Campinas, SP, 01 de novembro de 1892
De: Paula Nogueira
Para: Edgar Teixeira Nogueira
De: Paula Nogueira
Para: Edgar Teixeira Nogueira
CORRESPONDÊNCIA URGENTE
Com imenso pesar em meu pobre coração de mãe, informo que nosso filho não suportou a crise de Pneumonia e faleceu na manhã do dia de hoje.
O velório e o funeral vão acontecer amanhã (dia 02 de novembro). Sinto informar que, como o tempo de entrega dessa correspondência será de, mais ou menos, três ou quatro dias, o nosso querido Allan já estará descansando em paz no momento em que você estiver lendo essa mensagem.
Ressalto que, nessa semana, os serviços de telegrafo e de telefonia estão em manutenção aqui em campinas. Por esse motivo, não foi possível entrar em contato com um mensageiro na central de telégrafos da Sé, em São Paulo, para poder te avisar com maior rapidez.
Não se preocupe. A Leda está me fazendo companhia!
Faça o que você tem que fazer ai na cidade, termine seu trabalho e, somente depois, retorne à casa. Lembre-se: largar as coisas e retornar correndo, infelizmente, não adiantará em mais nada. Tenha força!
Fique com Deus.
De sua querida esposa: Paula Nogueira.
*Fim da mensagem*
O desejo do cadáver – DTRL 18
Tema: Desejos
Dia 12 de novembro de 1892.
A garoa escorria pelo sobretudo preto e caia no barro da rua. Já era tarde, por volta de onze horas da noite, e Edgar caminhava cabisbaixo, cansado após a viagem do centro de São Paulo até Campinas. Em determinado momento, suspirou de forma intensa ao observar sua residência, um sobrado, logo à frente. Acelerou os passos, com a mesma velocidade na qual a garoa transformava-se em chuva, e chegou ao portão. Nos pensamentos, a aflição por não ter retornado ao lar, em tempo hábil para participar do velório do filho, castigava-o. Não pelo fato de ter perdido as cerimonias fúnebres, com as quais nunca se identificara, mas sim por não ter ficado perto de sua mulher, que com certeza possuía a maior parcela do luto.
**&&&**
Estava fora de casa há mais de um mês. Em razão de ser Engenheiro, especialista em construções de pontes, havia sido contratado pela Companhia Paulista de Viadutos, para trabalhar na fase final da construção do Viaduto do Chá, situado ao longo do Vale do Anhangabaú. A inauguração da obra aconteceu no dia 06 de novembro. No entanto, a fatídica carta com a notícia da morte do filho chegara, ao canteiro de obras, um dia antes do evento. Logo, não participou das festas comemorativas do termino das construções e, apenas, esperou a conclusão da parte burocrática do trabalho para retornar à casa. Só que, dessa vez, o retorno precoce não trazia uma sensação agradável.
Edgar possuía quarenta e quatro anos. A esposa, quarenta. Estavam casados há vinte anos e, durante o inicio do casamento, tentaram insistentemente ter um filho. A médica da família – Doutora Leda, a irmã mais velha de Paula - nunca entendera o problema. Dessa forma, as esperanças eram cada vez menores. Porém, depois de enfrentar dez anos de tentativas frustradas, Paula ficara gravida. Felizmente, e pós uma gestação ausente de problemas, o nascimento do menino Allan deu-se de forma tranquila.
Durante a infância, o garoto adorava andar de bicicleta no quintal de casa e, quando possível, pelas ruas. Mas sempre reclamava da ausência de um irmão, para lhe fazer companhia. O casal, como era de se esperar, prometera outro bebê. No entanto, ficara evidente que Allan seria o único. Dessa forma, o zelo pelo filho exclusivo era exagerado. E isso não foi suficiente para livrá-lo de fortes crises de Pneumonia, que passaram a ser rotineiras e, cada vez mais intensas, no último ano.
Desde então, o pai passou a administrar o tempo, dedicando parte ao trabalho e parte aos cuidados do filho. E foi assim até o dia em que precisou comparecer fisicamente às instalações da construção do Viaduto do Chá, projeto no qual trabalhava, de início, em sua própria casa, revisando as plantas e as matrizes. Ao sair para a viagem, naquela manhã nublada do dia 28 de setembro do ano de 1892, contemplou o filho pela última vez. O menino, soltando sonoras tosses - secas e vibrantes - o abraçou e disse uma única frase.
- Pai, volta logo.
Edgar despediu-se do pequeno, beijou a esposa no rosto, e partiu para a viagem. Mal sabia que, dias depois, seria informado da morte do filho.
**&&&**
Chegando ao portão, retirou o sobretudo, o chapéu, e entrou.
Caminhou na pequena alameda do quintal, que conduzia até à porta da sala - a entrada principal da residência - tentando fazer barulhos com as botas, mostrando que estava entrando. Durante o percurso, olhou para a área de descanso, ao lado direito, onde a bicicleta de Allan jazia derrubada. Novamente, o doloroso luto o visitou na companhia de uma ardência no estômago. O brinquedo, caído sobre o chão, com o guidão torto e a roda da frente levantada e girando infinitamente, em razão do vento e da chuva, o fez imaginar que talvez aquilo representasse a imagem de uma das últimas ações do filho em vida. Maneou a cabeça, tentando não se deixar vencer pelos sentimentos, e bateu três vezes na porta, enquanto um filete de água de chuva escorria pela barba rala, até o queixo.
As batidas ecoaram de forma sonora, como um tambor. Edgar estava com uma cópia da chave original, mas queria que a esposa fosse à porta.
Insistiu.
Não houve resposta.
Então, destrancou e abriu: a casa estava escura, silenciosa, e não havia sinal da presença de Paula. Achou estranho, mas ignorou. Limpou as botas, pendurou o chapéu e o sobretudo no cabideiro, e entrou. Tateou o ébano empoeirado da estante e localizou uma caixa de fósforos, da qual retirou um palito e o riscou para poder ascender as velas que estavam socadas no candelabro, disposto na mesa de centro. Naquele momento, a claridade, oriunda da pequena explosão do enxofre, revelou que Paula estava sentada no sofá da sala... Estática e silenciosa.
“Não se esqueça: eu voltarei”
- Amor... Você está aqui... Me assustou! – Disse Edgar, enquanto corria para fechar a porta.
- Fez boa Viagem? – Respondeu a mulher, com a voz fina e rouca, de forma quase inaudível.
Aquele breve contato foi suficiente para Edgar notar o triste estado no qual a esposa se encontrava. Por natureza, sempre fora magra. Mas, naquela noite, o aspecto era cadavérico: a pele do rosto estava pálida; os olhos estavam fundos e vermelhos; a boca estava seca e descolorida; os cabelos, lisos e negros, jogados na altura dos ombros, estavam oleosos e despenteados; e a roupa, uma camisola preta de alças, estava amarrotada. A impressão era a de que a morte do filho havia levado, também, a saúde e o brilho de vida da mãe que ficara para trás... Uma mãe que, em razão da idade ligeiramente avançada, não alimentava esperanças de gerar novamente.
O marido permaneceu em pé por alguns instantes, segurando o candelabro enquanto observava o rosto cansado da esposa, cujos olhos inchados expulsavam lágrimas que escorriam pelo rosto assim como parafina derretida, descendo pelo corpo de uma vela. A casa estava gelada e uma densa poeira circulava no ar. No sofá, o sofrimento de Paula era explicito, de maneira que Edgar avançou para tê-la em seus braços e tentar, de certa forma, proporcionar algum consolo. No entanto, a mulher aparentou ignorar a oferta.
- Não! Eu sei que você vai me dizer coisas como “Sinto muito”, ou então “Isso vai passar”. Eu só lhe digo uma coisa: não há consolo nessa terra que irá arrancar esse peso! Quanto mais as pessoas se aproximam de mim para me consolar, pior fica a minha sensação! - Disse Paula, os olhos imóveis como se fossem de vidro.
Edgar, obedecendo ao pedido que acabara de ser imposto, devolveu o candelabro à mesa do centro da sala e sentou ao lado da esposa. Ensaiou colocar a mão no rosto dela, acariciá-la, ou até mesmo dizer alguma frase pronta, que pessoas geralmente dizem nos momentos em que um ente querido falece, mas nada veio à mente. Então, repousou as costas de forma confortável no sofá e ficou observando o bruxuleante movimento das chamas das velas, e as sombras que elas produziam.
- Você está dormindo? Está comendo? Eu não queria dizer mas... Sua aparência está péssima! – Disse o marido.
- Só tomei água praticamente.
- Onde está sua irmã? Você não escreveu dizendo que ela ficaria com você?
- Sim, mas depois eu pedi para ela me deixar em paz. E, para falar a verdade, estou aqui nessa sala, sozinha, desde o dia seguinte à morte do nosso filho.
- Como assim? – Indagou Edgar.
Paula se levantou. Uma vez em pé, a pobreza relacionada à gordura e à carne de seu corpo ficara evidente. Tanto que Edgar se assustou com o que vira. Em seguida, a mulher passou a caminhar em círculos ao redor da mesa de centro, como se fosse um inseto noturno, rondando uma fogueira. Depois, colocou as mãos finas e brancas no rosto e soltou um sonoro suspiro. Olhou o teto e, em seguida, encarou as pupilas dilatadas do marido.
- Meu amor... – Disse Paula – Tenho uma coisa muito séria para te falar! – Completou.
Edgar, por sua vez, desvencilhou-se da posição confortável na qual se encontrava e colocou-se à beira do sofá. Somou as palmas das mãos e as colocou no colo, fazendo um gesto claro e óbvio de nervosismo. No interior da casa o silêncio estava “alto”, e até parecia ser tangível, de tão intenso que era. Além disso, o pó espalhado pelo ar da sala irritava as vias aéreas, e revelava que, realmente, Paula não cuidava dos afazeres domésticos há dias. O marido teve vontade de, imediatamente, questionar qual seria aquela coisa séria que a esposa se referia. Mas, o coração passou a bater forte, em razão da expectativa relacionada à revelação iminente: ele queria ouvir avidamente, mas ao mesmo tempo sentia medo do que estaria por vir.
- O que está havendo ? – Disse Edgar, rangendo os dentes, gastos pelo bruxismo.
- Tomara que você entenda. Pois eu estou com medo da sua reação.
- Não se preocupe. Sei que você está sofrendo mais do que eu. Qualquer coisa que você me disser não será relevante.
Paula balançou a cabeça positivamente, como se demonstrasse concordância com as palavras de conforto que acabara de ouvir. Andou até o sofá e se sentou. Edgar, no intuito de deixar a esposa calma, desviou o olhar para o chão e deixou os ouvidos atentos. A mulher, em seguida, meteu a mão nos cabelos e os ajustou para trás. A sensação era a de que ela buscava coragem para começar a falar. Então, após titubear, iniciou a conversa.
- Depois que a morte dele foi confirmada, pelos outros médicos, eu e a Leda entramos em contato com a funerária. Os agentes vieram, prepararam o corpo, colocando conservantes e todas aquelas coisas, e disseram que na manhã seguinte voltariam trazendo o caixão e os demais adornos do funeral.
- O corpo dele passou aquela noite lá em cima, no quarto? – Indagou Edgar, com certo ar de perplexidade.
- Sim. Até ai tudo bem. Porém, naquela noite eu tive um sonho estranho!
- Sonho?
- Sim. Sonhei que eu levantava para ir beber água, de madrugada, e via o corpo do Allan: descendo as escadas, todo enfaixado, da forma como a funerária o havia deixado.
- Santo Deus! – Falou o marido, fazendo o sinal da cruz: testa; peito; ombro esquerdo; e ombro direito. – E o que aconteceu na sequencia? – Questionou em seguida.
- No sonho, eu caminhei até o encontro dele. Não dava para ver o rosto, por causa dos panos que o envolviam da cabeça até aos pés. Mesmo assim, eu perguntei se ele queria alguma coisa.
- E... Ele te respondeu?
- Sim. Ele disse que gostaria de ser visto e abraçado pelo pai, uma última vez. – Disse Paula, sugando a água transparente que escorria do nariz até o lábio superior.
Quando um gato observa a aproximação de um cachorro, ele imediatamente arqueia as quatro patas; arregala os olhos e fica imóvel, esperando o que vai acontecer. Essa foi a mesma reação de Edgar, ao escutar o que Paula acabara de dizer. A boca seca queria pronunciar alguma coisa, mas a língua estava quase descendo pela garganta, para poder se esconder no estomago. Ao mesmo tempo, não entendia porque aquela situação o amedrontava tanto, afinal de contas, tratava-se de seu filho: uma simples criança.
- Ele disse mais alguma coisa, no sonho?
- Não, mas algo muito estranho ocorreu na manhã do dia seguinte!
- O que aconteceu?
- Os agentes funerários retornaram bem cedo, trazendo o caixão e todos os adornos. Depois, subimos ao quarto, para preparar o corpinho. Mas... – Novamente, Paula titubeou.
- Mas o que? O que aconteceu? – Questionou Edgar, de forma impaciente.
- A porta estava trancada. Aparentemente, o ferrolho havia sido passado, pelo lado de dentro do quarto.
- E depois? Como abriram a porta para pegar o corpo?
- Não abrimos.
Edgar levantou-se do sofá, quase saltando. Apanhou o candelabro da mesinha, as chamas das velas ameaçaram se apagar em razão da deslocação brusca de corrente de ar, e caminhou até a soleira da escada de acesso ao andar superior, onde ficava o quarto do filho falecido. Apontou o dedo na direção da escada e questionou a esposa.
- Você está me dizendo que... Está lá em cima? Ainda?
- Sim.
O homem, dessa vez, foi quem passou a caminhar em círculos ao redor da mesinha. A mão levada à testa demonstrava que a revelação fora aterradora. O candelabro tremia. As luzes amarelas das velas atingiam os móveis e criavam sombras desformes, que se projetavam nas paredes e no teto da sala. Enquanto isso, Paula, ainda sentada no sofá, não dizia nada. Apenas esperava a conclusão da reação do marido cessar, o que não demorou a acontecer.
- Meu Deus do céu... Eu não acredito que vocês fizeram isso! Por que não arrombaram a porta e fizeram logo o funeral e o enterro dele... Hen? Por que, pelo amor de Deus? – Disse Edgar, passando a mão nos cabelos ralos, timidamente grisalhos.
- Não foi uma simples coincidência. Primeiro o sonho... Depois a porta trancada... Está claro que trata-se do último desejo dele, e acho que deve ser cumprido. – Protestou a mãe.
- Paula... Por Jesus Cristo... Você sabe que eu não gosto de velórios e enterros. Eu quero ter lembranças boas do meu garoto. Lembranças de quando ele ainda era vivo. Sabe o que é aquilo que está lá em cima no quarto, provavelmente em estado avançado de decomposição?
- Sim, eu sei: é o corpo do nosso único filho! – Disse a mulher, também com voz alterada.
- Não! Pelo amor de Deus, Paula... É a morte que está lá em cima, há mais de dez dias! A morte. – Gritou Edgar, a voz ecoou pelos cômodos da casa.
Como se reagisse a um reflexo, caminhou até a estante e apanhou um retrato feito à carvão, onde havia a imagem de Allan com sete anos de idade, feliz, montado em sua bicicleta, a mesma que estava caída ao lado de fora da casa, com o pneu da frente girando solitário como um fantasma. De posse dessa pintura, aproximou-se vorazmente de Paula, exibindo a imagem.
- Está vendo ele nessa foto? Sorrindo e alegre? Então, essa é a última impressão que eu quero ter! Não a imagem de um corpo. – Esbravejou de forma descontrolada.
A mulher colocou as duas mãos no rosto e passou a chorar como uma menina pequena. Aquela reação tocou o coração do marido. Algo na mente dele dizia que Paula não estava sabendo lidar com a morte do filho. Inclusive, temeu pela saúde mental dela. Então, devolveu o retrato ao local de origem, colocou o candelabro na mesinha e, um pouco mais calmo, retornou ao sofá. Inseriu a mão no bolso, retirou o relógio e verificou que já era quase meia noite. Observou a escadaria para o segundo andar e ficou analisando a escuridão que vinha lá de cima. Involuntariamente, pensou como seria possível não haver cheiro ruim na casa. Mas concluiu que a funerária deveria ter feito um trabalho bastante competente nesse quesito.
- Amor... Me desculpe se te magoei.
- Está bem. Eu te entendo.
- Vamos dormir. Eu cheguei de viagem e estou cansado. Pode ficar tranquila que, amanhã cedo, eu mesmo vou à funerária para providenciar todas as coisas. Vamos fingir que isso nunca aconteceu. Na verdade, quando vocês fecharam a porta, o ferrolho deve ter se movido sozinho, trancando-a pelo lado de dentro. Eu também cuidarei disso.
- Está bem. – Disse a esposa. - Eu avisei à todos que, assim que você retornasse, as cerimonias seriam feitas. Todos já estão esperando. – Concluiu.
Em seguida, Paula retirou-se do sofá, sem dizer nenhuma palavra, e caminhou para o quarto de casal, que ficava no andar térreo da casa, ao lado da sala. Minutos depois, Edgar também se levantou e foi ao banheiro.
Chegando ao quarto, após o banho, observou que a esposa já estava deitada na cama, com os olhos fechados. Pensou em acordá-la para conversar, mas entendia que ela também deveria estar exausta. Logo, apenas assoprou as três velas, colocou o candelabro no criado mudo, ao lado esquerdo da cama, e se deitou. “Por que as pessoas gostam de cultuar sofrimento? Por que as pessoas adoram velar os seus mortos?” Analisando essas duas perguntas, demorou para adormecer. Ficou com os olhos abertos olhando a escuridão. O quarto de Allan, no andar superior, ficava exatamente em cima do quarto onde o casal dormia. Edgar, inevitavelmente, se lembrou da época em que o filho era vivo, e costumava fazer muitos barulhos, brincando até tarde.
Naquela noite, porém, não escutou absolutamente nada. Logo, chorou sozinho, sentindo a falta da presença do filho. Enquanto isso, lá fora no quintal, a roda da bicicleta continuava girando. Girando e girando...
- Fez boa Viagem? – Respondeu a mulher, com a voz fina e rouca, de forma quase inaudível.
Aquele breve contato foi suficiente para Edgar notar o triste estado no qual a esposa se encontrava. Por natureza, sempre fora magra. Mas, naquela noite, o aspecto era cadavérico: a pele do rosto estava pálida; os olhos estavam fundos e vermelhos; a boca estava seca e descolorida; os cabelos, lisos e negros, jogados na altura dos ombros, estavam oleosos e despenteados; e a roupa, uma camisola preta de alças, estava amarrotada. A impressão era a de que a morte do filho havia levado, também, a saúde e o brilho de vida da mãe que ficara para trás... Uma mãe que, em razão da idade ligeiramente avançada, não alimentava esperanças de gerar novamente.
O marido permaneceu em pé por alguns instantes, segurando o candelabro enquanto observava o rosto cansado da esposa, cujos olhos inchados expulsavam lágrimas que escorriam pelo rosto assim como parafina derretida, descendo pelo corpo de uma vela. A casa estava gelada e uma densa poeira circulava no ar. No sofá, o sofrimento de Paula era explicito, de maneira que Edgar avançou para tê-la em seus braços e tentar, de certa forma, proporcionar algum consolo. No entanto, a mulher aparentou ignorar a oferta.
- Não! Eu sei que você vai me dizer coisas como “Sinto muito”, ou então “Isso vai passar”. Eu só lhe digo uma coisa: não há consolo nessa terra que irá arrancar esse peso! Quanto mais as pessoas se aproximam de mim para me consolar, pior fica a minha sensação! - Disse Paula, os olhos imóveis como se fossem de vidro.
Edgar, obedecendo ao pedido que acabara de ser imposto, devolveu o candelabro à mesa do centro da sala e sentou ao lado da esposa. Ensaiou colocar a mão no rosto dela, acariciá-la, ou até mesmo dizer alguma frase pronta, que pessoas geralmente dizem nos momentos em que um ente querido falece, mas nada veio à mente. Então, repousou as costas de forma confortável no sofá e ficou observando o bruxuleante movimento das chamas das velas, e as sombras que elas produziam.
- Você está dormindo? Está comendo? Eu não queria dizer mas... Sua aparência está péssima! – Disse o marido.
- Só tomei água praticamente.
- Onde está sua irmã? Você não escreveu dizendo que ela ficaria com você?
- Sim, mas depois eu pedi para ela me deixar em paz. E, para falar a verdade, estou aqui nessa sala, sozinha, desde o dia seguinte à morte do nosso filho.
- Como assim? – Indagou Edgar.
Paula se levantou. Uma vez em pé, a pobreza relacionada à gordura e à carne de seu corpo ficara evidente. Tanto que Edgar se assustou com o que vira. Em seguida, a mulher passou a caminhar em círculos ao redor da mesa de centro, como se fosse um inseto noturno, rondando uma fogueira. Depois, colocou as mãos finas e brancas no rosto e soltou um sonoro suspiro. Olhou o teto e, em seguida, encarou as pupilas dilatadas do marido.
- Meu amor... – Disse Paula – Tenho uma coisa muito séria para te falar! – Completou.
Edgar, por sua vez, desvencilhou-se da posição confortável na qual se encontrava e colocou-se à beira do sofá. Somou as palmas das mãos e as colocou no colo, fazendo um gesto claro e óbvio de nervosismo. No interior da casa o silêncio estava “alto”, e até parecia ser tangível, de tão intenso que era. Além disso, o pó espalhado pelo ar da sala irritava as vias aéreas, e revelava que, realmente, Paula não cuidava dos afazeres domésticos há dias. O marido teve vontade de, imediatamente, questionar qual seria aquela coisa séria que a esposa se referia. Mas, o coração passou a bater forte, em razão da expectativa relacionada à revelação iminente: ele queria ouvir avidamente, mas ao mesmo tempo sentia medo do que estaria por vir.
- O que está havendo ? – Disse Edgar, rangendo os dentes, gastos pelo bruxismo.
- Tomara que você entenda. Pois eu estou com medo da sua reação.
- Não se preocupe. Sei que você está sofrendo mais do que eu. Qualquer coisa que você me disser não será relevante.
Paula balançou a cabeça positivamente, como se demonstrasse concordância com as palavras de conforto que acabara de ouvir. Andou até o sofá e se sentou. Edgar, no intuito de deixar a esposa calma, desviou o olhar para o chão e deixou os ouvidos atentos. A mulher, em seguida, meteu a mão nos cabelos e os ajustou para trás. A sensação era a de que ela buscava coragem para começar a falar. Então, após titubear, iniciou a conversa.
- Depois que a morte dele foi confirmada, pelos outros médicos, eu e a Leda entramos em contato com a funerária. Os agentes vieram, prepararam o corpo, colocando conservantes e todas aquelas coisas, e disseram que na manhã seguinte voltariam trazendo o caixão e os demais adornos do funeral.
- O corpo dele passou aquela noite lá em cima, no quarto? – Indagou Edgar, com certo ar de perplexidade.
- Sim. Até ai tudo bem. Porém, naquela noite eu tive um sonho estranho!
- Sonho?
- Sim. Sonhei que eu levantava para ir beber água, de madrugada, e via o corpo do Allan: descendo as escadas, todo enfaixado, da forma como a funerária o havia deixado.
- Santo Deus! – Falou o marido, fazendo o sinal da cruz: testa; peito; ombro esquerdo; e ombro direito. – E o que aconteceu na sequencia? – Questionou em seguida.
- No sonho, eu caminhei até o encontro dele. Não dava para ver o rosto, por causa dos panos que o envolviam da cabeça até aos pés. Mesmo assim, eu perguntei se ele queria alguma coisa.
- E... Ele te respondeu?
- Sim. Ele disse que gostaria de ser visto e abraçado pelo pai, uma última vez. – Disse Paula, sugando a água transparente que escorria do nariz até o lábio superior.
Quando um gato observa a aproximação de um cachorro, ele imediatamente arqueia as quatro patas; arregala os olhos e fica imóvel, esperando o que vai acontecer. Essa foi a mesma reação de Edgar, ao escutar o que Paula acabara de dizer. A boca seca queria pronunciar alguma coisa, mas a língua estava quase descendo pela garganta, para poder se esconder no estomago. Ao mesmo tempo, não entendia porque aquela situação o amedrontava tanto, afinal de contas, tratava-se de seu filho: uma simples criança.
- Ele disse mais alguma coisa, no sonho?
- Não, mas algo muito estranho ocorreu na manhã do dia seguinte!
- O que aconteceu?
- Os agentes funerários retornaram bem cedo, trazendo o caixão e todos os adornos. Depois, subimos ao quarto, para preparar o corpinho. Mas... – Novamente, Paula titubeou.
- Mas o que? O que aconteceu? – Questionou Edgar, de forma impaciente.
- A porta estava trancada. Aparentemente, o ferrolho havia sido passado, pelo lado de dentro do quarto.
- E depois? Como abriram a porta para pegar o corpo?
- Não abrimos.
Edgar levantou-se do sofá, quase saltando. Apanhou o candelabro da mesinha, as chamas das velas ameaçaram se apagar em razão da deslocação brusca de corrente de ar, e caminhou até a soleira da escada de acesso ao andar superior, onde ficava o quarto do filho falecido. Apontou o dedo na direção da escada e questionou a esposa.
- Você está me dizendo que... Está lá em cima? Ainda?
- Sim.
O homem, dessa vez, foi quem passou a caminhar em círculos ao redor da mesinha. A mão levada à testa demonstrava que a revelação fora aterradora. O candelabro tremia. As luzes amarelas das velas atingiam os móveis e criavam sombras desformes, que se projetavam nas paredes e no teto da sala. Enquanto isso, Paula, ainda sentada no sofá, não dizia nada. Apenas esperava a conclusão da reação do marido cessar, o que não demorou a acontecer.
- Meu Deus do céu... Eu não acredito que vocês fizeram isso! Por que não arrombaram a porta e fizeram logo o funeral e o enterro dele... Hen? Por que, pelo amor de Deus? – Disse Edgar, passando a mão nos cabelos ralos, timidamente grisalhos.
- Não foi uma simples coincidência. Primeiro o sonho... Depois a porta trancada... Está claro que trata-se do último desejo dele, e acho que deve ser cumprido. – Protestou a mãe.
- Paula... Por Jesus Cristo... Você sabe que eu não gosto de velórios e enterros. Eu quero ter lembranças boas do meu garoto. Lembranças de quando ele ainda era vivo. Sabe o que é aquilo que está lá em cima no quarto, provavelmente em estado avançado de decomposição?
- Sim, eu sei: é o corpo do nosso único filho! – Disse a mulher, também com voz alterada.
- Não! Pelo amor de Deus, Paula... É a morte que está lá em cima, há mais de dez dias! A morte. – Gritou Edgar, a voz ecoou pelos cômodos da casa.
Como se reagisse a um reflexo, caminhou até a estante e apanhou um retrato feito à carvão, onde havia a imagem de Allan com sete anos de idade, feliz, montado em sua bicicleta, a mesma que estava caída ao lado de fora da casa, com o pneu da frente girando solitário como um fantasma. De posse dessa pintura, aproximou-se vorazmente de Paula, exibindo a imagem.
- Está vendo ele nessa foto? Sorrindo e alegre? Então, essa é a última impressão que eu quero ter! Não a imagem de um corpo. – Esbravejou de forma descontrolada.
A mulher colocou as duas mãos no rosto e passou a chorar como uma menina pequena. Aquela reação tocou o coração do marido. Algo na mente dele dizia que Paula não estava sabendo lidar com a morte do filho. Inclusive, temeu pela saúde mental dela. Então, devolveu o retrato ao local de origem, colocou o candelabro na mesinha e, um pouco mais calmo, retornou ao sofá. Inseriu a mão no bolso, retirou o relógio e verificou que já era quase meia noite. Observou a escadaria para o segundo andar e ficou analisando a escuridão que vinha lá de cima. Involuntariamente, pensou como seria possível não haver cheiro ruim na casa. Mas concluiu que a funerária deveria ter feito um trabalho bastante competente nesse quesito.
- Amor... Me desculpe se te magoei.
- Está bem. Eu te entendo.
- Vamos dormir. Eu cheguei de viagem e estou cansado. Pode ficar tranquila que, amanhã cedo, eu mesmo vou à funerária para providenciar todas as coisas. Vamos fingir que isso nunca aconteceu. Na verdade, quando vocês fecharam a porta, o ferrolho deve ter se movido sozinho, trancando-a pelo lado de dentro. Eu também cuidarei disso.
- Está bem. – Disse a esposa. - Eu avisei à todos que, assim que você retornasse, as cerimonias seriam feitas. Todos já estão esperando. – Concluiu.
Em seguida, Paula retirou-se do sofá, sem dizer nenhuma palavra, e caminhou para o quarto de casal, que ficava no andar térreo da casa, ao lado da sala. Minutos depois, Edgar também se levantou e foi ao banheiro.
Chegando ao quarto, após o banho, observou que a esposa já estava deitada na cama, com os olhos fechados. Pensou em acordá-la para conversar, mas entendia que ela também deveria estar exausta. Logo, apenas assoprou as três velas, colocou o candelabro no criado mudo, ao lado esquerdo da cama, e se deitou. “Por que as pessoas gostam de cultuar sofrimento? Por que as pessoas adoram velar os seus mortos?” Analisando essas duas perguntas, demorou para adormecer. Ficou com os olhos abertos olhando a escuridão. O quarto de Allan, no andar superior, ficava exatamente em cima do quarto onde o casal dormia. Edgar, inevitavelmente, se lembrou da época em que o filho era vivo, e costumava fazer muitos barulhos, brincando até tarde.
Naquela noite, porém, não escutou absolutamente nada. Logo, chorou sozinho, sentindo a falta da presença do filho. Enquanto isso, lá fora no quintal, a roda da bicicleta continuava girando. Girando e girando...
**&&&**
- Edgar, amor... Acorde!
- Paula... O que foi? Que horas são?
- São seis horas da manhã. Levante...
Edgar levantou-se. As costas e as pernas estavam suadas. O candelabro, dessa vez, estava na mão da esposa, a qual portava um estranho sorriso no rosto delgado. Apesar do horário, o quarto ainda estava escuro.
- Por que está rindo?
- Ontem você brigou comigo sobre o fato do corpo do nosso filho ainda estar na casa, e, por causa disso, eu até me esqueci de te mostrar a lembrança que a funerária nos deu!
- Lembrança? Como assim?
- Eles falam que sempre quando preparam um corpo, fazem uma espécie de homenagem para os familiares. Vou te mostrar a que eles deram para nós.
Paula caminhou até o guarda roupas. Abriu a porta e retirou uma caixa de tamanho médio. O objeto quadrado era preto e tinha uma fita vermelha em volta, formando uma espécie de laço na tampa. Em seguida, caminhou lentamente até a cama, com o mesmo cuidado de uma cozinheira carregando um bolo quente. Depois, sentou-se ao lado de Edgar e colocou a “homenagem” no próprio colo.
- O que tem ai dentro?
- Ainda não sei. Mas eles disseram que era para eu abrir somente na sua frente.
Ela desfez o laço. Retirou a tampa e enfiou a mão na caixa. Em seguida, puxou a cabeça podre de Allan, segurando-a pelos cabelos. A pele do rosto da cabeça estava com a coloração azulada. Os olhos estavam leitosos e possuíam o mesmo aspecto dos olhos de uma pessoa com catarata. Além disso, haviam diversas moscas pousadas na boca, bebendo os fluídos negros que escorriam dela.
- Olha amor! Não é lindo! – Disse Paula, dando um sonoro beijo na face em decomposição.
**&&&**
Com o susto, Edgar acordou. Em sua mente, o alivio de ter escapado daquele bizarro pesadelo era imenso. Permaneceu parado por alguns segundos, esperando os olhos ficarem habituados à escuridão. Depois, esticou o braço e apanhou a caixa de fósforos que estava sobre o criado mudo da cama. Riscou um palito – cheiro de enxofre - e ficou espantado ao perceber que Paula não estava na cama.
Como acontecera no pesadelo, as costas e as pernas estavam soadas. Riscou outro fosforo e acendeu cuidadosamente cada uma das três velas do candelabro. Apanhou o relógio de bolso, que também estava no criado mudo, e verificou que os ponteiros diziam que faltavam vinte minutos para as quatro horas da madrugada. Em seguida, se levantou da cama.
- Onde ela está? - Foi o que pensou, enquanto se retirava do quarto.
Ao chegar à sala, percebeu que a esposa não estava sentada no sofá. A poeira incomodava e dificultava a respiração, tanto que teve vontade de espirrar. Caminhou com os pés descalços, no piso gelado, indo em direção à cozinha. Chegando lá, deparou-se com o mesmo vazio profundo da noite anterior. Logo, decidiu checar o banheiro, que ficava no corredor, retornando à sala. Mas, para o aumento da angustia, verificou que, também, não havia ninguém lá dentro. Dessa forma, começou a alimentar um pensamento indesejado, que tentava evitar desde o momento em que percebera a cama vazia: talvez, Paula estaria no andar de cima da casa.
Retornou à sala e dirigiu-se à soleira da escada. Levantou o braço esquerdo, segurando o candelabro, ergueu os olhos e contemplou a negritude silenciosa.
- Paula... Amor... Você está ai em cima? – Perguntou, em alta voz.
Não houve resposta.
Edgar olhou a parede no lado esquerdo, onde ficava o corrimão, e observou o velho crucifixo que herdara da família de seu pai. Tratava-se de uma imagem barroca da execução de Jesus Cristo. Quando era pequeno, Allan costumava alegar que tinha pesadelos relacionados àquela imagem: “pai, o homem da cruz subiu as escadas e bateu três vezes na porta do meu quarto. Eu fiquei com medo, mas abri. Ele entrou e me mostrou os buracos que tinha nas mãos e nos pés, dizendo que ainda estava doendo muito”. Em razão desses pesadelos, Paula costumava cobrir o crucifixo com um pano preto durante a noite, pouco antes de Allan subir as escadas para ir dormir.
“Tem certeza de que todos eles, realmente, te amam?”
Passou-se quase um minuto desde o momento em que Edgar gritara pelo nome de Paula. O braço esquerdo já doía em razão de estar levantado, sustentando o peso do candelabro. A mão direita, que já demonstrava sinais de umidade, em razão do nervosismo, foi levada à altura da boca, fazendo um gesto que permitiria propagação acústica.
- Paula? Responde, por favor! – Gritou, com o tom de voz elevado.
O silêncio flagelava os tímpanos. Nunca desejara tanto escutar a voz da esposa. Cogitou subir até o meio da escada e, novamente, gritar o nome dela. Dessa forma, colocou o pé direito no primeiro degrau, sentindo a madeira áspera tocando o metatarso calejado. No entanto, apenas as pernas queriam prosseguir. O estômago, agindo como uma âncora, o mantinha imóvel igual a uma preza arisca. Na mente, a luta era intensa. Sabia que deveria subir e verificar se a esposa estaria no quarto de Allan, ou se a porta realmente estava trancada. Mas, ao mesmo tempo, um medo primitivo e sem explicação o tomava da cabeça aos pés, de maneira que quanto mais distante estivesse daquele cômodo da casa, melhor seria.
Obviamente, desistiu de subir.
Por desencargo de consciência, decidiu checar novamente a cama, para ter certeza de que ela estava realmente vazia. Então, retirou o pé do primeiro degrau e, no exato momento em que dava meia volta, escutou nitidamente o som do ferrolho da porta se abrindo: o quarto do filho falecido.
- Paula. É você? Me responde, Paula... Fale alguma coisa, pelo amor de Deus.
Dessa vez, foi impulsionado pelo fato óbvio de que alguma movimentação acontecia lá em cima. Logo, degrau por degrau, subiu as escadas. “Meu Deus do céu, o que você está fazendo comigo, mulher!”, pensou alto, no momento em que chegava, definitivamente, ao andar superior. O corredor, estreito e cumprido, possuía duas direções: à esquerda, que levava à uma pequena varanda; e à direita, que terminava na porta “entreaberta” do quarto de Allan.
- Você está ai dentro?
Sem obter resposta, decidiu prosseguir adiante. E, nesse momento, suas vísceras foram possuídas por terror, pois um horrível cheiro de carniça açoitou suas narinas. Parou, colocou a mão na boca, tapando o nariz, e sentiu vontade de vômitar. Por alguns segundos, imaginou Paula dentro do quarto. Estaria ela sentada na cama, ao lado do filho morto, fazendo carinho no corpo enfaixado? Ou estaria vestindo o cadáver com um terno, preparando-o para o velório do dia seguinte? Todos esses pensamentos passeavam na mente de Edgar, como cobras peçonhentas, chacoalhando os guizos.
Ignorou o medo anexo a todos àqueles pensamentos infundados, e decidiu avançar. Até que, com pisadas de gato, chegou à soleira da porta e colocou a mão direita na maçaneta, segurando-a com pulso firme. Expandiu a fresta e enfiou o braço esquerdo, o qual portava o candelabro, no interior do quarto. Em razão da claridade, Edgar pode notar o volume que havia sobre a cama, ao fundo do quarto.
- Está ai dentro, Paula?
- Sim. – Respondeu a esposa.
- O que está fazendo?
- Venha ver.
Mesmo perplexo, optou por entrar. O lugar aparentava estar da mesma forma como era antes: uma escrivaninha cheia de papéis velhos; um tapete felpudo, de cor cinza; um guarda roupas infantil, encomendado em um Ateliê Baiano; e a cama. No entanto, a ressalva ficava por conta do ar. O fedor de decomposição era tão forte que, apesar de respirar pela boca, Edgar não podia conter o avanço da podridão em sua face - os olhos ardiam, e a boca produzia uma grossa saliva de sabor amargo.
- Chegue mais perto. – Continuou a voz da mulher.
- O que é isso Paula? Sai dai de baixo... Por Deus!
Havia um cobertor escuro que cobria toda a extensão do colchão, não dando margens para interpretações a respeito do que estaria deitado sobre a cama. No entanto, estava claro que a voz de Paula soava de lá. Edgar engoliu em seco, sentindo o gosto ruim das bactérias mortas, e abaixou as velas para poder observar com maior precisão: o cobertor não se mexia, nem um centímetro sequer.
- Paula, levanta dessa cama! – Ordenou.
- Nos deixe em paz! Você não nos ama! – Respondeu.
- Como assim não amo?
- Você achava mesmo que todas as coisas erradas que fez iriam ficar escondidas, para sempre?
- Paula, o que é isso? O que você está dizendo?
- Minha mãe costumava falar um ditado: não adianta esconder coisas podres... Elas vão feder em breve!
- O que?
- Não adianta esconder coisas podres... Elas vão feder em breve!
- Pare com isso pelo amor de Deus! – Gritou o marido.
- Não adianta esconder coisas podres... Elas vão feder em breve! - Exclamou a voz da esposa, pela terceira vez, de forma alta e sonora, fazendo vibrar os vidros da janela do quarto.
Então, com um puxão seco, em um ato desesperado de susto misturado com terror, Edgar apanhou o cobertor e o atirou ao chão. Em cima da cama, os corpos decompostos de Paula e Allan se abraçavam de forma fraternal. As carnes podres e esverdeadas, de ambos, escorriam dos ossos e os mantinham colados no colchão, como se fossem manchas de fungo. A iluminação precária, oriunda do candelabro, tremulo, permitiu que o marido observasse larvas entrando e saindo dos buracos das faces dos cadáveres: a esposa e o filho.
As pernas de Edgar estremeceram. O inevitável vômito – mandioca com feijão e carne de porco - foi expulso em um generoso jato, parte saindo pela boca e parte pelas narinas, queimando-as.
- Meu amor... O que é isso – Grunhiu o marido, como se fosse um porco sendo abatido.
Segundos depois, e ainda em choque, percebeu que o cadáver de Paula segurava um papel, na mão esquelética. Em seguida, teve trabalho para retirá-lo – um fio grosso de vômito ainda escorria pela boca. Ao contemplar o pedaço de folha, percebeu que tratava-se de uma carta escrita a próprio punho. Rapidamente, reconheceu que era a letra da, então, falecida esposa.
01/11/1892
Eu sempre desconfiei de vocês dois!!!
Mas agora eu descobri tudo. Sabe como? A própria Leda me contou! Ela disse que estava se relacionando com você há mais de um ano, e que juntos pretendiam fugir para Mato Grosso, após a inauguração da ponte em São Paulo. Ela também disse que estava arrependida, mas que você insistia em ir embora, dizendo que não gostava mais de mim, do casamento e do filho.
Desgraçado!
Viva, a partir de agora, sabendo que o Allan, na verdade, estava bem!!! A pneumonia estava sarando. Mas, depois do que a Leda me disse, decidi que deveria cumprir o seu desejo: que a sua família não existisse!
Pois bem, aqui estamos nós dois... Do jeito que você queria!
Não se preocupe. Ele não sofreu... Tomou o veneno e dormiu rapidinho. Na sequencia, eu também tomei a minha porção e o abracei. Agora, juntos, estamos felizes. Tenho certeza de que ele, de verdade, me ama!!!
Mas, saiba de uma coisa...
Se por acaso houver vida após a morte... Eu vou voltar para te atormentar... Grave bem isso...
Eu voltarei...
Se for possível, estarei logo ai... Atrás de você, no momento em que estiver lendo essa carta...
Fim