513-O FANTASMA VINGADOR-

Versão para "Senhora das Coroas"

A disputa entre Carlão Cintra e Miro Moreno pelo controle das casas de prostituição da zona meretrícia vinha há anos crescendo e estava chegando ao ponto decisório. Miro havia chegado como quem nada queria, aproximou-se de Licéia, dona da melhor “pensão” da rua e aos poucos tomou posse do negócio. Em um confuso lance de poker em que até ocorrera a morte de um parceiro, Carlão perdeu para Miro a propriedade de duas das melhores casas. Com o poder diminuído, estava acuado. Para Carlão, Miro sempre fora uma ameaça que devia ser eliminada. A hora do acerto de contas final estava próximo. Os dois se vigiavam como duas feras, nenhum lance passava desapercebido e a cada dia a tensão na zona aumentava.

Miro vivia com Gringa, na casa dirigida por Licéia. Farejou o perigo. A fim de evitar surpresas, não tinha hora certa para entrar nem sair de casa. Encomendou a dona Zuca um trabalho para fechar o corpo ameaça de Carlão. E passou a carregar um revolver pequeno e leve no bolso do paletó jaquetão.

O que não impediu que fosse vítima de uma tocaia em fria madrugada, quando voltava pelo beco dos fundos, para o abrigo confortável de uma cama e para os braços da amante.

Os disparos vieram por trás. Duas balas atingiram Miro, uma no braço esquerdo e outra na cabeça. Tombou sem um gemido. O sangue escorreu abundante pelo rosto.

Mas o “trabalho” de dona Zuca tinha sido eficiente e ele resistiu. Teve um desmaio ligeiro, do qual voltou em instantes. De olhos fechados, ouviu vozes que se aproximavam e distanciavam. Ficou imóvel e silencioso, embora as feridas queimassem como ferro em brasa e as dores fossem terríveis.

— Então, tá liquidado?

— Claro. O homem nem gemeu, o senhor não viu?

— Vamos arrasta-lo para o quintal da casa de Licéia.

— Uai, seu Carlão, pra que isto?

— Vai ser um aviso para Licéia e para todas as putas da rua.

Miro reconheceu as vozes. Carlão e Zéca Trintaeoito.

A cabeça explodia em luzes amarelas e roxas. Ouvia um zumbido de serraria em funcionamento dentro de seu cérebro. Permaneceu imóvel. Sentiu quando as fortes mãos o pegaram pelos pés e começaram arrasta-lo. As costas queimavam pelo atrito contra o solo de cascalho.

Ainda bem que tenho o corpo fechado. Vou fingir de morto. Não posso deixar Carlão ou Trintaeoito notarem que ainda estou vivo.

Não durou muito a tortura do arrasto. Apenas o percurso suficiente para chegarem aos fundos da casa de Licéia. Abriram o portão de madeira e o puxaram até o meio do quintal, onde o deixaram estendido próximo a um pé de laranjas.

Disgraçados! Tentam me matar e ainda me trazem para casa!

A casa estava fechada pois os clientes há muito já haviam deixado o bordel. Se as mulheres ouviram os disparos ou a movimentação no quintal, ninguém sabe. Mas Gringa, numa intuição que ocorre entre pessoas que se amam, abriu a janela de seu quarto e viu os dois vultos que se afastavam correndo pela viela.

— Acorda, dona Licéia. Tem alguma coisa no quintal.

O desespero de Gringa, ao descobrir corpo do amante foi indescritível. Começou a chorar alto. Licéia. Tentou acalmá-la e chamou as outras mulheres. Com esforço, o carregaram para dentro, limparam-no e o deitaram sobre a cama. Apesar das dores que sentia e do grande sofrimento que via nas mulheres, em nenhum momento Miro deixou transparecer que estava vivo.

É o único jeito de ficar vivo. Se desconfiarem que não morri, voltam e me liquidam de verdade.

Licéia tinha contatos que forneceram atestado de óbito por morte natural. O enterro foi ao entardecer. As prostitutas de todas as “pensões” compareceram, mais por curiosidade.

Durante o dia, Miro teve momentos de inconsciência. Voltava a si e mantinha-se firme, isto é, olhos fechados, completamente imóvel. A grande perda de sangue, a fraqueza e a dor faziam que sua aparência se assemelhasse, cada vez mais, ao cadáver que pretendia ser. Enganou até mesmo Carlão e Trintaeoito, que pouco antes do enterro, apareceram para certificar-se de que o serviço fora completo.

Agora mesmo é que tenho de continuar fingindo... Eles querem ter a certeza de que morri. Corja do inferno!

No cortejo do enterro, a consciência voltou completamente ao suposto defunto.

Tenho de manter-me alerta. Se descuidar, fico pra sempre debaixo da terra.

Sentiu quando o caixão foi depositado na cova e a terra sendo jogada em cima.

Não posso ficar muito tempo aqui. Mas tenho de esperar todos irem embora.

Não havia como saber. Miro aguardou algum tempo. Se foram cinco, dez minutos, meia hora, não saberia calcular.

É agora!

Forçando para cima a tampa com o braço direito, sentiu logo a terra fofa caindo pelos vãos da madeira quebrada. Movimentos concentrados aliados a uma força inaudita elevaram as tábuas para além da terra amontoada e então Miro vislumbrou a claridade. A terra caia, enchendo o caixão, mas a vontade de se safar daquela situação foi mais forte que tudo, e eis o enterrado vivo já fora de sua cova.

Olhou em todas as direções. O cemitério estava deserto. Mesmo assim, Miro saiu com cuidado para não ser visto por algum dos trabalhadores. Aos poucos, entre um túmulo e outro, foi se limpando e ajeitando-se para re-entrar no mundo dos vivos.

Fraco, exausto, faminto e cheio de dores por todo o corpo, mas com invencível sede de viver, caminhou devagar pelas ruas adjacentes. As dores dos ferimentos aumentavam a cada passo. Já era noite fechada quando chegou ao hospital. À porta do pronto-socorro, desmaiou.

Acordou ao amanhecer. Os primeiros raios do sol penetravam pelo vitrô e a luminosidade o incomodava. Passou a mão pela face e sentiu a cabeça latejando. O braço esquerdo estava com curativo à altura de onde a bala havia penetrado. Com os dedos sentiu a cabeça enfaixada da testa até a nuca.

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Na minha primeira passagem matinal pela enfermaria, aproximei-me da cama do homem com cabeça enfaixada. Na prancheta aos pés do leito, não havia nome, apenas um ponto de interrogação seguido da palavras “identificar” .

— Acordou? Com se sente?

— Sim, estou bom.

— Ainda bem. Temos de saber quem é você. Está sem documento, sem dinheiro, nada.

— Cadê minhas roupas?

— Estão aí, nesta cadeira ao lado.

— Quero levantar. Preciso ir embora.

— Ei! Calma aí! Você tem de repousar. Não está em condições de...

O homem me interrompeu, dizendo:

— Tenho de ir já. —

Notando a determinação, ajudei-o a levantar-se e troar de roupa. Calçou os sapatos e deu alguns passos.

— Tudo bem. Estou legal. — Disse o estranho.

Tomei-o pelos braços e o levei à portaria do hospital.

— Sente-se aquí. Vou falar com a secretária. Ela vai te chamar daqui a pouco.

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Fingindo obediência, Miro sentou-se. Olhou para todos os lados. A portaria regurgitava de gente entrando e saindo. A enfermeira que o trouxera até ali dirigiu-se à secretária, que lhe lança um olhar rápido e desinteressado. Viu a enfermeira voltado à ala da enfermaria.

Sem se preocupar, Miro levantou-se, entrou no meio das pessoas e saiu do hospital.

E agora? Se apareço na Licéia, ela e a Gringa vão levar o maior susto. E os bandidos, quando souberem que voltei, vão me procurar de novo. Mas tenho de pegar dinheiro e meu revólver. E o lençol.

Fez o percurso do hospital à casa de Licéia por ruas sem movimento. Entrou pelos fundos sem ser visto. Descansava por um instante, quando Licéia entrou no quarto.

— Cruzes! É um fantasma! Deus que me livre! — Ela gritou.

— Cala a boca! Fica quieta. Não sou nenhum fantasma. Tou vivo. — Miro falou baixo.

— Mas eu vi você morto. Juro que vi.

— Estava fingindo. Agora, fica quieta, não faz alarde. Cadê a Gringa?

— Foi no mercadinho.

— Fala pra ela que não morri e que qualquer dia desses estou de volta.

Em movimentos precisos, Miro pegou um maço de notas de uma gaveta e o revólver de outra.

— Me faz um sanduíche que estou com muita fome. — Pede à Licéia.

Ela saiu, rumo à cozinha. Ele não queria dar explicações sobre sua saída.

Miro retirou um lençol da cama, que dobrou, fazendo um volume pequeno.

Saiu como entrou, atravessando o quintal e sumindo pelo beco.

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Na manhã seguinte, dois cadáveres foram encontrados na cidade. Carlão Cintra estava estendido na cama de seu quarto. O sangue empapava os lençóis, escorrendo de um tiro certeiro na testa. Os olhos abertos mostravam os momentos de intenso terror vivido nos últimos instantes de sua vida.

Zeca Trintaeoito foi encontrado estendido num terreno baldio. Igualmente morto por certeiro tiro na testa. E mesmo olhar de pavor estampado nos olhos.

Ninguém viu Carlão ser assassinado. Mas algo foi visto quando Trintaeoito recebeu o tiro fatal.

— Eu ví, juro que vi. — Falava o rapaz, com a face branca de terror. — Foi um fantasma que matou. O corpo estava enrolado num lençol branco.

— É isso mesmo! — Confirmava a namorada, soluçando histericamente — E a cabeça tava toda enfaixada, que nem o fantasma de uma múmia.

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Minha participação nesta tragédia é pequena. Como enfermeira do hospital, tratei por alguns momentos, daquele desconhecido que, mais tarde, vim saber tratar-se de Miro Moreno. O resto é lenda. Um mistério que perdura, sem explicação e sem finalização, pois o tal de Miro jamais voltou. Pelo menos é o que dizem...

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Ajudei minha mãe a preparar o corpo de Carlão Cintra, porque ela era, na cidade, a única pessoa que fazia este tipo de serviço. Embora conhecido das prostitutas, não teve sequer uma coroa de flores para o seu funeral.

Também o pistoleiro conhecido por Zeca Trntaeoito não teve qualquer homenagem. Foi enterrado como indigente.

A morte tornou igual Carlão e Zeca, um poderoso e o outro, um João-ninguém que nem nome tinha. Diferentes em poder, ambos criminosos e completamente iguais debaixo da terra.

Que Deus os tenha em sua complacência.

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Beatriz era enfermeira e ajudou mãe no preparo dos defuntos para serem enterrados.

Os dois foram enterrados ao lado do local (cova?) onde Miro tinha sido enterrado, dias antes.

No velório só compareceram as putas e não foi homenageado com coroas, pois ninguém fazia coroas para esse tipo de gente.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Conto # 513 da Série 1OOO Histórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/11/2014
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