A Carta de Odete R Falconi.

“Meu caro amigo Pedro, preciso lhe falar da minha angustia, da minha dor e tristeza. Não confio em mais ninguém, ao não ser em você. Sinto que minha sanidade mental é uma ampulheta chegando ao seu fim. Com a areia escorrendo velozmente de uma âmbula a outra. Perco-me no obscuro labirinto que minha mente se transformou. Enlouqueço a passos largos e conjecturo que ‘eles’ saibam disso, como num filme que todos já viram; menos eu. Déjà vus me perseguem por todo o dia. Vivo numa espécie de novela de terror onde interpreto uma personagem de mim mesma. Escuto vozes tramando contra mim, querendo minha alma. A sensação que me acompanha e me amedronta nestes dias que, sei que sim, sucedem ao meu definitivo colapso, é a de um homem traído, que fareja canalhices no ar, sem nenhuma certeza, somente com as malditas suspeitas, enquanto todos comentam do seu infortúnio. No entanto, meus chifres não foram colocados por nenhum namorado, marido ou amante e sim pela vida. Entende? Foi a vida que me corneou. Foi a vida que me traiu. Ela, a quem sempre dispensei o meu melhor, não me quer mais. Essa vagabunda promíscua, sedutora e irresistível. A vida zomba de mim, e eu me encolho, me escondo, me afogo em elucubrações medonhas. A velocidade desgovernada de meus pensamentos transporta-me para caminhos soturnos dentro de meu cérebro. Percorro uma estrada de mão única para o total desconhecido. Sei que não há volta. E ‘eles’ sabem disso também, e riem de mim escancaradamente, descaradamente.

Já não saio de casa a algum tempo, meu caro amigo, mas, sei que ‘eles’ se aproximam de meu lar lentamente e em silêncio. ‘Encará-los’ torna-se cada vez mais difícil sem querer ‘agredi-los’, ‘feri-los’ mortalmente, ‘esmaga-los’, ‘destroçá-los’ como a insetos embaixo dos meus sapatos. Todavia, ‘eles’ são muitos, e são frios, cínicos, monstruosos, e não são daqui. E se escondem por trás de olhares ternos, sorrisos sonsos e apertos de mãos frouxos. ‘Eles’ estão por todos os lugares, me rodeiam, me observam, perscrutam-me e querem o meu mal. Sabem de todos os detalhes de minha vida, meus segredos, minhas manias, minhas perversões. Sufoco-me com suas presenças inquisidoras, disfarçadas de apego. ‘Eles’ estão incrustrados nas pessoas em que convivo, sussurrando em seus ouvidos, manipulando-as, dominando-as, possuindo-as. E pretendem fazer o mesmo comigo. Querem cercear minha liberdade, minha razão. Levar-me com ‘eles’.

Estou cansada, meu amigo. Meus argumentos sensatos se foram levando junto minha resiliência. E pressinto que meus dias por aqui estão chegando ao fim. Tenho sonhos perturbadores onde sou catapultada para um lugar sombrio e fétido. A insanidade se aproxima como um guepardo. Meus pensamentos se distorcem e liquefazem, formando uma pasta ininteligível, uma sopa podre, onde meus neurônios se alimentam com voracidade, para segundos depois vomitarem deturpações dentro de minha cabeça adoentada. Mas, isto tudo é culpa ‘deles’, meu amigo, exclusivamente ‘deles’. Tenha certeza disso. Sou acometida de visões sinistras, em que me despedaço enquanto caminho. Primeiro são as pernas que fraquejam, e partem-se, fazendo-me ajoelhar, depois meus braços caem de meus ombros tal qual uma fruta podre despenca de uma árvore, então minha cabeça tomba do meu pescoço, e todas as partes do meu corpo explodem, ocasionando um rio de sangue que banha as ruas, contaminando todos ao redor com meu sangue corrompido. E ‘eles’ regozijam-se com esta cena deplorável.

Agora vou me despedindo, meu amigo. Despedindo-me para sempre. ‘Eles’ chegaram, estão aqui. Peço que tenha cuidado e proteja-se ‘deles’, caso isto seja humanamente possível, creio que não seja, pois, você será o próximo, meu grande amigo.

Adeus.

Com carinho, Odete R. Falconi.”

Esta epístola macabra, redigida para mim, Pedro, foi encontrada pousada no criado-mudo do quarto de dormir de Odete, em seu apartamento num condomínio de luxo na zona sul de nossa capital. Ela nunca foi encontrada. Mas, sabemos que se foi. Não há dúvidas quanto a isso.

No local do crime, seu quarto, imensas manchas vermelhas, já secas, que posteriormente foram confirmadas como o sangue de Odete, que já havia coagulado há quase uma semana, segundo os peritos que investigaram o suposto assassinato, maculavam o lençol branco que forrava o colchão, as paredes e o teto do leito. No entanto, nenhum vestígio do corpo de minha querida amiga foi obtido. Nenhuma digital foi encontrada além da dela mesma. Não houve arrombamento, nem em portas ou janelas. As câmeras de segurança não gravaram nada suspeito. Os vizinhos não ouviram qualquer barulho, ou gritos de socorro. Frascos de remédios para depressão e muitas garrafas vazias de uísque estavam espalhadas pelo cômodo. Nada foi roubado. Suas joias, seu dinheiro, as obras de arte que ela colecionava, tudo que havia de valor no recinto, estavam incólumes em seus lugares.

Fui chamado para prestar depoimentos logo que a carta fora descoberta. Eu era o único amigo dela. Não haviam parentes próximos para serem avisados, ela era uma mulher solitária. Culpo-me por ter sido negligente com a nossa amizade. Nunca supus que ela estivesse vivendo momentos tão terríveis em sua vida. Se ao menos desconfiasse de sua aflição teria sido um amigo mais presente do que realmente fora.

Pouco depois do inquérito policial aberto, fui oficialmente descartado como suspeito. Dez meses após o desaparecimento de minha amiga o caso foi encerrado por falta de provas. E até hoje ninguém faz ideia do que aconteceu. Um completo mistério.

Sempre acreditei que um amante desconhecido a houvesse matado durante algum jogo sexual extravagante que Odete era habituada, e não sabendo o que fazer, teria esquartejado o corpo e o enterrado em algum lugar ermo, que não houvera sido localizado. Odete era uma mulher triste, sim, porém, de apetite sexual contumaz e perverso. Senti em minha própria pele suas bizarras formas de amar. Meu casamento quase termina em decorrência disso. Em muitas ocasiões ela levara para sua casa homens desconhecidos para saciar sua fome excêntrica de prazer. Eu já havia a advertido, inúmeras vezes, que ela tivesse mais prudência e controlasse sua libido. Ela nunca me ouviu. E, talvez por isso, tenha morrido.

Entretanto, nada disse sobre a vida secreta de Odete para os policiais, e com o passar do tempo e nada de consistente vindo à tona, acabei aceitando a morte de Odete como um enigma indecifrável e pavoroso.

Este estranho episódio sucedeu-se há dois anos. Nos primeiros meses, não duvidei um minuto da insanidade que abocanhara Odete em seus últimos e delirantes dias, a carta confirmava isso. E não levei em conta o que ela prenunciou em suas últimas linhas. Hoje sei que ela estava certa. E a angustia me domina. “Eles” me encontraram, e me seguem, e me observam, e tramam contra mim...