MANÍACO DAS ESTRELAS (DTRL-18)

Que espécie de homem será esse, ou que tipo de criatura ou

simples fera está ali oculto sob as feições de um homem?

Bram Stoker

Paty:

Estou me sentindo bem nos últimos dias, por causa do novo remédio, aí consegui ajuda de um enfermeiro pra poder te escrever e quero aproveitar pra contar a verdade e se não acreditar, tudo bem; afinal sou só uma louca que dorme de pijama de força. Mas você precisa saber a verdadeira história do Maníaco das Estrelas e não o que passou na TV.

Lembra, Paty, do delegado que solucionou o caso? Como era mesmo o nome dele? Amante, Elefante, Farfalhante, Berrante, enfim, alguma coisa com “ante” no final... Ele tava todo se achando com a pseudo-resolução do caso que se esqueceu de umas coisinhas importantes: a verdadeira identidade do maníaco e as duas meninas desaparecidas. Eu sei de tudo, mas ninguém acredita, e é por isso que estou aqui com meus novos amigos loucos.

E a ironia é que eles são mais normais que nós duas juntas!

Meu Deus! Desconsidera isso que é por causa do novo remédio...

E o papai e a mamãe, como estão? E a Mimosa? Desfiando muito o tapete da sala? Que saudade do ronronar dela dormindo, quentinha, encima da minha barriga, enquanto eu lia deitada na cama... E você? Tá namorando? Fica tranquila que agora você tá segura.

Desculpa essa enrolação; se quiser passar pra folha seguinte, tudo bem. É que tô tomando coragem pra contar o que não queria que você soubesse, mas preciso da sua ajuda... Não sei até quando o novo remédio vai fazer efeito!

Queria tanto que vocês viessem me visitar. Eu nem ligaria pro cheiro do charuto do papai ou pro tique nervoso da mamãe. Mas sabe de quem tô morrendo de saudade? Da vovó! Ela tá bem de saúde? Quer dizer... tanto quanto os seus oitenta e nove anos lhe permitem, é claro...

Às vezes meu braço dói e ainda tenho a sensação de sentir a agulha entrando, a linha passando por dentro da carne e tenho vontade de arrancar essa maldita tatuagem com os dentes! Lembra, Paty, que tínhamos dezesseis anos quando decidimos tatuar uma estrela no braço assim que fizéssemos dezoito e ficávamos desenhando e discutindo o tipo e a cor? Quando chegamos no estúdio pensei em desistir, mas você entregou o desenho para o tatuador e saímos de lá com a nossa estrela azul no braço.

Vou enrolar mais um pouquinho só e já começo, tá bom? Quero te falar de uma pessoa: o Carlos. Ele está aqui porque foi atacado por vampiros e lobisomens, mas conseguiu escapar, só que ninguém acredita nele. Acho que é por isso que me sinto atraída por ele, sabe? Com certeza não é pela beleza: parece que não faz a barba há anos, não penteia os cabelos e morre de medo que a noite chegue. Mas é uma gracinha! Hoje me deu uma flor. Foi tudo escondido, para os enfermeiros não verem; eles não gostam dessas coisas. Ele cochichou para que eu abrisse a mão e colocou nela a flor toda amassada; era vermelha, não sei que tipo. Senti até uma coisa nas pernas, mas comi logo a flor para que os enfermeiros não desconfiassem de nada! Você sabia, Paty, que as flores são amargas?

E por falar em coisa amarga, vou contar logo antes que perca a coragem e, por favor, Paty, não foi culpa sua!

Esse Maníaco das Estrelas me pegou num ponto cego do estacionamento do shopping, por isso não havia imagens, me agarrou por trás com técnica de arte marcial, tapou minha boca e o nariz com um lenço, aí apaguei. Não sei o que havia no lenço, mas acordei no escuro, com dor de cabeça, com um zumbido nos ouvidos, com tontura, com moleza, com o estômago embrulhado e com as mãos presas! Vi uma luz fraca e ouvi alguém perguntar se dormi bem, fiquei agitada, tentando falar com a língua enrolada, aí acho que alguém colocou um lenço no meu rosto e minha voz foi ficando cada vez mais longe... longe... e longe... Acordei outra vez no escuro, meus ouvidos ainda zumbiam, a cabeça ainda pesava, senti muita sede, uma moleza, o corpo todo dolorido e só consegui gemer que queria água. A luz fraca acendeu e alguém levantou minha cabeça e me fez beber água e enquanto isso aquela mesma voz, que parecia de homem, falou que dormi muito.

Meus sentidos melhoraram um pouquinho e me lembro de ter perguntado se era água de coco e a voz começou a falar como eu gosto de água de coco, mas eu não gosto; você é a fanática, eu não! Lembra quando a gente era criança e você queria encher a banheira com água de coco prá tomar banho? Bons tempos, né Paty!

Acho que desmaiei, não sei bem, o escuro, a fraqueza, a sede, a falta de noção de tempo, sem saber onde estava... tudo confuso... Ainda hoje a linha do tempo que o delegado com “ante” no final do nome - não consigo lembrar o nome dele – a linha do tempo que ele me apresentou não faz sentido pra mim. Mas acordei! Não sei quando, mas acordei. Foi aos poucos, como se ainda estivesse bêbada; você que é forte pra bebida e eu sou uma pamonha. A luz fraca não estava lá, mas o zumbido no ouvido e a dor no corpo estavam; tentei levantar, mas além da tontura, minhas mãos estavam presas. Aquela voz de homem, um tanto familiar, falou que já era hora de acordar e acendeu de repente uma luz muito branca e senti a pancada no meio do cérebro. Não adiantava fechar os olhos; parecia que a luz estava acesa dentro deles.

Agora, Paty, se prepara, senta, toma uma água com açúcar e respira fundo porque vai começar a parte pesada. Mas antes vou enrolar mais um pouquinho pra ver se tomo coragem... ou se perco ela de vez.

Não é bem enrolação, é que na verdade sinto vontade de falar do Carlos. Depois das noites difíceis, quando escapa dos vampiros e lobisomens, ele senta num canto e se encolhe, balançando o corpo pra frente e pra trás, como uma cadeira de balanço. Na primeira vez que o vi assim, sentei ao seu lado e como ele não me respondia, fiquei ali, sem falar nada, só ao seu lado e quando ficamos mais amigos, passei a segurar sua mão e percebi que ele balançava menos. Quando algum enfermeiro chega perto, solto sua mão e o balanço do seu corpo aumenta, aí pego de novo quando for seguro e o balanço diminui. Um dia que acordei semi-alegre, dei um abraço nele e acho que daí em diante começamos a nos entender bem na nossa loucura; é quase como se estivéssemos ficando! Mas com ele quero coisa séria, sabe Paty? Será que peço ele em namoro ou espero ele me pedir? O que você acha?

Lembra quando fiz aquele intercâmbio em Londres logo que fizemos vinte anos e você não foi porquê o Renato não deixou? Você dizia, com a mão direita na cintura, que ele não tinha a sua nota fiscal, nem sua escritura no nome dele. Contou que quando terminou o namoro, o Renato te pegou pelos braços, sacudiu com força gritando que você não podia fazer aquilo com ele e deixou bem claro que faria uma besteira, aí sumiu de uma hora pra outra. Você lembra de tudo isso, né? Tá sentada? Acho melhor tomar um calmante também!

Acordei amarrada numa cama molhada e sabe com quem dei de cara? Com o próprio Renato, seu ex-namorado! Que confusão dolorida na cabeça! Olhei em volta e não reconheci o local, acho que comecei a chorar, aí ele foi bruto e me mandou parar de resmungar senão me deixaria no escuro por mais tempo e foi o que aconteceu. Já que o perigo agora tinha uma cara, o cérebro começou a pensar devagar, mas o suficiente: se aquele era o Renato então ele nos confundiu, ou será que só queria se vingar de você? Ou estava apaixonado por mim? E como ele voltou e ninguém percebeu? Onde e quando eu estava? As reflexões pararam quando me dei conta que a cama estava molhada pelo meu próprio xixi! E eu estava com vontade de novo! Estava apertada! Chamei várias vezes, gritei, berrei e nada! Enfim, Paty, fiz xixi de novo e me senti envergonhada, humilhada! Chorei por um bom tempo até que senti aquela pancada dentro do cérebro quando a luz muito branca acendeu e ele apareceu. Era o Renato mesmo! Deu três tapinhas no meu rosto e mandou que eu fosse boazinha senão ficaria ali no meio do mijo!

Um bom tempo depois, não sei bem quanto, ele me deixou tomar banho e o instinto de sobrevivência acordou. Tomei a decisão de acabar com ele quando a oportunidade fosse segura. Sempre tenho boas idéias quando tomo banho. Lembra que a mamãe ficava batendo na porta do banheiro dizendo que eu ia acabar com a água do planeta? Fiz o plano A, B, C, D, E, F, G e H. H de homicídio! Se possível, bem demorado! Só da boca prá fora! Da raiva prá fora! Do ultraje prá fora!

Paty, o Renato nos confundiu! Te amava tanto e levou gato por lebre! Ele falava de coisas que só você faz e gosta: como balança a cabeça pra tirar dos olhos a franja que não tem, como coloca a mão direita na cintura quando fica brava, como ri até a barriga doer se alguém tropeça ou cai, como você segura o copo com o dedinho levantado, como dorme abraçada com seu ursinho cor de rosa, da água de coco que já te falei, da lasanha com molho branco que detesto, do chocolate meio amargo, de quase todas as nossas poucas e marcantes diferenças. Ele me chamava pelo seu nome! Ele me chamava de Patrícia! Pa-trí-cia!

Naquela noite eu estava com o seu carro, com o seu vestido azul, com a sua sandália preta, só a bolsa era minha; queria ser bonita como você, não sei explicar porquê! Que besteira, né? O papai nunca sabe quem é quem e até a mamãe fica piscando seu tique nervoso, indecisa. Somos iguaizinhas, mas diferentes e mesmo assim eles nos confundem! O burro do Renato nos confundiu! E continuou confundindo porque me transformei em você! Será, Paty, que psicopata de sucesso só tem no cinema? Espero que todos sejam como o idiota do Renato nesse quesito!

Paty, me sinto tão nada... Só me sinto alguma coisinha, quando estou perto do Carlos. Ele tenta me incentivar dizendo que “essas feras” só são perigosas quando escurece e que na luz do dia não metem medo. Você percebeu que gosto de falar dele, né? Bem que você podia falar bem dele para o papai e a mamãe; essa ajuda seria bem vinda.

Paty, vou parar um pouco. Você viu que minha letra tá ficando feia? Sinto que o efeito do remédio tá passando... só vou jogar uma água no rosto e já volto. Sugiro que faça o mesmo, porque o que vem a seguir... Já volto...

Pronto... Vou logo ao assunto porque comecei a tremer e isso quer dizer que o efeito do remédio tá passando mesmo...

Quando saí do banheiro, observei o ambiente: era um quarto de uns quatro metros por quatro, paredes verde água – que você tanto gosta -, um armário embutido com vestidos leves das suas cores preferidas, lingerie com rendas delicadas - tudo a sua cara -, coisas pra higiene e beleza, uma televisão no suporte de parede, aparelho de ar condicionado, a cama limpa, o criado mudo com um abajur, um prato daquela lasanha horrível e um copo de água de coco, que só você gosta, mais nada. Nada mesmo, nem o Renato, nem janelas, nem a porta!

Mandei ver naquele cardápio horroroso porque estava morta de fome. Comi e bebi lambendo os beiços, caso ele estivesse me vendo por uma câmera, e comecei a sentir um sono estranho e gostoso; acordei com alguma coisa passeando no meu rosto e era o nojento do Renato fazendo carinho... carinho de lobo na ovelha! Ele revelou que esteve um pouco ocupado nos últimos dias, cuidando de uma surpresa, aliás, duas e fez carinho na minha estrela azul, falando alguma coisa sobre as Três Marias, aquelas três estrelas lado a lado. Estava feliz como se fosse o dia do casamento de vocês! Graças a Deus isso nunca vai acontecer! Já nem tenho certeza se é graças a Deus mesmo... Aliás, no momento acho que certeza “é manga de colete”, como diz a vovó! Que saudade da nossa velhinha fofinha, que dá vontade de morder!

Ai, Paty, não sei se vou conseguir... enrolei tanto que acho que perdi a coragem! Daria tudo pra ouvir o papai dizendo que confia em mim, só pra tirar de si a responsabilidade ou a mamãe levantar meu queixo, piscando muito os olhos, também dizendo que confia em mim! Ai, MEU DEUS! Que saudade da Mimosa! Você tá dando aquela ração que ela gosta, né? Num esquece de fazer coceguinha no pescocinho dela, tá!

Me deu mais água de coco pra beber e eu já sabia que era ali que estava o sonífero, acordei não sei quanto tempo depois, amarrada numa cadeira, num outro lugar. Ele estava mesmo feliz porque ia dar um presente que você nunca esqueceria e saiu da frente pra mostrar duas moças amarradas em uma mesa larga.

Paty, acho que vou vom

Puta merda, Paty, que inferno que é vomitar! Argh! Preciso tanto de você, do seu carinho, do seu incentivo, da sua força! Queria ser como você, sabia? Você me ajudava quando eu vomitava, sem frescura nenhuma; já eu, tentei te ajudar uma vez e vomitei junto! Que pamonha!

Comecei a exigir explicações, gaguejar, tentar me soltar e elas gritavam com as bocas fechadas... fechadas não; costuradas! As bocas costuradas, Paty! Quando vi aquilo, comecei a chorar, a pedir misericórdia, tentava não olhar e os olhos apontavam na direção da moça loira, depois na direção da japonesa... Paty, elas eram lindas e estavam nuas! Elas tinham uma estrela azul tatuada no braço! Uma estrela azul!

Puta merda, de nov

Acho que você não vai entender minha letra daqui em diante; a tremedeira aumentou e, como você percebeu, fui vomitar outra vez... Mas vou me esforçar pra firmar a mão e empunhar a espada, como um Conan, pra cortar a cabeça desse bosta do Renato!

Adivinhei qual seria a surpresa e vomitei! Vomitei em cima de mim mesma! Paty, eu estava nua! E vomitei em cima de mim! Soltei um berro monstruoso e, quando ele me viu toda vomitada, sorriu e piscou pra mim! Ele sorriu e piscou!

Merda, de n

Tenho que acabar logo essa carta antes que ela acabe comigo! Não tenho mais nada pra vomitar, só as tripas e a tremedeira continua aumentando. Sinto a tampa da cabeça formigar... Você já sentiu isso? O Carlos sente quando os vampiros e lobisomens estão farejando o ar atrás dele. Acho ele o cara mais tudo de bom que já conheci, sabia? Você vai falar bem dele pro papai e pra mamãe? Se puder falar pra vovó e pra Mimosa também, será melhor ainda. Por favor, vaaaiiii, faz isso por miiiiimmm!

Você sabia que o Renato já foi enfermeiro? Ele fez curativo na vovó quando ela caiu descendo do ônibus, lembra? Ficou tão perfeito que ganhou a família toda. Desgraçado! Só a Mimosa sabia; arrepiava o cangote, fazia careta, subia na estante e só descia bem depois que ele fosse embora. Cuida bem dela que é a única pessoa sensata da família, viu!

Quando começou a cortar o braço da japonesa, com um bisturi que brilhava, nós três começamos a nos debater e ele não se incomodava, gritei que eu era a Priscila e senti um tapa no rosto. A cadeira ia tombando, mas ele me segurou pelos cabelos e gritou que eu não estragasse a surpresa! Fiquei atordoada, tremendo... sentia nojo, culpa! Sentia culpa!

Continuou cortando o braço da japonesa que me pedia socorro com os olhos e o sangue escuro e brilhante escorria pelo braço, pela mesa e pingava num balde! O sangue brilhante e pulsante pingando no balde! Vomitei outra vez encima de mim, mas quando ele me mostrou o pedaço do braço dela, pingando sangue, e vi a estrela azul borrada de vermelho, comecei a berrar que eu era a Priscila e tomei um soco no nariz e a cadeira tombou pra trás. Ele levantou a cadeira e o sangue entrava pelos cantos da minha boca, com sabor de ferro. É desse sabor que os vampiros e lobisomens, que perseguem o Carlos, gostam.

Ele encostou o pedaço de carne ainda quente no meu braço e disse que ia ficar lindo: as Três Marias juntas. Cuspi na cara dele, cuspi sangue e vômito na cara dele! Acredita, Paty, que o porco nojento, filho da puta, me deu um beijo na boca? Depois lambeu os beiços sujos de sangue e vômito! Ai, que nojo! Puta merda, que nojo!

Voltou pra perto da mesa, demorou um pouco e voltou. A japonesa olhava pra mim! Todo o sangue dela escorria pro balde, cada vez menos pulsante... O sangue brilhante e menos pulsante pingando no balde! Senti uma picada, depois alguma coisa ardendo dentro do braço, uma sensação ruim de linha dentro da carne, mil vezes pior que o fio dental entre a gengiva e o dente!

Paty, agora você precisa ter estômago de avestruz, como diz a vovó. Ela dizia isso daqueles programas de reportagem policial que nós duas dizíamos que odiávamos, mas não conseguíamos sair da frente da TV, lembra? Por falar em estômago de avestruz, tive que fazer umas coisinhas sórdidas com o enfermeiro que te levará essa carta, senão você não saberia a verdade. Por favor, Paty, não me julgue...

Enquanto ele costurava a tatuagem da japonesa ao lado da minha, eu berrava que era a Priscila e ele sorria dizendo que tinha certeza que depois de pronto eu lhe agradeceria. A ocasião se apresentou e não tive dúvidas: abocanhei sua orelha inteira e as forças de todos os músculos foram para as mandíbulas! Senti gosto de ferro e senti também suas mãos abrirem minha boca com uma força descomunal.

Acho que dessa você vai gostar, Paty: ele chorava, segurando a orelha, com o sangue escorrendo pelo braço e pingando do cotovelo para o balde. Comecei a tirar sarro dele, como fazia quando você dava uma de chorona. Você também fazia isso comigo e era a vovó que socorria a gente, lembra? Será que um dia vou poder chorar no colo dela de novo? Queria tanto sair daqui, dormir na minha cama, fazer coceguinha no pescocinho da Mimosa...

Ele choramingava como uma bichona segurando a orelha, aí perguntei se o “certificado de macho” dele tava vencido; a japonesa não tinha mais forças, mas a loira riu. Ele correu na minha direção, me deu uma cabeçada na testa, a cadeira caiu pra trás e não lembro de mais nada, até acordar naquela cama, com o bosta do Renato deitado ao meu lado, todo carinhoso. Demorou um pouco para que eu tomasse pé da situação, com tudo doendo na cabeça a partir do nariz. Achei que tive um pesadelo; nada disso! Havia três estrelas azuis no meu braço, duas costuradas e a do meio era a minha!

Vou vomitar d

Ai Meu Deus, tá acabando, Paty... Tá acabando a história e acho que eu também tô acabando...

Paty, eu sei que o Renato já bateu em você, que já te humilhou e aposto que te perdoava pelo transtorno que “você mesma” causava na relação. Você sabe que comigo pode falar sobre tudo, né? Sei disso porque você ficava calada e tensa, isolada, cabeça baixa, olhos vermelhos, triste. Só usava mangas compridas e calças, e eu te via escondendo as caretas de dor.

Vomitei no chão com a cabeça pendurada pra fora da cama e vi uma coisa, uma possível salvação: um meio tijolo solto no rodapé da parede, perto do pé da cama. Ele limpou tudo, sem reclamar, animado com a surpresa que te fez. Apontei para o curativo do meu nariz e da orelha dele, fingindo cara de curiosa, e ele sorriu dizendo que foi só um acidente que eu causei, mas que me perdoava.

Você acredita, Paty, que o Renato me fez assistir Kung-fu Panda abraçada com ele? O filho da puta ria como criança! Enquanto ele se divertia, coloquei o dedo na goela e provoquei o vomito e enquanto ele estava de costas, pegando o pano e o balde no banheiro, coloquei o tijolo debaixo do travesseiro. Pronto, já estava armada; era só esperar. Não sei se é verdade, mas ouvi dizer que uma pancada um pouco abaixo da linha da orelha deixa a pessoa sem noção de espaço e direção. Enquanto ele limpava meu vomito no chão, peguei o tijolo, mirei e bati forte! Ele tentou levantar e bati com mais força ainda! Ele continuou tentando levantar, aí pulei nas suas costas, berrando que sou a Priscila e batendo mais forte ainda várias vezes! Aí sim ele caiu encima do vomito, sem se mexer. Filho da puta! Caiu com a cara no vômito! Com a cara no vômito! Filho da puta! Filho da puta! FILHO DA PUTAAAAA!

Não sei se você vai entender esse último parágrafo, porque tremi tanto que a caneta quase não parava na mão! E quanto palavrão, né! Quando o efeito do remédio vai passando, nem eu me reconheço, sabia? Lembra a primeira vez que falei um palavrão? Foi na saída do jogo, aquele bando de maloqueiros, um inferno, aí num aguentei e soltei... Até que foi um palavrãozinho à toa, né? Mas agora, quando o efeito do remédio vai passando, até o Carlos me olha meio espantado, coitado!

Às vezes sinto o nariz latejar e o braço arder em volta da estrela e o doutor diz que é da minha imaginação! É que ele não foi confundido com a sua irmã gêmea, ninguém costurou estrelas no braço dele, ninguém quebrou o narigão dele! Filho da puta! Sabia que o meu nariz ficou torto? Além disso, tô gorda! Uma baleia de nariz torto!

Mas sangue frio é a alma do negócio nessas horas, Paty! Enfim conheci aquela coragem que você me atribuía e eu negava. Trêmula, mas corajosa, chutei a bunda do filho da puta! Foi uma sensação maravilhosa! Queria que você tivesse a chance de chutar aquela bunda fedida quando ele te humilhava, mas você sofria calada. Como a vovó que apanhava do filho da puta do vovô, que mereceu ser cortado em três nos trilhos do bonde!

A saída só podia estar no armário embutido, mas não encontrei nada. Revistei os bolsos do Renato e encontrei um tipo de controle remoto, apontei para o armário, tremendo, apertei e ouvi um estalo! Uma porra de uma porta abriu, no fundo da merda do armário! Que filho da puta! Saí pelo fundo do armário, ou entrei, sei lá, e fui parar naquela sala, com a mesa grande, vazia.

Fiquei desesperada, Paty! Não havia outra porta! E as paredes e o teto eram forrados com caixas de ovos! Milhares de caixas de ovos! Por isso ele não se importava com o barulho! Filho da puta, desgraçado! Eu podia ver aquelas duas meninas ainda encima da mesa, com as bocas costuradas e o sangue brilhante e pulsante pingando no balde!

Me dei conta de que não tinha mais o luxo de ficar desesperada! Olhei com cuidado todas as paredes e nada! Comecei a apertar o controle remoto em todas as direções e nada! Ia voltar para onde estava o bosta do Renato quando uma coisa do lado direito me chamou a atenção: uma maçaneta! Uma porra de uma maçaneta forrada também com caixa de ovos!

O suor escorria da testa para os olhos e tudo começava a ficar embaçado, mas vi uma fechadura; só precisava achar a chave e pronto. Voltei e procurei nos seus bolsos e ele se mexeu. Pulei encima dele, peguei o tijolo e bati no mesmo lugar, esfreguei a cara do filho da puta no vomito e aproveitei pra chutar sua bunda fedida mais um monte de vezes! Ele ainda tentou se levantar, aí dei uma tijolada na tampa da cabeça que até ficou um pedaço do couro cabeludo arrebitado, melado de sangue, aí ele parou de se mexer! E antes de continuar procurando a porra da chave, peguei o tijolo e bati na orelha mordida, até arrancar o curativo, até ficar pendurada, até o sangue brilhante e pulsante escorrer encima do vômito! Matei o filho da puta! MATEI O FILHO DA PUTAAAAAA!!!!

Ai, Paty! Não aguento mais mesmo. Me dá um tempinho que já volto; só dez minutos, tá? Num vai embora...

Pronto, tô bem melhor! O Carlos me deu um dos seus calmantes que ele escondeu grudado no céu da boca, aí guardei no meu pacote de absorventes íntimos. Da primeira vez que ele me deu um, revistaram meu quarto e o único lugar que não mexeram foi nos meus absorventes. Acho que é porque eu guardo um usado junto, pra ninguém roubá-los. Agora a tremedeira tá passando, mas preciso correr porque daqui a pouco vou sentir um sono incontrolável! Essa é a delícia dessas belezinhas: o sono incontrolável!

Abri a porta e estava escuro, procurei o interruptor e nada. Senti uma sutil corrente de ar, tentei ouvir alguma coisa e havia um ruído sem definição, entrei no escuro e fui tateando pela parede e a corrente de ar ficava menos sutil e o ruído menos indefinido. Era um lugar frio, com cheiro de umidade, de cimento fresco e a cada passo a corrente de ar ficava mais real e o ruído mais definido. Aí vi a luz no fim do túnel e ouvi alguma coisa como barulho de carro, mesmo assim, andei com cuidado e identifiquei uma voz, é sim, uma voz e era de mulher! E a luz no fim do túnel ficava cada vez mais brilhante, aí tropecei em alguma coisa que parecia um saco de farinha ou de cimento; era de papel e tinha um pó fino. Contornei o obstáculo, sempre tateando a parede, e cheguei bem mais perto do barulho de carros e de vozes, eram vozes sim, Paty!

Você lembra da Dona Cida, a nossa vizinha - que Deus a tenha – ela acordava cedo, ia varrer a calçada e encontrava as comadres que iam na padaria e conversavam tão alto que pensávamos que elas estavam dentro do nosso quarto! Como xingávamos elas e acordávamos de mau humor, credo! Mas aquelas vozes, que pareciam a Dona Cida e suas comadres, foram a minha salvação!

A luz no fim do túnel era um respiradouro, que nem do porão mal assombrado do tio Sérgio, que dava pra calçada! Chamei elas aos gritos e demoraram pra me ouvir; estavam falando do preço do tomate, uma fortuna! Enfim, elas me ouviram, e chamaram ajuda, aí voltei tateando pela outra parede e...

Espera um pouquinho só, Paty, que preciso jogar uma água no rosto...

Ainda bem que o Carlos me deu aquele calmante, senão...

Minha mão afundou no cimento ainda fresco da parede e chegou numa coisa macia que tive a curiosidade de apalpar e – pelo amor de Deus, Paty! – era um seio de mulher! Era uma das meninas com certeza! O desgraçado emparedou elas! Se o delegado com “ante” no final do nome procurar lá, ele encontra as duas meninas! Sem as tatuagens de estrela azul, mas encontra elas!! Você tem que convencer ele!

Você deve lembrar que, antes do Renato fazer aquele curativo na vovó e ganhar a família de vez, ele também ajudou o papai a fazer a churrasqueira, aliás, ele fez sozinho. Era churrasco todo final de semana e todos elogiavam a bela churrasqueira que o papai fez com as próprias mãos e o Renato não queria crédito nenhum. Mau caráter de marca maior! Só a Mimosa sabia disso!

Alguma coisa me atingiu de raspão na cabeça, me desequilibrei e ia caindo aí o Renato me agarrou e tapou minha boca e nariz com um lenço, briguei, bati, chutei, mordi, arranquei o lenço da sua mão e o escuro foi ficando cada vez mais escuro. Acordei sentindo muito frio, muito peso sobre o corpo, muita sede, muita dor que irradiava a partir do nariz... Eu sabia que estava emparedada como as outras duas meninas, só com a cara prá fora. A diferença era que eu tinha três estrelas no braço e elas nenhuma! E estávamos na mesma parede...

Ouvi as vozes dos policiais, com seu linguajar sujo, e tentei gritar, mas só saia um sussurro rouco. O corredor onde eu estava foi iluminado com lanternas e alguém falou que aquele lugar arrepiava “os cabelos da nuca” e uma voz grossa respondeu que arrepiava “os cabelos do saco também”. Preocupados com seus cabelos da nuca e do saco, foram embora e eu nadei, nadei e nadei e morreria na praia! Naquela porcaria de praia, cimentada numa droga de parede!

Chorei e me veio à cabeça você, Paty, me imitando e dizendo que sou uma chorona e, como a vovó não veio me socorrer, empurrei a cara e os ombros pra frente e o cimento começou a cair, dei uma barrigada pra frente e caiu mais e no terceiro impulso, caí junto com o cimento! Tentei gritar, mas só saia um sussurro rouco! Uma porcariazinha de sussurro! Os corajosos policiais voltaram, de cabelos arrepiados na nuca e no saco, iluminaram o corredor que nem o nariz deles e foram embora.

Desmaiei, Paty, e fiquei ali no meio do cimento fresco, da umidade, do frio, mas fora da parede. Não sei quanto tempo fiquei jogada lá, mas acordei! Já não faço mais questão de acordar, desde que o remédio continue fazendo efeito! Acordei e tudo doía; até as unhas e cabelos! Que horror! E, como um soldado ferido na trincheira, rastejei pra fora do corredor, segui a corrente de ar, subi uma escada cravando as unhas nos degraus e me lembro de ouvir vozes, abrir uma porta, sentir uma pancada no meio do cérebro por causa da luz do dia... Sei lá!

Paty, agora é você que precisa me dizer a verdade: eu estava nua quando me encontraram? Estava né? Por isso o delegado e os policiais me olham como se fôssemos íntimos...

Só mais uma coisa: nossa família não pode saber dessa carta, nem a Mimosa... nem o Carlos. Você faz isso por mim?

Agora vou dormir. Nos últimos dias só tive pesadelos: você com duas estrelas costuradas ao lado da sua, você emparedada, essas coisas assim... Mas essa noite tenho certeza absoluta que vou ter um sonho bonito com você.

Amo todos vocês. Principalmente a Mimosa e você.

Priscila

“E aí, Delegado Amarante? O senhor vai verificar isso ou não?”

“Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece! Marcelô, vem cá! Quero tudo sobre esse tal Renato de Jesus do Bom Parto.”

“Onde o senhor vai, doutor?”

“Encontrar as outras duas estrelas do Maníaco das Estrelas. Chama o Ricardo e o Rafael e pega uma marreta. Temos um trabalhinho prá quem tem estômago de avestruz, como diz a vovó.”

“Delegado, Amarante! Antes de nós irmos, queria pedir um favor pessoal.”

“Nós é muita gente; você fica e o favor pode esperar.”

“É claro que eu vou, nem que seja de táxi! E o favor não pode esperar!”

“Que favor “pessoal” é esse?”

“O senhor vai cuidar do enfermeiro tarado que fez aquilo com a minha irmã, não vai?”

“Marcelô, vem cá! Manda trazer prá cá o enfermeiro que ela vai descrever; é lá da clínica onde tá a irmã dela. Vou ter uma conversinha de homem pra homem com ele.”

“É um gordão, careca e manco, deve ser fácil achar. E tem cara de tarado!”

“Doutor! Renato de Jesus do Bom Parto: tem uma queixa de desaparecimento feita pela moça aí há seis meses e tem mais. Era enfermeiro num hospital do interior, mas largou a profissão há quatro anos; parece que tem uns bêós por lá que não deu tempo de ver ainda; veio pra cá, namorou com ela, depois sumiu. Calma doutor, que tem mais: o nosso Maníaco das Estrelas chama Alexandre Jesus do Bom Parto, certo? Calma doutor! A locatária do apartamento de um tal Alexandre Jesus do Bom Parto deu queixa do desaparecimento dele há um quatro meses. Ela só notou o sumiço quando foi cobrar o aluguel e não achou o rapaz que nunca atrasou. Sabe quem é esse Alexandre?”

“Irmão do Renato. Ela falou de alguma coisa estranha numa das paredes do apartamento?”

“Oi? O que a senhorita disse?”

“Fala logo, Marcelo!”

“Deixa eu ver... aqui: “A declarante ainda reclama de uma reforma não autorizada no apartamento, afirmando que o desaparecido levantou uma parede, dividindo a sala.” Calma doutor, esse mesmo Alexandre, talvez Renato, alugou uma casa há cinco meses, sabe onde?”

“Corre prá esse apartamento, Marcelo, derruba essa parede e me mantém informado! Hoje vai ser um dia que não acaba mais!”

“Delegado amarante, posso ou não te pedir um favor pessoal?”

“Você já pediu, lembra?”

“Ah não! Aquilo do enfermeiro é sua obrigação. O senhor pode ajudar a Priscila e o Carlos, o namorado dela? Por favor, vai!”

“Tá bom, vou ver que posso fazer. Duas assombrações a mais não fazem diferença...”

“Obrigado, doutor Amarante. Mais uma coisa... Meus pais não podem saber dessa carta, certo? Pronto, agora podemos ir.”

“Você num desiste mesmo, né? Aná, vem cá! Essa moça é a Patrícia e ela vai acompanhar a gente numa diligência; sua missão é levar ela até lá e deixar ela longe da gente, entendeu?”

“O Maníaco das Estrelas foi encontrado ali, com uma orelha só. Na carta ela fala de um corredor e um respiradouro de porão... deve ser por aqui. Lá Ricardô; ilumina lá. Tem que ser aqui! Caralho! Aquela louca falou mesmo a verdade!”

“Puta merda, doutor. Olha só, tem o formato de uma pessoa! Olha aqui o contorno da bunda dela! Por isso ela tava cheia de cimento e a gente num sabia porquê!”

“Doutor, o Marcelo no telefone!”

“Fala Marcelo! Um homem dentro da parede? O que? A boca costurada? Puta merda! Deve ser o tal Alexandre. Bom, vamos lá. Eram duas moças, então as cabeças devem estar nessa linha. Mais luz aqui, Ricardô!”

“Por que o cimento aqui tá marrom? Ele fez com terra em vez de areia?”

“É o sangue brilhante e pulsante pingando no balde!”

“Balde?”

“O filho da puta deixou as moças sangrando até morrer e o sangue pingava num balde!”

“Caralho! Ele usou o sangue delas como água no cimento?”

“Rafael, passa pra cá. Ricardô, põe a luz aqui. Bate aqui, Rafael. Devagar, devagar. Aí, tá bom.”

“Puta que pariu! Que cheiro!”

“Meu Deus! A boca costurada! A outra deve estar aqui. Devagar, Rafael! Boca costura de novo!”

“Doutor! Doutor! A moça!”

“Tô vendo, porra; é a japonesa.”

“Não doutor, a irmã da vítima!”

“Meu Deus! E eu não acreditei na Priscila! Huuurrrrghhhrréééééc... Huuuurrrghhhéééccch... Huuuurrrrrggghhhhrrréééáác...”

“Porra, Aná! E ela ainda vomita na cena do crime!”

“´Desculpa, doutor! Ela correu mais que eu! Vem, vamos lá prá fora.”

“Meu Deus! E eu não acreditei na minha irmã!”

CRIME PASSIONAL

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 14/10/2014
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