VIVENDO E MORRENDO PELA ETERNIDADE
 
Sentado na beira de uma campa, o Dr. Neves observava o vai e vem das pessoas andando pelas ruas estreitas do cemitério, carregando braçadas de flores e montes de velas de todos os tamanhos e cores. Perdera a esposa e um filho em um acidente cerca de dois meses atrás e desde então sua vontade de viver também se fora. Era a primeira vez, depois do enterro, que ele vinha a essa cidade dos mortos, que têm suas ruas traçadas como se fosse uma cidade de vivos. Um sorriso amargo aflorou nos seus lábios ao pensar na ingenuidade das pessoas que depositavam montanhas de flores nos túmulos e acendiam aquele monte de velas, cujo sebo derretido escorria pelas lajes e provocava aquele cheiro nauseabundo que lhe revirava o estômago.
"Quanta besteira," pensava ele. "Quem morreu, morreu. Vira comida de vermes e um monte nojento de ossos, que depois são jogados num ossário, junto com milhões de outros, sem distinção de espécie alguma." Desaparecem assim todas as diferenças, todas as distinções, todas as identidades, restando apenas o que realmente somos neste grande acidente cósmico que é o universo: uma mera ilusão de ser."
Afinal, no ossário daquele cemitério estavam os ossos dos seus ancestrais, os seus amigos, as personalidades que fizeram a história na cidade, todos aqueles que, de alguma forma, um dia pensaram que eram “alguém”. E agora, ninguém conseguiria distinguir quem fora quem, a menos que um teste de DNA fosse feito. "Que triste fim para a arrogância humana," pensava o Dr. Neves.

E ali, logo estariam também os ossos da sua querida esposa e seu amado filho, mortos em um estúpido acidente de carro, um acontecimento fortuito e imponderável, que se abatera sobre ele e ceifara a única coisa em que acreditava e amava. Sim. A vida era mesmo uma coisa fútil, fugaz, vazia e sem sentido.
Em Deus ele nunca acreditou. Religião também não tinha. Ele via Deus como uma mera ilusão criada pela mente do homem para dar a ele uma última esperança quando tudo o mais parece perdido, ou então para justificar e conferir sentido a uma existência que não tem um porquê de existir. Deus, para ele, era uma só uma resposta apropriada para a ignorância que temos sobre a nossa origem, a nossa razão de existir e o destino de toda a experiência humana, que no fim sempre termina daquele jeito, perdida em meio a um ossário.
“Deus” dizia ele, para quem quisesse ouvir, “ era uma muleta que os homens inventaram para se escorar na sua impotência. Uma resposta fácil para o mistério que cercava a origem, a finalidade e o destino da vida humana sobre a terra. Como ninguém sabia dizer de onde viemos, porque existimos e o que acontece depois que morremos, inventou-se uma resposta: Deus. Deus é a nominalização de um processo que a mente humana jamais conseguirá entender.” 
 
Ele também, logo estaria ali, numa daquelas covas, pensou. Aliás, depois da morte de Suzana, sua esposa, e do seu filho Paulo, jovem bacharel, que dentro em breve estaria assumindo o seu lugar no escritório de advocacia que ele construiu ao longo de uma vida de trabalho árduo e honesto, essa era a coisa que ele mais desejava. Que sua existência terminasse o mais breve possível. A vida não tinha mais graça nenhuma para ele. Nem as láureas da profissão, o respeito dos colegas, a admiração dos alunos na faculdade onde ensinava, nada disso o emocionava mais. Nada disso valia a pena. Quando mais depressa terminasse tudo, melhor.
Para o Dr. Neves, a vida parecia ser um acontecimento fortuito que o universo tinha produzido num momento de descuido. Era assim como um feto produzido em uma relação sexual descomprometida, onde os parceiros descuidaram da proteção anticoncepcional. Sim. Pelo menos naquele momento, em que a amargura de viver e sentir lhe parecia insuportável, o ser humano, para o Dr. Neves, era um feto que a natureza não conseguira abortar e nascera, crescera e se multiplicara, para se tornar, ao mesmo tempo, o seu orgulho e o seu algoz.
Por isso, nada daquilo que as pessoas tinham vindo fazer no cemitério tinha qualquer sentido ou finalidade. Dias dos Finados. Que coisa mais idiota. Ele mesmo só viera ao cemitério por mero enfado. Não estava ali para prantear seus mortos queridos. Afinal, sua crença era que a morte tudo cancela, tudo acaba, tudo homologa. A morte era a sentença final do processo chamado vida, sem possibilidade de recurso.
Viera ao cemitério por que não se sentiria bem se não viesse. Porque ele se sentia culpado por estar vivo enquanto sua esposa e filho estavam mortos. Por que deixou que eles fossem sozinhos naquela viagem de férias? Porque achou que era tão importante aquela audiência, que ele não podia mandar um assistente?  E assim, mandou a família na frente, e ele iria depois da audiência. Se tivesse ido junto então ele também estaria morto e não carregaria, como agora, o peso de uma existência que parecia não ter mais nenhum sentido.
Aquelas pessoas, indo e vindo, pelas ruelas estreitas do cemitério, com braçadas de flores e maços de velas na mão... Pareciam que estavam indo e voltando de visitas a pessoas vivas. As velas e as flores eram como presentes que se levam quando visitamos amigos e parentes em datas festivas. As pessoas, no Dia de Finados, se comportavam como se estivessem no natal ou no reveillon. Ou no dia do aniversário do morto, quando as lembranças são todas para ele. Natal, passagem de ano, dia dos namorados, dia das mães ou dos pais, tudo comércio, nada mais do que mídia comercial criada por marqueteiros para vender os seus produtos. Rituais inúteis que só servem para iludir a nossa sensação de importância, o nosso anelo pela perenidade...
 
─ E aí, amigo. Admirando essa farra toda?─ disse uma voz ao seu lado.
Ham? – Respondeu o Dr. Neves, meio assustado, porque não havia percebido que alguém havia se colocado ao seu lado na laje do túmulo onde ele estava sentado.
─ Parece que você não gosta muito desse costume de homenagear os mortos, não é? ─ perguntou o homem que havia se sentado ao seu lado.
─ Porque o Senhor está dizendo isso? ─ perguntou o Dr. Neves, meio desconfiado.
─ Está escrito no seu rosto. Você olha para o povo, indo e vindo com suas flores e velas, e seu semblante é de pura amargura e desprezo por tudo isso.
O Dr. Neves franziu a testa ao receber a observação. Mas logo se recompôs e meneou a cabeça em sinal de concordância. Parecia que o estranho tinha lido a sua mente.
─ É. O senhor tem razão. Eu acho tudo isso muito deprimente. De fato, eu estou mesmo muito amargurado por que perdi minha esposa e um filho recentemente. E não acredito na existência de outra vida, sobrevivência do espírito, ressurreição, todas essas bobagens que as religiões inventam para nos consolar da mesquinharia da nossa existência.
─ Realmente, você é muito amargo e cético, meu amigo. Então não acha que existe vida após a morte?  Acha que tudo acaba quando a gente morre?
─ Eu não tenho a menor dúvida ─ respondeu o Dr. Neves. ─ Por isso ─ continuou ele ─ acho tudo isso uma grande besteira. Quem morreu está morto e acabado. Pouco importa que se lembrem dele ou não. A maioria dessas pessoas que está aí, colocando flores nos túmulos e acendendo velas para os defuntos, estão fazendo isso mais por desencargo de consciência do que por acreditarem nessas bobagens. Talvez devam alguma coisa para o defunto, ou queiram, de alguma forma, fazer as pazes com ele. Estão fazendo para o morto o que deveriam ter feito quando ele estava vivo.
─ É ─ disse o estranho, com um sorriso ambíguo. ─ Em alguma coisa você está certo. Muita gente aqui está mesmo pagando dívida para com os defuntos. Mas você está realmente muito amargo. As coisas não são assim como pensa. A gente precisa acreditar em alguma coisa. Aliás, a vida não tem sentido se a gente não acreditar.
─ Nisso o senhor tem toda razão ─ disse o Dr. Neves. ─ É exatamente o que estou sentindo agora. Uma total inapetência para viver. Se quer mesmo saber, bem que eu gostaria de ficar por aqui, não ter que voltar para a minha casa vazia, para aquele escritório sem graça, para todas aquelas coisas que eu antes fazia com tanto prazer e que agora só me trazem cansaço e aborrecimento.
─ Meu amigo ─ disse o estranho, tocando no ombro do Dr. Neves ─ a vida é uma centelha de energia que se manifestou um dia e iniciou uma eterna trajetória pelo universo. Você só pode fazer duas coisas com ela. Uma é aceitar fazer parte dessa trajetória, a outra é renunciar a ela. São as duas únicas opções que a gente tem. Mas nenhuma delas depende da nossa escolha. É como enfiar a mão dentro de um chapéu onde existem duas sentenças escritas: sim ou não. Tirar um dos dois significa poder viver para sempre ou morrer eternamente.
─ Não entendi ─ respondeu o Dr. Neves.
─ Eu sei. Eu também não sabia. A gente só entende isso depois que morre ─ disse o estranho, com um sorriso misterioso. ─ Acho que você está realmente precisando de ajuda. Eu vou ajudá-lo ─ completou.
Então tirou do bolso do paletó dois objetos e mostrou-os ao estupefato Dr. Neves. Um era um cartão no qual estava escrito: CENTRO ESPIRITA ANTÔNIO LIMA DE BARROS. Nele havia um endereço e o horário das seções. O outro era um revólver carregado.
- Se você quiser conversar, meu amigo- disse o estranho, poderá me encontrar nesse endereço. Então eu lhe explicarei melhor como tudo isso funciona. Se não... Mostrou-lhe o revólver, que colocou em cima da laje. 

─ Seja o que for que você escolher, meu amigo ─ completou o estranho ─ saiba que será para sempre. Se você escolher a morte pelas próprias mãos e ela vier, você continuará morrendo por toda a eternidade. Se escolher viver e esperar que a morte venha naturalmente, então viverá também por toda a eternidade. Cada escolha que a gente faz na vida gera um universo que se perpetua para todo o sempre.
O Dr. Neves ficou mudo de espanto. Não sabia o que dizer. E também sem qualquer ação. Sua lingua paralisou-se e sua mente teve um lapso de fadiga. Desligou como se a energia que o acionava tivesse sido cortada subitamente. Foi só um fragmento de instante, mas o tempo suficiente para ele sentir que havia percorrido uma eternidade. Quando se recuperou daquele que parecia ter sido um pequeno apagão neurológico, ele percebeu que estava sentado, sozinho, sobre a laje de um túmulo. Em cima dela, ao seu lado, havia um cartão e um revólver. Então não fora um sonho, nem tivara uma alucinação.Tocou, maquinalmente, na arma e sentiu-a queimar nas suas mãos. Largou-a imediatamente como se fosse uma brasa. Pousou, em seguida, os olhos sobre o cartão e uma conexão, rápida como um relâmpago que ilumina um céu sombrio, se formou na sua mente. Olhou simultaneamente para o cartão e para a placa de bronze fixada na laje: nela estava escrito: Antônio Lima de Barros, 1939 + 2012.
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A opção que o Dr. Neves escolheu fica por sua conta, caro leitor. Mas saiba que, seja qual for a alternativa que você escolher para ele, você poderá estar condenando-o a repeti-la por toda a eternidade.

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Nota: A idéia da Imortalidade quântica é uma especulação científica bastante intrigante feita pelo físico teórico Max Tegmark em 1997 (atualmente ele ensina física teórica no MIT - Instituto Tecnológico de Massachusetts). Essa especulação é baseada na teoria da multiplicidade de universos, proposta por Hugh Everett em 1957. Essa teoria, numa explicação bem simplificada, pressupõe que uma partícula de energia (um feixe de fótons), a cada vez que é acionada, apresenta duas possibilidades de ocorrência, conforme o giro do seu spin (o movimento dos fótons) esteja em sentido horário ou anti-horário. Cada possibilidade tem 50% de chance de ocorrência. Mas cada ocorrência, uma vez efetivada, continua se repetindo eternamente, porque a cada vez que ela ocorre, sempre gera duas possibilidades possíveis. Assim, imagina-se um homem sentado em frente á uma arma apontada para sua cabeça. A arma pode disparar ou não. Se disparar e ele morrer, essa possibilidade se repetirá eternamente. A mesma coisa acontecerá se não disparar. O não disparo continuará a ocorrer eternamente, não importa quantas vezes o gatilho for acionado. Teóricamente, o homem poderá estar morto e vivo concomitantemente, e assim continuará pela eternidade toda. Assim, no mundo das realidades quânticas, a imortalidade, tanto quanto a morte, são fenômenos possíveis e consentâneos, aos quais estamos igualmente sujeitos.