O tormento do torturador
Afastando a cortina branca e bem cuidada da janela ele olhava para o homem maltrapilho do outro lado da rua. Parado, braços caídos ao longo do corpo, descalço, roupas rasgadas e manchadas de sangue. Tinha sido assim ao longo dos últimos dez dias. Sempre aparecia alguém, do qual o coronel reformado do Exército brasileiro, Augusto Renoir, lembra-se vagamente. Do alto dos seus 70 anos, a memória não era a mesma. Há cinco estava preso em uma cadeira de rodas para a qual os problemas de coluna o haviam conduzido. Lembrava-se dos tempos em que serviu em todas as regiões do Brasil na arma da Infantaria do Exército.
Aos 30 anos era capitão e por seu zelo em combate contra os comunistas havia sido chamado para ajudar a extrair informações dos presos políticos em uma cadeia subterrânea localizada no Estado de São Paulo. Comandava o processo de tortura e participava ativamente. Amarrava prisioneiros no famoso “pau-de-arara”, aplicava-lhes choques elétricos em suas partes íntimas, afogava-os, dava-lhes golpes nas partes íntimas. Ao longo dos cinco anos em que cometeu essas atrocidades, 20 morreram em suas mãos. A frieza do capitão era tanta que passou a receber a alcunha de “o torturador” pelos seus pares que não se atreviam a lhe sussurrar o apelido, tamanha era a sua fama de severidade.
Augusto Renoir agia como se estivesse tudo bem, mas, à noite, ele era o torturado. Por muitas vezes acordava gritando após os pesadelos envolvendo as pessoas a quem matou covardemente. A sua esposa ficava exasperada, mas não podia fazer nada, até porque o marido não se permitia tratar. O tempo passou, de capitão foi promovido a major e anos depois a tenente-coronel. Quando já beirava os 65 anos recebeu a sua última promoção, coronel, passando imediatamente a reforma.
Como todo militar queria ter chegado a general, mas se conformou.
A morte da sua esposa Lara o deixou só, até porque o seu único filho, um professor universitário de história, morava bastante longe, do outro lado do país, o que tornava raras as visitas. Augusto passava a maior parte do tempo em casa, recordando-se, lembrando-se, arrependendo-se. Sabia que havia feito algo de muito ruim e que passaria o resto dos seus dias pagando um preço por isso. As noites mal dormidas já pesavam absurdamente, sempre pesaram. E nos últimos dias havia esses desconhecidos a observar a sua residência.
Assim como o primeiro estranho, o que apareceu naquele dia sumiu depois de algumas horas. Sem que o coronel percebe-se. Por mais de uma vez Augusto Renoir chamou a Polícia Militar que não identificou nada e ainda o olharam como se estivesse senil. O aspecto decrépito, calvo, pele enrugada e repleta de manchas, além de estar sempre sentado a cadeira de rodas, ajudavam nisso. Como o comandante que um dia foi, gritou por mais de uma vez com os policiais, como tantas vezes fizera com subordinados. Deixou de chamá-los. Não adiantaria. Mas o medo persistia.
No dia seguinte, pela manhã, sempre pela manhã, lá estava outra pessoa. Chegavam antes que ele fosse até a janela. Não conseguia identificar o rosto, mas sabia que o conhecia. Os olhos daquele estranho, cujo aspecto parecia sem vida, o olhavam através de si, como se enxergassem a sua alma. Na cadeira de rodas ele tremia e corria para o cilindro de oxigênio para respirar. Era terrível não ter por quem gritar. Uma faxineira e uma enfermeira iam até a sua casa uma vez por semana. No dia em que elas foram, não conseguiram ver nada, por mais que lhes mostrasse. Quase o internaram.
E os dias se passaram e os estranhos sempre a olhá-lo e ele a retribuir-lhes o olhar. Até que na 13° ocasião o medo deu lugar ao raciocínio claro, aquelas pessoas maltrapilhas, que pareciam estar mortas, eram as pessoas que ele havia matado. Naquele passado como militar. Concluiu que ali estavam para levá-lo, sem dúvidas para o inferno, lugar onde merecia passar a eternidade.
Por um momento decidiu que depois de ter vivido tanto, quando a existência de todos abreviou, decidiu não esperar que o 20° fosse vê-lo. Iria ele mesmo ao encontro dessas almas penadas. Assim o decidiu, e assim o fez.
Às 4h00 da manhã, daquele domingo, ergue-se da cama. Na noite anterior havia ligado para o seu filho, em claro tom de despedida. Ao sentar-se sozinho na cadeira de rodas dirigiu-se até a porta de entrada de sua casa. Quase caiu na rampa de cadeirantes, mesmo segurando o corrimão. Parou no jardim repleto de plantas mortas e desprovidas de cuidado. Como a casa não era murada, protegida apenas por um portão de ferro de um metro e meio de altura, podia ver muito claramente a rua iluminada pelos postes de luz.
Assustou-se, pois do outro lado da rua, não havia uma, mas 20 pessoas. Como se tivessem lido seu pensamento, também se anteciparam, e estavam todos reunidos, como um encontro macabro. O velho coração do militar aposentado pulsava forte e descompassado. O suor corria-lhe a testa.
- Estou aqui! – gritou desesperadamente com a voz falha – Venham me buscar!
A resposta não veio em forma de som, mas de caminhada. Todas as 20 almas perturbadas desceram a calçada onde estavam e começaram a caminhar pelo chão de pedras de calçamento da rua. O velho ofegava. Todos subiram a calçada da sua casa. Pôde vê-los mais claramente e os reconheceu. Possuíam, inclusive, os hematomas espalhados pelo corpo. Marcas dos golpes recebidos nas câmaras de tortura. Ele foi às lagrimas quando divisou uma jovem garota, que possuía apenas 18 anos quando foi morta, e cujo único crime tinha sido se engajar na luta pela redemocratização do Brasil.
Todos os 20 mortos, com lágrimas de um viscoso e escuro sangue vermelho cercaram o militar e começaram a tocá-lo, apertá-lo, esganá-lo, machucá-lo. Ele chorava. Tinha certeza de que aquela tortura seria o fim do longo período em que a consciência o levou ao sofrimento.
Com o fraco movimento do domingo as pessoas saíram de casa timidamente, aos poucos, mas logo os vizinhos se deram conta de que o velho coronel estava desacordado em sua cadeira de rodas no jardim. Levaram-no ao hospital e constataram que ele havia sido torturado, mas não sabiam por quem. Em estado de coma o coronel reformado Augusto Renoir vivenciava, em sua mente, toda a tortura que praticara, mas agora era ele quem estava amarrado no “pau-de-arara”.
O velho militar ainda viveria por alguns anos dia após dia em estado vegetativo sendo vítima dos mesmos atos que perpetrou.
*Aermo Wolf