O Talismã do Bom Doutor

No corredor do hospital muitas pessoas de aspecto horrível, doentes e enfermos se agrupavam, gemendo, tossindo, sentindo dores atrozes. Alguns estavam sentados em bancos rudimentares, enquanto outros, muitos outros, de condições de saúde mais severas, jaziam em macas ou mesmo pelo chão à espera de cuidados médicos que demoravam, ou mesmo não vinham.

O médico de plantão estava atrasado para o atendimento. Ele deveria ter chegado há quatro horas atrás. Muitos dos enfermos estavam aguardando a noite inteira pelo privilégio de ser atendido no hospital, mas o médico não vinha, demorava demais.

...

O doutor Brauzeo estacionou seu carro, uma BMW, no estacionamento do hospital. Estava de bom humor, pois passara as ultimas horas no apartamento de sua amante, uma jovem que sabia como agradar um homem de meia idade. Estava passando pela crise dos quarenta, e como todo bom profissional bem sucedido nesta faixa etária, arranjou uma amante muito mais jovem, e sentia prazer em retribuir-lhe com certos luxos.

Quando entrou pelo corredor do hospital onde deveria estar atendendo há mais de quatro horas, deparou-se com o quadro dantesco dos enfermos que não tinham recursos para pagar por um atendimento particular. Eram muitos, de diversas idades, mas parece que havia muitos velhos de chinelos de dedo, escarrando. Ele logo procurou a enfermeira para se atualizar quanto à situação. Depois de cumprimentar alguns pacientes com um simples aceno de cabeça, sem olhar nos olhos de ninguém, ele fica de frente para o balcão da enfermeira que lhe passa a lista de pacientes. Ele se espanta com o numero excessivo dos que aguardam por uma palavra sua como especialista médico.

- Humm, me mande os casos mais graves enfermeira, tenho um compromisso logo mais e vou atender apenas cinco pacientes hoje.

A enfermeira, como fiel escudeira, apenas gesticula e concorda com o doutor Brauzeo, logo se postando diante dos necessitados enfermos e escolhendo os casos que ela julga serem de maior gravidade.

Instalado em seu consultório, Brauzeo atende apenas cinco pacientes como já havia determinado, um após o outro. Enfim, depois de duas horas, começa a recolher seus objetos médicos e se prepara para sair, quando uma criatura de aspecto horrível, uma velha sem dentes e olhos arregalados, com a pele tão enrugada que parecia um pergaminho, entra apressada em seu consultório. Ele a olha assustado e com olhar clinico por alguns segundos, calculando sua idade em aproximadamente oitenta anos, e trata de chamar a segurança.

- Lamento senhora, mas acabei o atendimento por hoje, assuntos mais sérios requerem minha presença em outro lugar. Mas se tiver a bondade de voltar aqui na semana que vem, posso tentar ajudá-la.

A velha, fitando-o sem parar, esboça um sorriso, e pelos seus gestos parece proferir algum encantamento próprio de uma cigana.

- Arran..., senhora... - começa Brauzeo, já se sentindo incomodado pela presença da cigana. – Se me procurar no meu consultório particular, tenho certeza de que poderei ajudá-la com seu problema de saúde, seja qual for.

- Não, não estou aqui para procurar atendimento da sua ciência artificial. – A velha começa a dar risadinhas como se tivesse dito alguma coisa engraçada. Você é que está doente.

Puxando a mão direita do doutor, a cigana deposita um objeto nela. Aperta e começa a dar gargalhadas fazendo Brauzeo recuar diante de seu mau hálito, até que dois seguranças chegam e a arrastam para fora, enquanto o doutor permanece como que em transe.

Depois que a velha foi embora, o doutor Brauzeo consegue suspirar e se acalmar de sua presença chocante. Ao abrir a mão se depara com um medalhão de bronze com um desenho gravado em relevo. Ele aproxima o objeto mais para perto de suas vistas e passando o dedo consegue identificar o símbolo da medicina, o cajado de Hermes com duas cobras enroscadas e asas na extremidade superior. Sem dar mais importância ao objeto, joga-o na lixeira e, terminando de arrumar seus pertences, vai embora do hospital.

...

As horas parecem passar devagar quando, depois de atender em seu consultório particular por duas horas inteiras, ele retorna ao apartamento de sua amante. Deveria ter permanecido no consultório por pelo menos mais duas horas, mas alguma coisa o incomodava. Talvez ainda se lembrasse da visita da velha. Agora só queria saber do conforto e do aconchego de sua jovem amante.

Ele chega de mansinho tentando fazer uma surpresa, abre a porta sorridente e se aproxima do quarto, onde se depara com sua amante, Suely, deitada aos abraços com um jovem vigoroso. Por instantes que pareceram intermináveis ele fica aturdido, sem saber o que fazer ou no que acreditar. Em seguida, para chamar a atenção do casal de amantes, ele pigarreia, só para ouvir o espanto dos dois e as desculpas de Suely. Sem dizer uma palavra, ele parte, voltando para casa. No meio de sua jornada recebe uma ligação de celular, mas quando vê o nome de Suely no telefone, o joga fora com raiva.

Uma vez em casa é recebido por sua esposa sentada no sofá e com cara de poucos amigos.

- Muito bem doutor, que bom que resolveu voltar para casa, tenho uma ótima noticia para você. Quero o divórcio, já. E fique sabendo que contratei o melhor advogado da cidade, não vou permitir que fique com nada. Você está entendendo? Nada, seu cafajeste.

- Márcia, espere, não é o que você está pensando. Quem colocou isso na sua cabeça?

A esposa então solta um grito de fúria.

- Você pensa que pode entrar e sair desta casa quando bem entende, sem que ninguém desconfie de nada. Pois bem, contratei um detetive, que o seguiu por duas semanas, eis as provas. – e dizendo isto ela atira um envelope que Brauzeo logo percebe estar cheio de fotos comprometedoras. – E para começar quero que você suma desta casa. Junte suas coisas agora mesmo seu sem vergonha.

...

Num quarto de hotel, Brauzeo se atira na cama e se põe a pensar nos últimos acontecimentos, quando sente uma coisa dura em seu bolso. Vasculhando com cuidado ele logo se depara com o medalhão que a velha lhe deu. Ele poderia jurar que o tinha jogado fora, então o joga no lixo do hotel e, esfregando as têmporas, se põe a beber uma dose de uísque. Até que adormece.

No dia seguinte, ele acorda com o telefone do quarto tocando e uma dor de cabeça dos infernos. Era a enfermeira do plantão perguntado se ele estaria disponível para atender no hospital. Só então é que o doutor Brauzeo percebe, olhando em seu relógio, que já passa das duas horas e que ele tinha plantão no hospital pela manhã.

- Ah, tudo bem... eu bem que mereço um dia de folga. – e se põe a dirigir até o seu consultório particular.

Quando estaciona próximo ao consultório, duas figuras suspeitas se aproximam, e encostando um revólver em seu abdômen, começam a lhe ordens.

- E aí playboy, a parada aqui é sinistra, vai dando logo a chave do carro aí.

Brauzeo obedece. Entrega devagar as chaves de seu BMW, e enquanto um dos ladrões senta-se ao volante o outro acerta um golpe forte na cara de Brauzeo, em seguida dando-lhe uma estocada com uma faca no estômago.

...

O doutor Brauzeo acorda sentindo dor no rosto e no abdômen. Olha ao redor e percebe que está no hospital. Tenta gritar para chamar alguém, até que uma enfermeira logo aparece.

- Ah, o senhor já está melhor... ainda bem, não sabíamos mais o que fazer. Alguém o encontrou caído na rua, seminu, apenas com suas cuecas e um objeto.

Brauzeo olhou para o lado e reconheceu o medalhão da velha em sua cabeceira, arregalando os olhos.

- Infelizmente não havia identificação nenhuma com o senhor, e tivemos que operá-lo imediatamente. Mas tudo vai ficar bem agora.

O doutor Brauzeo tenta articular algum som, falar alguma coisa, mas tudo que sai são sons rudimentares, e ele percebe que perdeu boa parte dos dentes no assalto. Esforçando-se um pouco mais ele consegue perguntar quanto tempo ficou ali.

- Ah, apenas duas semanas senhor. Mas me diga: O senhor tem algum convenio? Um plano de saúde? Sabe, estamos com certa deficiência de quartos aqui no SUS, e... bem... se o senhor já está recuperado...

Ele entende tudo o que a enfermeira quer dizer, e levantando-se, se veste com o que encontra a sua disposição, alguns andrajos recolhidos em campanhas beneficentes pelo hospital, e, após olhar com raiva para o medalhão, o joga fora novamente.

Agora na rua, sem saber para onde ir, sem seus cartões de crédito e sem coragem para ligar para sua esposa, ou para sua ex-amante, Brauzeo adormece no banco da praça, apenas para acordar no dia seguinte despertado por um policial aborrecido.

-Nesta área é proibido vadiar. Vá embora daqui antes que eu te acerte com meu cacetete. Circulando, circulando.

Brauzeo fica indignado e tenta discutir com o guarda, mas o som que sai de sua boca sem dentes parece cômico, e o policial apenas dá risada do “pobre bêbado”.

O doutor, agora não tem para onde ir, e sente fome. A esta altura sua esposa já conseguiu na justiça todos os seus bens. Ele se põe a perambular até encontrar um albergue onde servem sopa para sem-tetos.

Depois de comer ele começa a sentir dores atrozes no abdômen. Ele retorna para o hospital e, de maneira humilde, mesmo que com muita dor, espera horas a fio até ser atendido.

No hospital do SUS, após um Raio-X, descobre que houve um erro médico em sua apressada operação de emergência, e que um objeto de corte, uma tesoura, foi esquecida em seu estômago durante a cirurgia.

Novamente na fila para ser atendido, Brauzeo, cheio de dor, coloca a mão no bolso e descobre o medalhão. Percebe que seus males começaram quando ganhou da velha aquele estranho objeto que ele não consegue largar. Ele joga para fora do hospital a peça, mas em seguida, apalpando seu bolso, se dá conta de que ela ainda está lá.

O doutor de plantão finalmente chega ao hospital, e Brauzeo, transtornado, sai correndo atrás dele.

O doutor de plantão fica nervoso com o estranho que o encurrala contra uma parede, rindo sem parar como um louco, e apertando alguma coisa na sua mão direita.

Só depois do estranho ser levado pelos seguranças do hospital, o doutor de plantão percebe em sua mão um estranho objeto com um desenho em relevo, que admira por alguns instantes e depois joga no lixo.

....Fim....

Paulo Salgueiro
Enviado por Paulo Salgueiro em 20/10/2014
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