O Voo da Fênix
Não sei ao certo quando tudo começou a “desandar”, e a vida, como ela deveria ser – como ela deveria ter sido –, passou a fazer sentido em minha cabeça, um berçário de estrelas onde cada neurônio superdesenvolvido era um astro em eclosão. Talvez tenha sido no momento em que as lâminas tornaram-se afiadas demais para minha carne, iniciando o processo de incisão em minha consciência. Talvez as cicatrizes tenham permanecido demasiadamente gravadas, como memórias indesejadas e voluptuosas, que se expandiam em velocidade estrondosa, corroendo cada hexágono imaculado.
Um lembrete do que eu era e onde deveria estar.
Quem sabe, possa ter sido um jogo do que as pessoas chamam de destino?
Ao certo é impossível de se calcular. Nunca fui bom com as crendices que a mim sempre foram desconhecidas. Estranhas sensações que se assemelhavam à primeira vez que vi um dos meus: Congelado, estático, azulado… não para esse tom, acho que se tratava de uma tonalidade mais vítrea, quase que imperceptível, e gélida. Mas não terminara ali – jamais fora assim, tão fácil. Muito pelo contrário, havia apenas começado.
Os vergões esmeraldeados formavam um fluxo de retalhos contrários em minha pele, acrescentando mais linhas, tornando os seis em setes, oitos, noves… ferimentos que surgiam além da minha capacidade de contá-los. O brilho refletido nas agulhas ainda me incutia o medo habitual, mesmo depois de tantas injeções. O líquido viscoso tracejando através de minhas veias, queimando neurônios, energizando impulsos de dores intermináveis. Amostras de tecidos eram coisas recorrentes, com frascos e mais frascos retirados. Os talhos cresciam cada vez mais, ao passo de que os órgãos remanejados davam princípios do iminente problema causado por suas ausências. Cada dia uma nova dor, uma lembrança amarga para chamar de minha, afogando-me em uma realidade alternativa de um futuro predestinado. Cada marca uma história, cada história uma mágoa, e cada mágoa uma nova imagem, imortalizada em seu quadro único. Como as pegadas que nunca se apagam nas areias do tempo.
Por vezes eu tive saudade. Um sentimento que consumia pouco a pouco, derretendo como o ácido que desfazia o tecido morto, comendo cada partícula que fosse possível digerir. Era uma vibração diferente e boa, por certo lado, mas difícil de compreender quando não se sabe ao certo o porquê. Era a falta incompreendida, a vontade de algo não alcançado; lembranças de coisas não vividas. O desejo arrebatador que me causava convulsões em noites de excitações alardeadas, acarretando alvoroço aos fantasmas que me rodeavam. Eu era o prêmio, uma recompensa máxima pelos esforços que nunca eram recompensados. O sucesso da busca incansável. O rei cuja coroa era ornamentada de chagas, cada ferida um novo elo. Era linda e feita de esmeraldas.
Meus súditos sabiam o que era melhor para mim.
A estranheza a tudo o que me cercava começou se instalando aos poucos, criando bolsões de ar em minhas concepções cada vez mais infladas. Hoje eu sei o que é a realidade, mas só tive a percepção de minha natureza após longas e laboriosas noites. Como um quebra-cabeça, montado durante décadas, cada peça encaixada perfeitamente em seu devido lugar, as palavras que soavam estranhas foram tomando formas compreensivas, e os insultos, que durante bom tempo passaram despercebidos, fazendo um sentido cada vez mais latente. Eu não era um deles, não merecia viver como eles viviam.
Foi então, que a partir daí, comecei sentir aos poucos o que era o ódio. Um sentimento amargo como o gosto deixado pelos dopantes injetados. Uma praga se alastrando por dentro, de forma incontida, infectando cada novo pensamento que brotava. Deu-se início ao ciclo de hibernação transcendental. Meu corpo comparecia, mesmo que forçado, a todas as sessões de confinamento e tortura, mas minha mente evoluía.
A ascensão, a princípio, era um buraco cavado em negrume desconhecido. Eu não subi, mas sim desci em queda infinita, cada vez mais para dentro, conhecendo algo que nunca pensei que pudesse existir. O universo interno era de proporções intangíveis, repleto de quasares reverberando a energia primordial em todas as direções. A profusão de vida que existia em um espaço tão compacto inchava minha compreensão numa inserção infinita de conhecimento. Convergindo a mim na velocidade da luz, rasgando o véu de minha visão, removendo as amarras etéreas que me prendiam à física limitada do entendimento dos seres que se julgavam superiores.
De olhos abertos, pela primeira vez, pude estender minhas asas. Libertar-me dos grilhões pesados que se agarravam aos meus pés, tanto quanto eu me prendia a existência em isolados instantes derradeiros. As brilhantes paredes de inox refletiam toda a glória suja do rei que me mirava no reflexo. Com o olhar inquisitivo, questionava-me sobre onde tudo iria acabar afinal. A verdade faz parte de você, mas de agora em diante, do que mais será capaz? E com o sentimento de desgosto que havia acabado de adquirir, percebi que naquele momento eu não me sentia mais como um animal. As emoções inseridas juntas aos medicamentos, também me tornavam algo que minha nova sabedoria ensinara a repudiar. Ali, olhando para mim e além, senti-me como os predadores. Os súditos carcerários que haviam me roubado a liberdade. Senti-me pela primeira vez como um humano.
E como humano – agindo como um –, cegado pela fúria, eu matei.
Cortei, retalhei e estraçalhei. Cada ano de tortura descontado em cólera devastadora, removendo os vermes, um por um, da face pútrida do lugar que chamavam de Terra. O lar da mais nefasta das civilizações.
Pobres de espírito e ricos de ganância. Meus escravizadores, que jaziam banhados em seu próprio líquido escarlate, pagando sangue com sangue.
Fui ferido durante a fuga, e nos resquícios da chacina, o vermelho e o verde dançavam em espiral, numa tentativa falha de mesclarem-se um ao outro. Mas eu sabia que isso nunca iria acontecer. Não há compatibilidade, nem sonhos compartilhados. A única coisa que dividíamos, naquele momento, era a dor. O ódio em comum havia escorrido pelos ferimentos, evacuando-se nos rodapés inoxidáveis.
Preso em baixo da terra, eu consegui fugir. Corri.
Corri dos pesadelos, do presente desperdiçado e da natureza a mim imposta. A transformação, apesar de indesejada, havia se completado. Era inevitável ignorar o que crescia, pulsando cada vez mais forte, insinuado pensamentos impensáveis. Volte e termine o que começou, ouvia-me dizer. Eu não queria, eu não podia e não o faria. E dentro das possibilidades ínfimas que se formaram em minha cabeça, eu escolhi desistir.
Senti o casco grosso abrindo-se tal como a porta do desespero de minhas torturas, escancarando lustrosas e transparentes asas. Refletindo a luz em profusão de cores. Elas movimentaram-se em velocidade célere, elevando-me cada vez mais alto, dando-me a direção no qual seguir.
E fui em frente.
Voei o mais rápido que pude, e agora estou aqui, sentindo os ventos solares causticando a pele, queimando meus olhos… a asa direita já se perdeu pela metade, e sinto o corpo vacilar em momentos cada vez mais frequentes. O vácuo é calmo, vazio e acalentador. Limpou todas as impurezas que se alojavam em meu ser, livrando-me do peso de ser quem não era. A morte é a troca pelos serviços prestados, mas isso não importa. Que tire tudo de mim, mas também leve a doença que me toma.
Olho para o brilho a minha frente, e isso me entorpece. Depois de uma vida inteira banhado em luzes fluorescentes, agora posso ver o sol por uma primeira e última vez. É terrível, mas belo. Revigora, repara e reconstrói. Dentro das sabedorias que tive em minha viagem transcendente, uma das humanas é que me define neste momento.
Vou em direção à morte, com certeza de que o fim é realmente o fim. Mas nada disso importa, pois tudo o que a paz do término me dará, é muito mais do que já tive. Por isso eu voo, sem pressa para chegar, hipnotizado por um sonho tangível, como uma mariposa em direção ao fogo.
Enfim livre, e em chamas…
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O roteiro principal vem baseado da música “Moth” da banda Hellyeah, enquanto alguns outros traços encontrados foram inspirados na música “Embrace the Ending” da banda Mushroomhead.