SOB A TERRA

O motorista parou a surrada caminhonete e apontou com o dedo indicador uma casinha afastada da estrada. Desci, tendo como companhia uma mochila e a solidão. Segui pela trilha de terra batida. A casa era simples. Sob o alpendre, protegi-me do calor. Ofereceram-me água. Fui acomodado num quarto. Dias se passaram. Maurina se engraçou por mim. Retribui seu interesse. Fomos descobertos. O pai e a mãe vieram cobrar-me reparação pela vergonha e pela desonra causadas à filha. Fui preso.

O delegado acusou-me de estupro. Nem sabia como me defender. Por lá não havia inquérito nem aquelas formalidades de cidade grande. Ele me propôs acordo. Assinei o papel confirmando o depoimento. O filho da puta me atirou porta afora da delegacia.

– Ele é de vocês! – decretou, fechando a porta atrás de si. Sofri toda sorte de violência. Como última lembrança, um chute potente na nuca e a escuridão me abraçou.

Sigo pela trilha de terra batida. Ao final dela sou recebido por uma garota de sorriso agradável à entrada de uma caverna bem iluminada e espaçosa. Ela me aponta uma saliência e indica num gesto para que eu me sente. Há mais três iguais. Vazias. Meu corpo está inteiro e sem um arranhão sequer; não sinto dores. Nada!

– Fugindo de encrenca? – pergunto.

– Sou casada com ela e amante da mesma. Ri da própria frase e eu riu de volta já me considerando encrenca/amante.

– Conseguiu uma caverna fora do circuito?

– Algumas cavernas ainda são desconhecidas e podem ser habitadas. Esta, por enquanto, não foi bisbilhotada por espeleólogos. Não há sinais visíveis de que ela habite o lugar. Como se lesse o que pensei responde:

– Não vivo aqui. Recebo pessoas ocasionalmente apenas!

Continuei com minha curiosidade aguçada pelo inusitado todo da situação. Voltei para a entrada da caverna e o sol bateu forte em meu rosto. Havia um céu de azul profundo e sem nuvens. Tudo em volta lembrava um mundo limpo e sem encrencas. Muito perfeito. Eu apanhara demais daquele povo. Disso eu me lembrava com muita clareza. Mas não sentia…

– Dores. Aqui não há. Sou Dona Belasco.

A mesma do crime de repercussão? A que sofrera toda sorte de sevícias e que fora torturada barbaramente e, por fim, empalada e deixada numa beira de estrada como um espantalho ensanguentado para assombrar motoristas?

– Ela mesma! Antes que você pergunte, esqueça se está vivo ou morto. Isso é irrelevante. A morte pode ser um sonho longo e agradável começando aqui nesta caverna. Ou um pesadelo desagradável sob esse sol convidativo. Não se importe muito com cenários e escolhas.

Retornamos para o interior da caverna e voltei a ocupar meu lugar. Três caras surgiram pela mesma trilha de onde vim. Reconheci-os. Foram passageiros comigo naquele ônibus desafortunado que fora jogado numa ribanceira. Lembrava-me apenas de ter escapado ileso, apanhado minha mochila e pedido carona. Contaram histórias semelhantes à minha. E Dona se apresentou a cada um deles e nos apresentou. Eramos todos criminosos no fim das contas. Cortadores de gargantas, falsários, estupradores; enfim, havia um cardápio de violências que praticáramos em nossas curtas vidas. Ela não nos molestou com moralismos desnecessários. Apontou uma parede da caverna. Como num lance de encanto prestidigitador ela se abriu e surgiu um barco com quatro acentos que aguardava atracado num ancoradouro vazio. Apresentou-nos ao barqueiro e desejou, rindo, uma travessia tranquila. Longa, mas tranquila, frisou. A parede voltou a se fechar. Uma escuridão dominou tudo. Apenas o barulho monótono dos remos era o que ouvíamos.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 13/11/2014
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