e fui com ela diversas vezes no sítio onde morava a irmã, para ver se estava indo tudo bem. Foi numa dessas vezes que aconteceu a tragédia.

Foi num domingo de manhã. Quando chegamos, a casa estava silenciosa, uma quietude e tranqüilidade que a gente não tinha na cidade.

— Onde está todo mundo? — Margarida perguntou, quando nós três sentamos na espaçosa varanda, da qual a vista podia se estender até o horizonte, naquela manhã iluminada por um sol bem quente.

Leocádia respondeu:

— Dodô foi com as crianças pra cidade. Foram assistir à missa.

— E você, como está? — perguntei, admirando a barriga enorme.

— Estou que não agüento mais. A criança tá um peso, deve ser menino.

Nós nos acomodamos nas poltronas de palhinha, não muito confortáveis, e desconjuntadas pelo uso. Margarida falou com o filho:

— Lino, fica brincando aí fora, na grama, mas num sai de perto de casa, viu?

O menino saiu sem pressa, desceu as escadas e foi pro relvado defronte, onde, em vez de um jardim, havia dezenas de goiabeiras.

— Aproveitei e trouxe pra você essas roupinhas... — Disse Margarida, entregando um pacote à irmã. A conversa se animou. Leocádia estava grávida, quase às vésperas de dar à luz, e Margarida vinha visitá-la, como tinha feito quase todos os domingos, nos últimos meses. Aproveitava para trazer algum presentinho para o nenê ou uma novidade da cidade

Avelino ficou brincando no campinho gramado, ao lado da casa. Tinha seis anos. Era miúdo e tímido. Eu sabia que ele gostava de brincar com os primos do sítio do Tio Dodô. No sítio moravam o Salvador, Leocádia, com quatro filhos e vovô Lorenzo.

Eu via o velho todas as vezes que ia lá, mas ele era muito sistemático e nunca conversamos. As crianças também não eram muito chegadas ao avô. Um dia um deles falou UM DIA, na sala, escandalizando os pais, que “ele só abre a boca pra zangar com a gente. Leocádia ralhou com o filho: “Olha lá como fala do seu avô, menino!""”

A figura do avozinho era estranha: completamente careca, uma barba branca muito longa, amarelada ao redor da boca, olhos de um pálido azul sob sobrancelhas brancas espetadas em pequenas touceiras de grossos fios revirados para cima. Tinha ficado viúvo há muitos anos e morava num quartinho só para ele, com porta independente da casa, saindo diretamente para o campinho onde, naquela manhã, Avelino brincava.

Enquanto as irmãs conversavam, vi Avelino subindo numa das goiabeiras, ficando quase escondido pela folhagem. Minutos depois, vi o avô saindo de seu quarto, passando direto pela frente da casa, sem notar que estávamos na varanda. Foi na direção do pomar em passos miúdos, as pernas arqueadas fazendo o corpo balançar de um lado para o outro.

Eu já conhecia o sítio, tantas vezes tinha ido lá. Sabia que ele ia para o moinho de fubá. E de repente, Avelino desce da goiabeira e segue o mesmo rumo tomado pelo avô.

A construção do moinho era de tijolos, coberta de telhas. Parecia uma casinha de cartão postal, com a roda d’água ao lado. Dentro, o espaço era apertado, só cabia a máquina de moer milho, com o depósito em forma de funil, acima da mó, e um caixão onde o fubá caia em minúscula cascata de pó amarelo.

Leocádia me contou que o moinho havia sido construído pelo Vovô Lorenzo, seu sogro, pai de Salvador. Ele era hábil carpinteiro, entendia o bastante de mecânica e de engrenagens, além de ser muito bom como pedreiro. Era um homem de sete instrumentos e tudo o que fazia, fazia bem feito. Depois da casa do sítio, erigida por ele, a construção do moinho fora fácil. Apenas teve de mandar fazer a enorme roda d’água, toda de metal.

Dia e noite, sem parar, o moinho triturava os grãos e os transformava no pó fino, usado nas quitandas feitas pela tia, ou trocado por milho, ou vendido na cidade. Por trás do moinho girava a enorme roda de ferro, sobre a qual despencava a água, correndo em uma larga e funda canaleta, também de metal.

O sítio tinha diversos atrativos para a meninada que, quase todos os domingos, chegava da cidade para brincar com Zeca, Juca, Neca e Dito – os primos. Passavam os dias na liberdade do sítio: subindo nas laranjeiras, jabuticabeiras, mangueiras e dezenas de outras arvores frutíferas; passando pela olaria (e pisando nos tijolos ainda frescos, postos a secar); correndo atrás dos cabritinhos e sendo perseguidos pelo irascível bode e feio, de chifres afiados; “nadando” no córrego que passava no fundo do sítio e move o moinho de fubá. Sendo que este último folguedo era estritamente proibido, mas quem pode impedir as crianças de fazer suas artes e desobediências infantis?

Salvador tinha me explicado, numa das visitas anteriores, como funcionava o moinho. O córrego foi desviado de seu leito e formava um pequeno açude, antes de sair pela calha para movimentar a roda do moinho. No movimento, a força da água era aumentada pelo girar da roda. Liberada, despencavam por mais de vinte metros e se transformava numa forte cascata sobre as lajes, formando uma grota escura e úmida, cujas paredes eram cobertas de samambaias e folhagens próprias de lugares muito úmidos.

Eu estava imersa nos pensamentos acerca do moinho, quando ouvi Margarida, debruçada no parapeito da varanda, chamando o filho:

— Lino! Lino!

— Ele foi pelo caminho que vai até o moinho. Foi atrás do seu Lorenzo. — Falei para Margarida.

— Já falei mais de mil vezes pra ele não ir lá! — Desceu as escada, e já foi pegando uma varinha que estava encostada na parede, parece que já esperando para uma situação daquela.

— Agora pego esse levado.

Fui junto, pois não queria que ela batesse no menino por tão pouca coisa. Descemos pela trilha que ia ao moinho: passava pelo pomar, por uma pequena plantação de cana. O estreito caminho desembocava numa área sem árvores nem mato. Era a margem do riacho.

Chegamos de surpresa. Lino estava do outro lado do pequeno açude, completamente pelado, brincando na areia branca da margem. Vi o monte de roupas do lado de cá. Ele tinha tirado a roupa para atravessar o açude por onde dava pé.

— Ah! Minino danado! — Margarida gritou, agitando a vara na mão direita. — Falei procê ficar perto de casa. Cê vai ter um acesso de asma!

Avelino assustou-se com a chegada da mãe. Entrou depressa na água, para voltar. Por onde passava, o riacho tinha apenas um metro, mais ou menos, de fundo. “Dava pé”, como os garotos diziam, não precisava nem saber nadar. Lino já estava na metade do percurso, quando escorregou nas pedras do fundo e perdeu o equilíbrio. A corrente era forte e o derrubou. Vimos quando a correnteza começou a arrastar o garoto. Desesperada, Margarida se jogou na água, tentando agarrar o filho. Mas a correnteza arrastou o menino na direção da calha, sem que ela pudesse alcançá-lo.

O menino foi levado pela água que, no canal, se tornava veloz e forte. Por uma única vez deu um grito, logo abafado, pois se afogava. Impotente, com a água atingindo os seios, Margarida viu quando o filho foi jogado por sobre a roda.

O velho Lorenzo também deve ter ouvido a gritaria. Vi quando ele saiu do moinho, que ficava abaixo do poço. Subiu o barranco com uma agilidade que eu não imaginava pudesse ter. Quando chegou ao meu lado, viu, como eu também estava vendo, Margarida gritando e depois, desaparecendo de nossa visão, no meio do açude. Olhei para a calha, onde a água ficava mais rápida. Vi um braço de Lino, que desapareceu num relance. Desesperado, o velhinho olhou para a ponta da calha onde a água saia num forte jorro. Também olhei pra lá e vimos o garoto rolando por sobre a roda d´água, que, com seu giro, o impulsionava ainda mais. Lino agitou as mãos e pés, enquanto era precipitado, em meio à cachoeira, por mais de vinte metros. Desapareceu de nossas vistas. Caiu sobre as lajes onde a cachoeira estourava em espumas alvíssimas.

Margarida, agarrando-se à vegetação da beirada do açude, chegou perto do canal. Gritei:

— Volta, Margarida. Volta, antes que a correnteza leve você também.

Ela não viu mais o filho. Sabia que lá embaixo, onde Lino havia caído, o leito era feito de pedras: pedras escuras, lisas umas, pontiagudas outras. Ela adivinhou, com certeza, a tragédia e gritou desesperadamente.

O avô, que havia presenciado, como eu, toda a tragédia, não suportou o susto e a dor e caiu de borco, o corpo desfalecendo sobre a terra negra.

Após a morte de Avelino, a tragédia se desdobrou. Me contaram que Vovô Lorenzo, ao voltar do enterro do neto, pegou de um pesado machado e se dirigiu ao moinho. Com poucas pancadas, destruiu a coluna central das engrenagens e quebrou ao meio a pesada mó, parando de vez o funcionamento do moinho.

— E não quero que ninguém vá consertar o maldito. — Ordenou.

Felizmente, Leocádia não presenciou a tragédia. Mesmo assim, ficou chocada. Triste, muito triste, teve a criança no tempo devido, uma menina que, de certa forma, amenizou a lembrança do acontecimento.

Margarida, traumatizada, não se perdoou pela morte do filho único. Passei a visitá-la constantemente. Ia em sua casa quando saia do trabalho e escutava suas queixas.

— Eu sou a culpada. Se não tivesse assustado meu filhinho...

Deu em ficar horas e horas, sentada no banco da cozinha, os olhos fixos no fogo ou nas brasas do fogão de lenha.

— Eu sou a culpada... sou culpada... – murmurava, quando não falava em voz alta.

O marido tentou de tudo para trazê-la à realidade. Inutilmente. Antes de se passar um ano da morte do pequeno Avelino, foi internada no Manicômio São Damião.

Acompanhei Margarida quando ela foi levada para o manicômio. Penso que ela não deveria ter sido internada. Mas o marido não conseguiu continuar convivendo com o os murmúrios de culpa da esposa e a dolorida lembrança do filho.

Margarida foi definhando no manicômio e morreu dois anos depois. O pai, sem mulher nem filho, mudou-se para bem longe, e nunca mais deu notícias.

Sei que o moinho ainda está lá. No mesmo lugar. Em ruínas. A roda d’água, parada, enferrujada, a água descendo por sobre vãos e buracos. As águas passam por sobre o canal, transbordando, caindo pelas beiradas. Samambaias cresceram assustadoramente. Nem mesmo os primos gostam de passar pelo sinistro local, nas suas andanças pelo sítio.

— É um lugar maldito. Tem assombração. — comentam.

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Penso que a dor pela perda de um filho é insuportável. O filho enterrar a mãe ou o pai é situação normal da existência, mas ter de enterrar um filho é muito, muito doloroso.

O velório de Avelino foi abreviado. A comoção da família foi tanta que se esqueceram dos detalhes. Fiz uma pequena coroa de flores brancas, uma singela homenagem minha à inocência do menino.

Ainda hoje, passado muitos anos, ao passar defronte à tumba de Avelino, voltam-me as recordações da tragédia que marcou de forma tão brutal toda a família de seu Lorenzo.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 8 de dezembro de 2008 - Conto # 523 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/11/2014
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