506-NO ANO DO PORCO-

O senhor Mingoro Shamiro entrou no Ano do Porco com muita precaução. Sabia que deveria ter cuidado com a saúde naquele ano, por isso a atenção consigo mesmo redobrou. Não que isso fosse modificar muito a rotina da vida: levantar-se antes do sol nascer, fazer as orações, tomar o chá dentro do ritual budista e dirigir-se para a peixaria, onde passava praticamente o dia todo, atendendo a freguesia, recebendo os pescados frescos, distribuindo-os nos balcões-frigoríficos ou nos congeladores. Ao entardecer, rareada a clientela, voltava ao lar, onde a mulher Shizuka o esperava, com a toalha, a roupa limpa e os chinelos, para o banho. Após o jantar, ficava na sala lendo os pergaminhos com ensinamentos dos mestres espirituais e recolhia-se cedo ao leito.

Nos fins-de-semana, dirigia-se ao templo budista, não distante da residência, para as orações e a meditação. Shizuka o acompanhava, calada e respeitosa.

Uma rotina que satisfazia a ambos e difícil de ser melhorada, pois, para Mingoro, estava próximo à perfeição.

Porém, o destino tem seus meios e modos insondáveis e impossíveis de serem imaginados e evitados. Domingo pela manhã, um temporal desabou sobre a cidade, enquanto Mingoro e Shizuka estavam no templo. À saída, sob a chuva, observavam o estrago causado pela tormenta: árvores arrancadas, ruas inundadas, postes tombados e a fiação da rede elétrica arrebentada.

Mingoro levou a mulher em casa e avisou-lhe

— Tenho de ir à peixaria para ver se a energia elétrica está cortada. Tenho muito peixe nas geladeiras. Podem se estragar.

Jamais chegou à peixaria. Ao atravessar a rua, um carro o atropelou. Desmaiado, foi socorrido e levado ao hospital.

Shizuka estava à cabeceira do marido, ao anoitecer, quando ele abriu os olhos. Todo entubado, a cabeça enfaixada e incapaz de se movimentar, tentou falar com a mulher. Inutilmente. Havia sofrido uma pancada séria na cabeça e os exames mostravam uma concussão cerebral.

Durante toda a noite, Mingoro parecia delirar. Movimentava a cabeça de um lado para o outro, e tentava falar. Apenas sons roucos saiam de sua boca. Nesses momentos, Shizuka se aproximava, colocando o ouvido junto à boca do marido, tentando entender o que o marido queria dizer. Entre os sons inarticulados, pensou ouvir tchi-tchi, que significa papai.

Estaria Mingoro delirando? — perguntou-se Shizuka, — Pois o pai havia falecido há mais de 10 anos. Vivera com eles os últimos anos de sua existência e morrera com quase noventa anos.

Ela lembrou-se do choque que fora para o marido a morte do pai. Ficou abalado e teve um comportamento muito estranho: não quis que ninguém o acompanhasse quando levou o corpo do velho para o cemitério. Foi muito doloroso vê-lo colocar o caixão numa camioneta coberta, alugada, que ele mesmo dirigiu. Ele e o pai. Os dois, rumo ao local do repouso definitivo do velho.

Mingoro tinha momentos de consciência, alternados com outros, inconscientes, entremeados por doloridos clarões de luz branca. Lembranças recentes e remotas misturavam-se em seu cérebro danificado. A preocupação com a falta de eletricidade na peixaria levava seu pensamento para as últimas horas de vida do pai.

Os relâmpagos brancos estouravam dentro de sua cabeça. As imagens iam e vinham, sem qualquer relação ou coerência.

ZAPT! Um relâmpago, uma fincada de dor. Por acreditar na promessa do pai, que um dia voltaria do além, com vida, fez o que fez. A tarde sombria na qual colocara o pai no caixão para o enterro.

Confusão. As paredes brancas da peixaria se confundiam com o mármore de túmulos. Os peixes estavam por toda parte.

TRANK! Um raio e um som cavo, de trovão. O pai, em posição fetal, repousa dentro de um enorme recipiente brilhante.

Escuridão.

De madrugada, Mingoro entra numa zona de inconsciência e morre ao amanhecer.

Na peixaria, a falta de energia elétrica, por cinco horas seguidas, desencadeou um processo de degradação dos pescados. Quando voltou, alguns circuitos ou fusíveis não agüentaram a carga e o freezer maior não foi re-ligado.

Na manhã de segunda-feira, ninguém abriu a peixaria. Entretanto, o fedor exalado do recinto era sentido a grande distância. Pelo meio-dia, a polícia e o corpo de bombeiros foram chamados. O mau cheiro era, então, insuportável. Não só pelos peixes apodrecidos nos balcões-frigoríficos como pelo macabro achado no freezer grande.

O enorme congelador, com duas portas na parte superior e uma na parte inferior, estava fechado à chave. Pelos vidros das portas superiores, notava-se a grande quantidade de peixe ali estocada. Mas não se conseguia ver o compartimento inferior. O fedor que emanava da parte de baixo fez com que os policiais tampassem as narinas, enquanto, usando chaves-mestras e grampos, pelejavam para abrir a porta de metal.

Ao ser escancarada a porta, ouviram-se palavrões e expressões de surpresa e de nojo. No fundo do compartimento, em posição encolhida, mais parecendo um feto totalmente formado, estava o corpo mirrado de um homem pequeno, cabelos brancos e feições orientais.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 29 de julho de 2008

Conto # 506 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/11/2014
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